quarta-feira, outubro 12, 2022

“Ucrânia - é imperioso sair da caixa”


Fez ontem cinco meses, publiquei este artigo no “Expresso”. Algumas coisas estão datadas e ocorreu a alteração de certas circunstâncias, mas, mesmo assim, hoje apetece-me relembrá-lo, porque o essencial não mudou e continuo a pensar exatamente o mesmo:

”Esta guerra já não é apenas entre a Rússia e a Ucrânia. É cada vez maior o envolvimento, através de ajuda militar e de sanções, de muitos países que passaram a ser parte, embora por ora não beligerante, no conflito. Em moldes todavia nunca comparáveis ao sofrimento da população da Ucrânia, as respetivas sociedades estão a começar a sentir as consequências do prolongamento da guerra.

Parece não ter sentido que os países envolvidos no apoio à Ucrânia fiquem a aguardar o resultado, cada vez mais duvidoso, de um processo negocial, aparentemente suspenso, entre Kiev e Moscovo. Há dimensões do conflito, como fica evidente na questão das armas nucleares, que vão muito para além da situação concreta da Ucrânia, embora com ela interligada.

António Guterres disse hoje que não parece haver condições para um cessar-fogo bilateral. Porquê? Porque entende que a Rússia pretende estabilizar alguns dos seus ganhos e não completou o cerco de isolamento que pretende fazer à Ucrânia pelo sul. E também porque o secretário-geral da ONU pressente que a Ucrânia, forte do apoio militar crescente com que conta reverter a sorte do conflito, avalia que as próximas semanas lhe podem trazer vantagens. Um dos dois contendores está enganado na sorte que o relógio lhe pode trazer, mas só no final se saberá qual.

É imperioso sair do impasse da situação no terreno. Os países ocidentais, mantendo-se sempre firmes no apoio que dão à Ucrânia - essa é, alías, a expressão essencial do seu poder neste contexto - deveriam abrir uma frente negocial direta com Moscovo. Um conflito que pode escalar para proporções (in)imagináveis não pode ficar dependente exclusivamente dos eventuais resultados de uma diplomacia ucraniana acossada pela agressão e pela expectativa ansiosa da evolução da situação militar no seu terreno.

O envolvimento negocial ocidental deveria, como é óbvio, associar plenamente a Ucrânia e ter no centro os seus legítimos interesses de soberania, mas igualmente não poderia deixar de ponderar as consequências económicas, e em breve também sócio-políticas, decorrentes do efeito “boomerang” das sanções e dos previsíveis problemas decorrentes da situação dos muitos refugiados que não poderão ainda regressar à sua terra . Há que ter consciência, e aparentemente ela parece não existir, de que o momento ótimo de consenso entre os aliados vai começar a diluir-se, por virtude dos efeitos do inevitável desgaste de vontade, em vários paises europeus.

O mundo que Vladimir Putin conhece é o da força. Ora o ocidente tem hoje, nas suas mãos, dois instrumentos negociais que podem ser decisivos para qualquer compromisso: a sua capacidade e determinação em poder continuar a armar a Ucrânia, colocando-a em condições de ir “empatando” a guerra, e o fortíssimo pacote de sanções, que, recordo, foi posto em prática por virtude da agressão russa, pelo que parte do qual pode ser usado como moeda de troca na hipótese de um eventual compromisso.

Macron mantém o número de telefone de Moscovo. Draghi deu sinais, em Washington, de que favorece um caminho de um diálogo exigente, sempre sob uma posição comum. Berlim, nesta sua fase hesitante, conta bastante pouco para ousadias. O jingoísmo descabelado de Boris Johnson ecoará o que Washington ditar. É nos Estados Unidos que reside a chave de um eventual novo tempo neste processo, pelo que compete aos europeus lembrar-lhes que é só deste lado do Atlântico que, por agora, continua a guerra.

A História mostra que, para pôr termo a um conflito, ou se derrota totalmente o inimigo (e a Rússia não é derrotável, enquanto potência, como sabe quem sabe destas coisas) ou se fala com ele para ir aferindo das hipóteses de um acordo. Pensar que o tempo corre sempre a nosso favor é uma ingenuidade perigosa.

10 comentários:

Unknown disse...

Salvo o devido respeito, não concordo totalmente com a ideia de que a "Rússia não é derrotável enquanto potência". A Rússia está a revelar-se um gigante com pés de barro. Para se ser uma verdadeira potência, não basta ter um grande território e possuir um grande arsenal de armas, designadamente nucleares. É preciso ter uma economia forte. E um regime fortemente legitimado, o que não parece ser o caso.

Francisco Seixas da Costa disse...

Unknown das 14:51. Tem todo o direito a discordar. Pode é acontecer que não possamos estar cá quando eu tiver razão.

Luís Lavoura disse...

a Rússia não é derrotável

O Império Russo foi derrotado na Primeira Grande Guerra. Não foi invadido e a sua capital não foi conquistada, mas foi derrotado.

Luís Lavoura disse...

Os países ocidentais deveriam abrir uma frente negocial direta com Moscovo.

"Os países ocidentais" dividem-se em muitos grupos. Há os EUA e os seus fantoches (o Reino Unido, a Polónia). Esses certamente não vão querer negociar com Moscovo. E depois há outros, que seguem os EUA como carneirinhos, mas poderiam eventualmente não seguir.

O que eu quero dizer é que não vale a pena pensar que os EUA irão negociar com Moscovo, até porque os EUA estão a ser fortemente beneficiados pela atual situação. (Os europeus que têm dinheiro estão todos a transferi-lo para os EUA.) Quem poderá negociar com Moscovo são os países europeus que se sentem prejudicados, como a Alemanha e outros.

O drama europeu é, porém, que todos esses países têm medo de terem uma política externa independente, porque sabem bem que, quando os países europeus têm políticas externas independentes, acabam inevitavelmente à batatada uns contra os outros. Portanto, por um reflexo de autodefesa, todos eles seguem como carneiros a política externa dos EUA. A qual, neste caso, os levará ao cadafalso, porque neste caso os EUA estão a jogar contra a Europa - como se viu no caso da destruição dos Nord Stream.

Luís Lavoura disse...

Os países ocidentais deveriam abrir uma frente negocial direta com Moscovo.

Talvez não por coincidência, o presidente turco pensa o mesmo que o Francisco, e parece que hoje mesmo está a tentar encetar um esforço de mediação entre a União Europeia e a Rússia.

Desejo-lhe muito boa sorte, mas acho que não a terá, porque a União Europeia neste caso tem países com interesses opostos entre si, pelo que é incapaz de gizar uma política externa comum que não seja somente a obediência acrítica aos EUA.

Joaquim de Freitas disse...


« Unknown » ignora que os EUA, com toda a sua poderosa economia e força militar, não ganharam uma só guerra após a 2°Guerra Mundial ? E porquê? Porque os EUA não gostam de perder os soldados no campo de batalha… Por isso mandam a "carne para canhao" ucraniana para a frente...

A Segunda Guerra Mundial foi uma carnificina incrível. Não muito longe de sessenta milhões de pessoas, civis ou soldados, morreram ali. Para os EUA, foram 300.000 soldados (não civis) que pagaram com seu sangue a política dos grandes estrategistas.

Isso deve ser comparado aos 487.000 combatentes russos que caíram apenas na Batalha de Estalingrado. 300.000 ainda é muito.

Mas isso é muito menos do que outros países suportaram. No Vietname as tropas americanas perderam 60.000 homens. Os seus adversários dois milhões. Este último venceu.

Os EUA perdem no terreno, e às vezes ganham de volta diplomaticamente, e graças aos seus fundos "inesgotáveis" (pelo menos em questões militares e de subversão).

A coalizão militar-industrial-financeira que é o verdadeiro governo dos EUA não terminou de sugar o sangue do planeta, inclusive de seus habitantes. O cinismo sempre foi prerrogativa dos políticos: exibi-lo de forma tão ostensiva e com total impunidade é a marca deste país ainda jovem e já profundamente odiado em todo o mundo.


Quanto à guerra nuclear, não há muitas páginas na história dos Estados Unidos - excepto, talvez, a escravidão - tão carregadas quanto o das bombas atómicas no Japão. Mesmo Eisenhower (mesmo Nimitz) disse que não havia justificação para este crime. E não me benha falar de Butcha…

Anónimo disse...

Texto equilibrado (se bem que omita algumas boas razões da rússia e outras tantas responsabilidades da américa) que, se levado a sério pelo dito ocidente alargado, bem poderia abrir novos caminhos para a resolução do conflito. É cada vez mais necessário dar valor e ampliar as opiniões que desmontam as teses belicistas, por isso aplaudo este se texto, esperando que transporte estas ideias de cada vez que é ouvido na CNN. Afinal, o senhor foi um diplomata, facto que lhe impõe responsabilidades acrescidas no caso.

Lúcio Ferro disse...

Concordo com o último parágrafo. Negociar é preciso, porque, caso contrário seria, como tem sido a narrativa e não desiste, regime change, delenda est cartago, o que, num mundo com a actual capacidade bélica, enfim. Daltam De Gaulles, faltam Willy Brandts, faltam Kissingers e até faltam Merkels.

manuel campos disse...


Quando ouço ou leio que a Rússia (ou a China, há uns anos) são tigres de
papel ou gigantes com pés de barro pergunto-me sempre porque é que anda
todo o mundo cada vez mais preocupado com o que fazem ou podem vir a fazer,
dado que pelos vistos é uma questão de tempo para aquilo tudo se desmoronar (o barro) ou arder (o papel) e, de qualquer modo, o problema é das respectivas populações que incentivaram ou calaram.

Que tal deixarmos as conversas de pasquim e nos empenharmos na guerra ou na paz, conforme o critério e a vontade de cada um de nós?

Francisco disse...

O imperativo da Paz parece chocar frontalmente com o muro das impossibilidades que lhe é anteposto de imediato. Mas se a Paz á a única saída capaz de nos devolver (e sobremaneira para os que ali deixam a sua tenra vida, sem honra nem glória, porque nunca há em honra nem glória em ceifar vidas em flor) os equilíbrios perdidos e afastar os nossos temores mais dramáticos, ficamos, portanto, perplexos perante a plêiade de valentões de sofá, armados geralmente de gravata e fato de bom corte que, como o Francisco Seixas da Costa também sublinhou já, não cessam de berrar: ide!
E não é já o chegar que importa, o que importa é fazer o caminho, ainda que a despeito dos danos colaterias, que é o outro nome que nestas alturas nos habituamos a dar à morte, à destruição e ao sofrimento. A minha ingenuidade provinciana faz-me ter dificuldade em ver os russos de bandeira branca a rogar clemência na hora da rendição, pelo que, também essa, deveria ser uma razão determinante para se abrir o caminho para a paz. Contudo, essa é por agora uma palavra tabu. Entretanto o mundo rodopia incessantemente e ocorre-me pensar que, de facto, há décadas em que nada acontece e há semanas em que décadas acontecem.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...