terça-feira, outubro 04, 2022

“Country”


A “country music” tem um mundo de fãs muito estranho. Há quem lhe ache pouca piada, quem considere que aquele ritmo é pobre, repetitivo e adequado a um auditório pouco sofisticado. Não sou dessa opinião. Temos de colocar aquela música no seu ambiente próprio, que é o de uma certa América popular. O “country” tem grandes vozes, homens e mulheres, no seu caminho criativo, que tem quase 100 anos.

Hoje, com 90 anos, morreu uma das grandes cantoras da história do “country”, Loretta Lynn (na fotografia). O seu maior êxito é, na minha opinião, o “Coal miner’s daughter”, que, já há muitos anos, deu origem a um filme, protagonizado por Sissy Spacek.

Estava eu nesta conversa com um amigo, ao final da tarde de hoje, louvando a qualidade da desaparecida rainha do “country”, quando ele me contraditou, escandalizado: “Rainha do “country”?! A Loretta Lynn?! Ora essa! A rainha do “country” é a Patsy Cline! A longa distância!” Diga-se que Cline morreu em 1963, mas este meu amigo tem muito boa memória de ouvido. 

E assim ficámos. Pode ouvir a Loretta Lynn, no “Coal miner’s daughter” e a Patsy Cline, no seu clássico “Crazy”, uma balada de que eu também gosto muito. Mas não lhe disse, claro!

segunda-feira, outubro 03, 2022

Horário de trabalho

Quando é que terminam as férias da pessoa que o governo contratou para coordenar a sua política de comunicação?

“Fringe talks”


Começou ontem, em Birmingham, terminando na 4ª feira, a conferência anual do Partido Conservador britânico.

A recém-eleita líder “tory”, Liz Truss, vai ter ali uma difícil prova de fogo, imediatamente após ter recuado face a uma medida de extremismo liberal que provocou a revolta nas hostes conservadoras: a brutal redução de impostos para os mais ricos, a ser financiada com endividamento público. Truss já não vai ter uma segunda oportunidade para retificar a má primeira impressão que já deixou.

Vai para trinta anos, quando trabalhava na nossa embaixada em Londres, fui a uma dessas conferências, que teve lugar em Blackpool. O partido tinha saído do longo período de liderança de Margareth Thatcher e o governo era chefiado por John Major, o nome “lackluster” de compromisso encontrado pelos “grandees” do partido para evitar que Michael Heseltine, com credenciais europeístas, chegasse a primeiro-ministro.

Nesse tempo, a conferência anual dos conservadores era um dos poucos momentos em que as estruturas locais, as “constituencies”, tinham oportunidade de se misturar com quem, verdadeiramente, era o dono da condução da máquina partidária: o grupo parlamentar. Embora lhes competisse selecionar os candidatos a deputados, as bases conservadoras estavam então excluídas, por completo, de intervir na escolha do líder, usando a convenção como a rara oportunidade para passar a suas preocupações políticas. Nos dias de hoje, as coisas são um pouco diferentes, e bastante mais democráticas, como recentemente se constatou: os deputados, por eliminação sucessiva de candidatos, chegam a uma “short list” de dois nomes, competindo ao militantes, por voto secreto, escolher um deles para líder. Foi dessa forma que Liz Truss chegou, há semanas, à liderança.

As conferências são uma imensa “feira”, no bom sentido. Há, no plenário  animação, muita cor (com o azul predominante), tendo mais interesse e graça quando o partido está no poder. Algumas “constituencies” e alas ideológicas do partido organizam interessantes debates setoriais temáticos, os “fringe meetings”, de acesso livre, onde se expressam os defensores de linhas que estão longe do “mainstream” dominante no poder central, em Londres.

Lembrando (o que muitos ignoram) que o partido conservador também tem oficialmente no seu nome a palavra “unionista” (promotor da ligação da Irlanda do Norte à Grã-Bretanha), os debates sobre a temática irlandesa eram interessantíssimos, com o reverendo Ian Paisley em destaque, com a sua voz tonitruante. A Europa era, já então, bem diabolizada, com figuras como Bill Cash e outros eurocéticos (a quem Major chamava, em privado, os “bastards”) a darem o tom. Nesses escassos dias em Blackpool, aprendi mais sobre os conservadores britânicos do que em muitas horas de leitura de livros ou jornais. E fiquei fã, não dos conservadores (credo!), mas do acompanhamento possível das suas conferência, mais serenas nos liberais-democratas, mais ideologicamente bizarras, no limite do extremismo heterodoxo, nos antigos trabalhistas.

Nesse ano, nos corredores de um desses "fringe meetings", entre os quais eu saltitava para apanhar os programas mais divertidos, com os oradores mais apelativos, numa troca de apresentações, num grupo de diplomatas, apertei a mão a um desconhecido que me disse:

- Sou o adido militar da Indonésia em Londres. De que país é?

- Sou um diplomata de Portugal. E quero dizer-lhe que acho muito curioso conhecer um militar indonésio. Nem imagina quanto, por estes dias, se fala dos militares indonésios lá pelo meu país...

O massacre de Santa Cruz, levado a cabo pela repressão militar indonésia em Timor, estava na memória recente de todos.

Disse aquilo e fiquei impávido. O homem olhou-me, de esgar vidrado, sem saber como reagir. Outros colegas estrangeiros, rápidos na perceção da situação, ficaram à espera de um qualquer "follow-up". Que não houve, claro. Cada um de nós foi para seu lado.

Impressões

Liz Truss não terá uma segunda oportunidade para poder criar uma primeira impressão à frente do seu país. E a primeira impressão que deixou não foi brilhante.

Lição

No Reino Unido, nos últimos dias, aconteceu uma dispendiosa aula prática sobre a diferença entre o radicalismo liberal e o conservadorismo.

Borla esterlina

O governo britânico foi obrigado a ceder na sua proposta de dar uma “borla” aos cidadãos mais ricos, para estimular a economia. O crescente mal-estar no seio dos conservadores forçou o recuo. Resta agora esperar para ver o impacto que tal vai ter no comportamento dos mercados.

Kupiansk

Anda aí uma polémica séria sobre um plágio no “Público”. O tema é interessante, embora triste. Lembrei-me dele agora, ao ver no jornal o nome de uma cidade na guerra da Ucrânia: Kupiansk.

Dois amores

O espetro de representação partidária nas duas câmaras legislativas brasileiras favorece Bolsonaro, em detrimento de Lula, para a governação nos próximos quatro anos. Será assim? Quando os partidos se sentarem à mesa do orçamento, com quem ganhar, os alinhamentos irão às urtigas.

domingo, outubro 02, 2022

O dia seguinte

Lula vai ganhar. Mas, no final, como aconteceu nos EUA com Trump, iremos olhar para os largos milhões de brasileiros que votaram Bolsonaro. E, para o futuro que aí vem, Lula terá que pensar que essas pessoas são, em regra, muito diferentes de quantos votaram Serra, em 2002.

Guerra e Paz

O Comité Nobel de Oslo, terra do secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg, irá nomear um Prémio Nobel da Paz 2022 que nos surpreenda?

O ridículo também mata

Nesta guerra, os responsáveis russos expõem-se a um imenso ridículo. Ouvir o Ministério da Defesa russo dizer que a retirada de Lyman foi feita para assegurar “more advantageous lines” vai acabar por ganhar o prémio do “understatement” do ano.

Depois do Xá


Chico Buarque, há muitos anos, escreveu sobre as mulheres de Atenas. Ninguém escreve sobre a coragem magnífica das mulheres de Teerão?

Voto no Bolso

Não quero desiludir os meus amigos lulistas, mas gostava de lembrar que, há quatro anos, Bolsonaro teve mais votos do que as sondagens previam. Vai perder, é óbvio, mas a possibilidade de ser só no dia 30 de outubro é elevada. Mas nunca se sabe, né?

O discurso do rei

A imprensa inglesa diz que a presença do rei na cimeira do clima, onde faria uma intervenção sobre o tema de políticas públicas que mais o motiva, foi desaconselhada pela primeira-ministra Liz Truss. 

Até aqui, tudo normal, até porque o rei teria de ler exatamente o que o governo quisesse e não o que tivesse a veleidade de pensar. A questão é outra: está em saber se Truss não se estará a preparar para recuar nos compromissos climáticos, afastando-se de alguns parceiros ocidentais.

sábado, outubro 01, 2022

Lula


Em 1989, por esta altura, fui de férias ao Brasil. Decorria uma campanha presidencial. Por dias, fiquei colado à televisão, arruinando horas de programas turísticos organizados por amigos. Tudo aquilo, à época, era, para mim, uma coisa nova, comparada com a cansativa política portuguesa. Começou ali a minha descoberta da imensa diversidade da vida política de um Brasil de novo em liberdade.

O favorito do sufrágio, que depois seria o seu vencedor, era Collor de Mello, um candidato “penteadinho”, com ar kennedyano e discurso plástico, claramente promovido pela Globo e pelos poderes fácticos do dinheiro. (Três anos depois, os escândalos afastá-lo-iam da presidência). O seu opositor era um sindicalista, Lula da Silva, então com um ar um pouco “troglodita”, barba larga e “look” quase ameaçador, dizendo, sem jeito mediático e o sorriso que a experiência lhe faria ganhar, algumas coisas que assustavam parte da classe média. 

Aquela campanha presidencial significou, verdadeiramente, o regresso à plena liberdade política, a consolidação da democracia, depois da aprovação de uma nova Constituição, o fecho de mais de duas décadas de sinistra ditadura militar.

Aquele era um tempo político magnífico para a vida cívica do Brasil! Ali assisti às campanhas de Ulisses Guimarães, Mário Covas, Leonel Brizola, Fernando Gabeira, Paulo Maluf e do bizarro Enéas, com os seus 15 segundos de antena (no Brasil, o tempo de campanha oficial depende da força dos partidos apoiantes), que quase só tinha tempo para dizer “Meu nome é Enéas”.

Collor ganhou, com Lula a fazer 47%. Em 1994 e 1998, Lula voltou a perder, ambas as vezes para Fernando Henrique Cardoso. Voltaria a concorrer uma quarta vez, em 2002, ganhando, dessa vez, a José Serra. Seria reeleito, em 2006, com 61%, tendo Geraldo Alckmin como principal adversário. Alckmin é hoje o seu candidato à vice-presidência. 

Estive no Brasil, como embaixador, durante parte do primeiro e do segundo mandato de Lula. Cheguei a Brasília num tempo, que já vinha de trás, de alguma euforia nas relações económicas bilaterais, com interessantes resultados de empresas portuguesas no mercado brasileiro.

Tive a sorte de poder criar com Lula uma boa relação pessoal. É uma pessoa cativante e muito agradável. Se muita gente do seu partido estava, e está, longe de ser fã das relações com Portugal, Lula foi sempre a exceção: nunca, nos quatro anos que estive no Brasil, deixei de contar com o seu permanente interesse em aprofundar as relações com Portugal. Testemunhei a atenção com que tratou interlocutores portugueses que foram ao Brasil, por esse tempo: José Sócrates, Mário Soares, Jaime Gama, Cavaco Silva, Jorge Sampaio e alguns outros. Não posso dizer o mesmo da atitude para connosco por parte da ministra que acabou por ser a sua sucessora.

Amanhã, Lula vai sair vitorioso da primeira volta das eleições presidenciais brasileiras. Se não parece muito plausível que a sua eleição possa acontecer nesta primeira volta, isso irá ocorrer, inevitavelmente, no dia 30 de outubro, no segundo turno, a menos que “o diabo vista farda”.

Lula pode ter muitos defeitos e nada garante que este seu novo ciclo político venha a ter o inegável sucesso que foram os seus oito anos de presidência. Mas tudo será seguramente melhor, para o Brasil, do que aquilo que se passou nos últimos quatro anos. E será bem melhor, para Portugal, ter Lula na presidência. O facto de André Ventura dizer o contrário conforta-me nesta minha certeza.

Governos

Há uma regra na política, desde tempos imemoriais: quando a oposição, política ou mediática, dá sinais de gostar muito de um ministro, é sinal de que a ação de tal governante está em óbvio contraciclo com o executivo de que faz parte. Esta regra quase nunca falha!

Rússia

É pouco plausível que a Rússia se arrisque a utilizar armamento nuclear tático na guerra da Ucrânia. A China já deu sinais de que a sua “neutralidade colaborante” não se manteria, nesse caso. Mas é crível que Moscovo enverede por uma muito maior violência em termos convencionais.

NATO

O diferente modo como cada Estado membro da NATO vai reagir ao pedido de adesão da Ucrânia acaba por criar a imagem de uma organização dividida, coisa que a não favorece e era perfeitamente evitável.

Falsa bandeira

Os tempos que correm recomendam muito que se conheça o conceito de operações de “falsa bandeira”. Trata-se de operações militares executadas por um dos lados, o qual, contudo, procura imputá-los ao outro lado, com vista a prejudicar a imagem pública deste. Estejam atentos.

Imperialismo do bem


Em Campo de Ourique, fecharam a Peixaria da Esquina e a Parreirinha do Minho. 

Continua, contudo, impante, a Imperial de Campo de Ourique, do meu amigo João Gomes.

Ao almoço de hoje, a dona Adelaide preparou-me por ali um bacalhau à minhota que estava de comer e chorar por mais. 

Mas não espalhem muito, porque as mesas são escassas!



Parabéns, Carlos Moedas!


A decisão de mandar retirar todos os cartazes que poluíam a paisagem do Marquês de Pombal, tomada pelo presidente do município Carlos Moedas, representou um ato corajoso e de grande valia cívica. Os lisboetas agradecem-lhe e aplaudem-no. 

Só um autarca do PSD poderia concretizar esta medida, porque havia sido precisamente o PSD a objetar, no passado, a uma similar proposta feita por uma gestão socialista.

Agora, não perdendo o balanço, é importante que haja uma rápida limpeza dos cartazes com a mesma natureza, um pouco por toda a cidade, das praças à 2ª circular e outras vias onde o olhar dos condutores, com os riscos que isso implica, vivem sob constante distração visual. O que se passa em frente à Assembleia da República é, em particular, uma vergonha para a dignidade daquele órgão do Estado! 

Lisboa poderá constituir, aliás, um bom exemplo para o resto do país. As cidades portuguesas não podem continuar a ser a selva visual que atualmente são. Os cidadãos devem ter direito a ter todos os seus espaços públicos limpos de material propagandístico, político e não só. O país não vive numa campanha eleitoral permanente e, quando isso acontece, como sucede nas democracias evoluídas, deve haver lugares próprios para colocação da sua propaganda, com tempo certo para a retirada desses materiais, com coimas se tal não acontecer. 

Se Carlos Moedas também vier a pôr ordem na praga das trotinetes (não apenas no trânsito, mas também na recolha, obrigando à sua acomodação pós-uso nos equipamentos próprios para parqueamento, o que é possível obrigando a que o desligar dos cartões de utilização só venha a ocorrer nesses pontos) e conseguir disciplinar a questão do ruído noturno em zonas com forte componente residencial, deixará uma marca de modernidade na sua gestão da capital. 

Parabéns, Carlos Moedas!

Artigo 5°


Fala-se muito do Artigo 5° do Tratado de Washington, constitutivo da NATO, e da reação que o ataque a um país membro pode vir a resultar por parte dos outros. Convém lê-lo bem e entender que a resposta armada não é assim tão automática.

Questões

Se a ambição russa passar a ser preservar as fronteiras das novas regiões anexadas, pode deduzir-se que zonas como Odessa deixam de ser alvos militares? Caiu assim o desígnio russo de vedar o acesso da Ucrânia ao Mar Negro? E o sonho da Transnístria de integrar a Rússia?

sexta-feira, setembro 30, 2022

Geografias


Aqui estão o novo mapa da Rússia (e, por consequência, o novo mapa da Ucrânia), anunciado por Moscovo. Vale a pena fazer apostas sobre quem, pelo mundo, irá reconhecer esta nova realidade formal. Vai-se falar muito de Portugal, por estes dias: é que as cinco regiões (“oblast”) a laranja escuro, têm aproximadamente a área do nosso país.

Nervos de aço


A Federação Russa aceitou o pedido de integração das quatro repúblicas criadas no território da Ucrânia, duas em 2014, duas outras pelos referendos organizados na última semana.

Sei que, chegados a este ponto, muitos leitores devem estranhar que o parágrafo com que encimei o texto não esteja recheada de aspas, que a palavra repúblicas não esteja antecedida do ritual auto-proclamadas, que o termo referendos não tenha antes o adjetivo de falsos. Fiz isso de propósito, porque as evidências devem falar por si e as pessoas não precisam de muletas gráficas para entenderem o óbvio. Aquelas repúblicas e a sua independência fugaz valem o que valem, os atos referendários têm a legitimidade que cada um quiser atribuir-lhes. A cada um a sua verdade, ou a sua mentira.

No seu discurso de hoje, somado a outros recentes, Vladimir Putin foi muito claro. A sua leitura da Rússia mostra uma evidente não acomodação à realidade que constituiu a implosão da União Soviética, em 1991, da qual resultou a criação de 15 Estados. Putin não desejava o fim da União Soviética. Já agora, eu relembraria que Mikhail Gorbachev também não.

O que é distintivo nesta doutrina de Putin é a noção, que hoje ficou ainda mais clara, se necessário fosse, de que os espaços geográficos da antiga URSS onde ainda exista uma significativa presença de populações russas constituem, para a Rússia de Vladimir Putin, territórios passíveis de integração na Federação Russa, tida relutantemente como a matriz institucional atual da pátria russa.

A lógica deste raciocínio é extremamente simples: trata-se de tentar reverter, na medida do que hoje ainda é possível, o destino criado a essas populações pelo ato de 1991, que, agora se percebe melhor, não é aceite por Putin como legitimador de fronteiras.

Se repararmos bem, o gesto de Moscovo, ao reconhecer, em 2014, as repúblicas da Abcásia e da Ossétia do Sul, áreas cindidas da Geórgia e das quais tinham saído, depois de conflitos armados, as respetivas populações não russas, já ia precisamente nesta linha.

Na Ucrânia vivia, até ao dia de hoje, a maior população russa expatriada. Na perspetiva de Moscovo, isso agora acaba: essas populações, e com elas os territórios em que residem, passam a integrar a pátria russa.

A circunstância da recolha de vontade se ter processado, nesses territórios até hoje ucranianos, debaixo de uma violenta ocupação militar, o facto de muitos outros cidadãos não-russos que aí viviam terem entretanto saído contra a sua vontade, não contando assim para o apuramento dos esmagadores resultados apresentados, parece não ter visto como afetando a legitimidade desse processo.

O dia de hoje é muito importante para o destino do Direito Internacional, sendo que ao dizer importante não lhe dou o significado de feliz.

António Guterres, ao pronunciar-se sobre a flagrante ilegalidade dos referendos e da sua sequência, com os processos de integração dos novos estados na Federação Russa, falou em nome de uma ordem internacional que tem a ONU no seu centro e que, ao longo de muitas décadas, tem sido o referente da gestão das relações entre os Estados, um pouco por todo o mundo.

Não podemos esquecer que outras potências relevantes, como é o caso dos Estados Unidos, várias vezes colocaram em causa a sua subordinação a esse modelo de gestão pactada do mundo. Aliás, a China continua a fazer o mesmo, com as suas iniciativas nos mares meridionais, dando mostras de ter uma leitura muito própria das regras internacionais.

Nunca, porém, um membro permanente do Conselho de Segurança da ONU assumiu, de forma tão flagrante, o seu afastamento deliberado do normativo internacional que vinha a reger a sociedade internacional, embora, cinicamente, tentando dar ares de a ele se subordinar, como a Rússia hoje fez.

Ao desafiar desta forma a ordem internacional, a Rússia abre caminho a que outros se possam sentir tentados a ir revanchistamente na mesma linha, criando talvez o momento mais perigoso que o mundo está a viver desde o fim do segundo conflito mundial.

Neste tempo de desvario acossado de Moscovo, o mundo democrático e, em especial, os Estados Unidos e a Europa, têm a estrita obrigação de manterem uma contenção de atitudes à altura das responsabilidades que têm na segurança global. Este não é o tempo para emoções, para gestos de gongorismo proclamatório, por muito que isso possa confortar o ar do tempo. É que é para firmeza, determinação e, em especial, nervos de aço.

A igreja e os abusos

Há poucas semanas, numa entrevista a Maria João Avillez na CNN Portugal, o papa Francisco, sem enjeitar as responsabilidades da igreja perante as cada vez mais frequentes revelações sobre abusos sexuais no seio da instituição, lembrou, e bem, que a maior parte dos crimes desta natureza são praticados nas famílias.

As estatísticas dão razão ao papa, mas não podem absolver a igreja católica, por pequena que seja a sua quota de culpa. E é também por essa razão, somada às evidências que já não podem ser negadas, que a própria igreja tem vindo a autocriticar-se. E só lhe fica bem.

Há uns tempos, estive à conversa com um amigo que viveu uns anos num seminário. Veio à baila a questão dos abusos sexuais que por ali se praticavam. Esse amigo referiu-me que, nesses tempos, a fragilidade dos filhos de gente pobre, nomeadamente oriunda de zonas rurais, enviada para os seminários como único caminho para obter uma educação e a esperança de algum futuro, era por vezes explorada por religiosos abusadores. Esse era então um “segredo de Polichinelo”, numa época em que a força da autoridade, bem como a complacência da instituição, conduzia a um manto de silêncio sobre tais práticas.

Nos últimos dias, surgiram acusações contra o bispo timorense Ximenes Belo, dando conta de se tratar de histórias antigas, pelos vistos arquivadas na memória embaraçada da hierarquia religiosa.

Tive oportunidade de encontrar Ximenes Belo quando Timor-Leste precisou da sua coragem. Com ele e com Ramos Horta, partilhei uma jornada em Genebra, em setembro de 1999, durante a qual, no seio da então Comissão dos Direitos Humanos, foi possível isolar a Indonésia, no caminho para a libertação do território. Ambos viriam a representar a determinação dos timorenses, com a justa atribuição do Prémio Nobel da Paz, em 1996.

Há menos de três anos, cruzei Ximenes Belo numa pastelaria de Campo de Ourique. Conversámos uns minutos e recordámos esses tempos. Nunca mais o vi, desde então. A tragédia pessoal, pelos vistos, bate-lhe agora à porta. Terei imensa pena, se as graves acusações que sobre ele impendem forem verdadeiras. Mas uma coisa não apaga a outra: um eventual comportamento dessa natureza, a confirmar-se, deve ser  condenado e denunciado, mas não pode nunca anular a admiração que a sua luta por Timor-Leste concitou pelo mundo.

quinta-feira, setembro 29, 2022

“A Arte da Guerra”


Em “A Arte da Guerra”, o podcast semanal com António Freitas de Sousa, para o “Jornal Económico”, abordo esta semana as eleições no Brasil, as ameaças de Moscovo em matéria nuclear e a disrupção social e política no Irão

Pode ver aqui.

Serenidade

Com os anos, aprendi que a serenidade se constrói, sempre e só, dentro de nós. Se acaso nos deixarmos afetar pelo mundo exterior, por aquilo que contra nós se move, acabaremos por fazer a “a festa dos outros”. Era só o que faltava!

Voto

Bolsonaro desconfia do voto eletrónico. Em 2018, quando foi eleito por esse método, não desconfiou?

Ou tudo ou nada!


Com a anexação dos territórios ucranianos, integrando-os na Federação, a Rússia sobe a parada. Se se mantivessem “repúblicas” independentes, algum “trade off” com Kiev ainda era possível. Desta forma, Moscovo não admite qualquer possibilidade de recuo. A lei de Murphy está aí!

Do Reino

O que se está a passar no Reino Unido com as medidas fiscais do governo de Liz Truss tornou-se num “case study”. A reação do FMI mostra-o.

quarta-feira, setembro 28, 2022

5ª Conferência de Lisboa

 





Em 13 e 14 de outubro, na Fundação Calouste Gulbenkian, terá lugar a 5ª Conferência de Lisboa, uma organização bienal promovida pelo Clube de Lisboa - Global Challenges, a cujo conselho diretivo tenho o gosto de presidir, desde 2019. 

Sugiro que cliquem nas duas imagens e observem o programa, este ano subordinado ao tema “Rumo a uma Nova Ordem Mundial?”. 

Serão dois dias de debates em torno de temas de grande atualidade. Por que não se inscrevem? Não tem qualquer custo e podem escolher os momentos que mais lhes interessem. Basta irem ao site do Clube: https://www.clubelisboa.pt/

terça-feira, setembro 27, 2022

“A Arte da Guerra”


Com o jornalista António Freitas de Sousa, em “A Arte da Guerra”, uma produção audiovisual do “Jornal Económico”, fizemos esta semana um balanço do congresso do Partido Comunista chinês, analisámos o governo de Giorgia Meloni em Itália e as escolhas de Rishi Sunak, o novo chefe do governo britânico.

Pode ver aqui.

De Trump a Putin

Foi um belo debate aquele em tive o gosto de participar, ao final da tarde de hoje, na Fundação Casa de Mateus, em Vila Real, com a professora Fátima Vieira, vice-reitora da Universidade do Porto, em torno do livro “De Trump a Putin - a guerra contra a democracia”, de Álvaro de Vasconcelos, que Teresa Albuquerque nos pediu para apresentar.

O destino e as ameaças que pairam sobre o modelo de democracia em que vivemos são o eixo em torno do qual se desenvolve a análise de Álvaro de Vasconcelos, que trata temáticas que vão do Brexit a Trump, daa primaveras árabes ao bolsonarismo, com natural ênfase no caso ucraniano, entre várias outras. 

segunda-feira, setembro 26, 2022

Extrema-direita


Fará 23 anos no próximo mês de janeiro, um partido de extrema-direita foi cooptado para uma coligação de centro-direita na Áustria. O líder do novo governo austríaco era uma figura respeitada da direita moderada, que tinha sido, por bastante tempo, ministro dos Negócios Estrangeiros de Viena. A posição da extrema-direita no governo era a de um parceiro menor.

Nesse ano de 2000, a Europa política entrou em estado de choque. Ter a extrema-direita num governo dessa Europa dos 15 era impensável!

Jacques Chirac e outros líderes europeus, de direita e de esquerda, pressionaram António Guterres, então primeiro-ministro, para que a Presidência Portuguesa da União Europeia, em nome dos 14 restantes Estados membros, estabelecesse um “cordão sanitário” em torno no governo austríaco.

A nossa Presidência tentou compatibilizar a preservação do estatuto de Viena como membro pleno da União com algumas medidas de caráter bilateral, por parte dos restantes Estados membros, tendentes a sublinhar o isolamento em que o novo governo se colocava, ao ter a ousadia de integrar figuras daquela área política. Foram as célebres “sanções” à Áustria. O Tratado de Nice, então em discussão, passou a incluir medidas tendentes a “prevenir” semelhantes casos, o que o Tratado de Lisboa reforçou. Depois, com a chegada da Presidência francesa da União, o zelo de Paris esmoreceu.

E depois?

Depois, houve os alargamentos e, dentro destes, com o tempo, emergiram casos que acabaram por tornar o “caso austríaco” numa brincadeira de crianças.

Ontem, a terceira economia europeia, um dos países fundadores do processo de unidade europeia, passou a ter uma primeira-ministra de extrema-direita.

De Bruxelas, chegam uns gemidos políticos sem consequências. Como diria Bob Dylan, “ the times they are a-changin’ ”.

domingo, setembro 25, 2022

Direita democrática

A subida da extrema-direita é um imenso desafio para a direita democrática. Desde logo porque, muitas vezes, para conseguir chegar ao poder, é tentada a “dar-lhe boleia”. Outras vezes, quando a procura combater, é colonizada pela agenda extremista, que acaba por mimetizar.

Fascismo (2)

Tem imensa graça observar o coreografia verbal relativizadora dos que, argumentando com o rigor conceptual, procuram afastar os termos “fascista” e “extrema-direita” como qualificadores dos políticos ou regimes dessa área. Estejam atentos!

Fascismo

A frase é batida, mas há que ter a humildade de reconhecer que continua a ter muito de verdade: a extrema-direita fornece sempre respostas erradas para problemas que se apresentam como reais, mas que os politicos moderados não conseguiram resolver.

Lula

Raramente alguém é feliz no regresso ao sítio onde isso aconteceu. Lula vai regressar. Vai lutar contra a regra e leva consigo uma carga de esperança a que, só por milagre, estará à altura. O mundo em que Lula teve assinalável sucesso já não existe. Precisará, desta vez, de muita sabedoria e sorte.

sábado, setembro 24, 2022

Genéricos


Não é Ernest Hemingway quem quer. Bernard- Henry Lévy é um infatigável "guerrilheiro da palavra", um corajoso combatente com os mortos dos outros. Se o ridículo matasse, esta fotografia era fatal.

Democracia

A democracia está a perder terreno pelo mundo, mas o conceito, em si, continua a ser usado por quase todos os regimes, como fator de legitimação. Não conheço nenhum regime se assuma abertamente como anti-democrático. É, pelo menos, uma vitória semântica.

Outono


“… e agora cheira a Setembro, como o Outono sabe a vinho” (Ary dos Santos)

Conhecimentos


Numa ocasião pública, há dois dias, com imensa gente, ao cumprimentar uma senhora que conhecia, notei que outra, que estava ao seu lado, pessoa que eu nunca vira mas a quem, delicadamente, também tinha saudado, colocou uma “cara de pau”. 

Uns segundos depois, ganhou coragem e disse-me: “Vou ser desagradável, mas quero que saiba que não concordo nada com as suas ideias”. Posso imaginar que a senhora me tivesse ouvido ou lido algures. Não quis saber.

Nestas ocasiões, cada um reage ao seu jeito. A mim, saiu-me: “Ao contrário da senhora, eu não vou ser desagradável. Não vou ter a pretensão de querer conhecer as suas ideias”. 

E, com um aceno de cabeça, saí de cena e fui à procura de uma flute de champanhe, o qual, aliás, era muito bom.

Somos adultos

Na ditadura, havia um programa da Emissora Nacional que tinha como lema: “A verdade é só uma e Rádio Moscovo não fala verdade”. Há um cheiro a Estado Novo nos apelos a que sejam caladas vozes tidas como favoráveis às teses da Rússia. Ouçamos todas as opiniões, mesmo as mais absurdas!

Rússia

A Rússia continua a ser um Estado formalmente democrático, na letra constitucional. Porém, na prática, com Putin, o regime há muito que se converteu numa evidente autocracia, a qual, contudo, em nada é incompatível com a persistência de um ainda forte apoio popular à sua liderança.

Prisioneiros

A começar por Kiev, muitos se surpreenderam com o facto da Rússia ter decidido libertar, por troca, um número significativo de combatentes que tinha capturado em Azovstal. 

É simples: com este gesto, “embrulhado” numa troca de prisioneiros, a Rússia ficou livre de ter ainda de vir a pagar o preço político que os julgamentos e sanções, nomeadamente alguns anunciados fusilamentos, iriam desencadear.

sexta-feira, setembro 23, 2022

Ucrânia

É óbvio que os referendos organizados pela Rússia nas quatro zonas da Ucrânia não têm o menor valor, à luz do Direito Internacional. Mas que ninguém se iluda: a esmagadora maioria daqueles votantes é, de facto, favorável à Rússia, mesmo que os resultados possam ser inflacionados.

A tragédia dos russos ou russófilos que vivem na Ucrânia é que a não aplicação do Acordo de Minsk impediu que pudessem ter a sua identidade respeitada no quadro de uma Ucrânia democrática. A invasão russa, que para muitos foi bem vinda, consagra o fim dessa outra alternativa.

Era tão evidente!

Berlusconi diz que Putin, afinal, apenas queria colocar um governo decente em Kiev. Nunca nos tínhamos lembrado de que, de facto, devia ser apenas isso.

E por que não a Calçada do Combro?

Santarém surge agora como uma alternativa para o novo aeroporto. Depois de meio século de sugestão de hipóteses, em que um número infindo de especialistas nunca alvitrou essa possibilidade, António Costa e Luís Montenegro não se dão conta do imenso ridículo que tudo isto representa?

Vergonha


Uma declaração desumana, marcada pela russofobia. A União Europeia, de que a Estónia é membro, não é nada disto.

Mateus

 




PSD

Um partido fundador da democracia deveria saber manter uma distância “higiénica” face a uma formação com um discurso xenófobo e racista. O oportunismo já tinha começado nos Açores. Pelos vistos, o “estender de mão” prolonga-se com a nova liderança. É pena.

quinta-feira, setembro 22, 2022

“A Arte da Guerra”


As eleições legislativas em Itália e em São Tomé e Príncipe e os problemas de Vladimir Putin na cimeira de Samarcanda da Organização de Cooperação de Shangai - temas da conversa que tive com o jornalista António Freitas de Sousa, no “A Arte da Guerra”, o podcast de política internacional do “Jornal Económico”. 

Pode ver aqui.

Os recessivos

Uma forte recessão externa pode facilmente contagiar a nossa economia. Mas a ânsia com que se vê as cassandras já a anteciparem a recessão faz-nos lembrar que são os mesmo - isso mesmo, esses! - que, há uns tempos, previam que vinha aí o diabo. Não veio: levaram com a geringonça.

Segurança

Anda aí uma polémica sobre a adjudicação de um contrato para um regulamento municipal sobre trotinetas e coisas assim. A mim tanto me faz quem vai escrever o texto, desde que o faça bem. A única coisa que gostava (mas temo muito que não aconteça) é que a regulamentação não viesse a ter a menor ambiguidade que se refletisse na sua aplicação, não permitindo que alguém argumente que “o texto não é taxativo”, que “há uma margem de interpretação a considerar”, que “há zonas cinzentas que dão aso a leituras diversas” e outras pequenas armadilhas de “juridiquês” que podem impedir o fim da “selva” em que se vive.

País livre

Claro que devemos dar asilo político a quem foge do regime de Putin. Como devemos sempre ter as portas abertas e não criar dificuldades a todos os russos que queiram viajar para Portugal, sem lhes perguntar o que pensam sobre Putin ou sobre o que quer que seja. Essa é a diferença de um país livre.

Facha e bela


Alguém, ontem, falando de Giorgia Meloni: “A facha é bem gira!”. De facto, é, embora isto de dizer que alguma mulher ”é gira” deva desencadear um coro de acusações de sexismo, talvez por assim estarmos implicitamente a discriminar quem o não é. Ouvi responderem-lhe: “É gira mas é facha”.

Russos


Tal como acontece, por estes dias, com a maioria dos brasileiros com quem falo, é dificil conversar com alguém que seja russo e sentir que, ao comentar a situação do seu país, essa pessoa consegue ganhar alguma distância e objetividade. Mas, ao contrário dos brasileiros, que se estão nas tintas sobre o que pensamos dos políticos de topo do seu país, os russos pronunciam-se sempre, sobre Putin ou sobre o regime russo, tendo como ponto assente que, do nosso lado, há já um “partis pris” assumido. Daí que adequem o discurso à circunstância de andarem entre nós, o que artificializa os contactos. 

Do que escrevi pode deduzir-se que tenho o ensejo de andar aí a falar com imensos russos. Não ando. Nos últimos sete meses, falei com três. Mas tenho pena de não ter falado com mais.

Um deles reagiu como eu esperava: disse logo o pior possível de Putin, achando que eu ficava confortado. Mas pareceu-me muito sincero. 

O segundo russo, aliás, uma russa, nascida bem distante de Moscovo, reagiu, desabrida, contra uma leve menção à Ucrânia, tida como coio de nazis e fonte de todos os males que, nos dias de hoje, podem ocorrer à Rússia. Não falou nunca de Putin, mas admito que fosse fã. Sermos um país livre dá-nos a vantagem (alguns acham isso mal, mas não tenho o menor respeito por quem pensa assim) de poder acolher opiniões contrastantes. É uma frase batida, mas foi para isso que se fez o 25 de abril. 

Da terceira conversa, que tive muita pena pelo facto de ser tão breve como foi (todas foram, devo confessar), tenho uma recordação mais interessante. Essa pessoa, que não tinha a mais leve simpatia por Putin, com alguma não escondida emoção, falou-me da existência, nos dias de hoje, de “três Rússias”. 

Descreveu o sentimento dos russos mais velhos, muitos dos quais viveram adultos na União Soviética. A maioria não tem saudades do comunismo, têm saudades da segurança na vida quotidiana, ainda que espartana - na rua, no emprego, na saúde. Fez-me recordar o que li num livro que muito me impressionou: “O Fim do Homem Soviético”, de Svetlana Aleksievitch. Putin restituiu-lhes um pouco isso, bem como o sentimento de que no Kremlin está alguém que comunga com eles o sentido patriótico. Essa pessoa disse-me ainda uma coisa estranha: que, para essa gente, Putin é como que uma figura “religiosa”, que corporiza a nação. Será assim? Não fazia a menor ideia.

Depois, falou-me de uma outra Rússia, dos mais jovens, que abominam Putin e a clique dirigente, que são globais na cabeça, andam nas redes sociais e acham todo aquele aparato burocrático uma coisa sem sentido. Segundo ele, algumas dessas pessoas estavam com Navalny, mas “muito pouca gente conhece Navalny na Rússia”. É a espuma política urbana, gente que quer liberdade, viver à vontade, viajar e ser feliz. O regime detesta essa gente, porque a não consegue “agarrar”.

Essa pessoa com quem falei (há mais de dois meses) não ia à Rússia desde abril, mas disse-me que, quando de lá saiu, entre os seus conhecimentos, não tinha encontrado ninguém que estivesse convencido da utilidade da guerra, mesmo que alguns subscrevessem a teoria do “cerco” pelo ocidente e pela América, e não tivessem particular simpatia pela Ucrânia (“A Ucrânia e os ucranianos nunca foram muito populares na Rússia”).

Na descrição que essa pessoa me fez de uma terceira Rússia, onde estavam bastantes amigos seus, recordei o estado de espírito de muita gente durante o Estado Novo: viviam à margem da política, evitavam “meter-se” com o poder, criticar ou apoiar quem está “lá em cima”, tentando apenas sobreviver entre as pingas e levar a vida o melhor possível. Alguns desses russos viajavam pelo estrangeiro e, sem serem ricos, tinham uma vida razoável. Talvez o efeito das sanções os venha a tirar da letargia em que vivem, disse-me o meu interlocutor.

Que pena tenho de não ter tido a possibilidade de prolongar a conversa com esse russo que conheci, uma tarde, no Porto, um homem lúcido e, talvez por isso, visivelmente triste. Não deve ser fácil ser russo, pelo mundo, nos dias de hoje.

quarta-feira, setembro 21, 2022

Élia



Tenho amigos que morrem discretamente. Agora, foi a vez da Élia Rodrigues.

Alimento a ideia de que cruzei a Élia, pela primeira vez, num corredor da nossa embaixada em Luanda, nos idos de 82. Era economista, "número dois” do recém-criado ICEP na capital angolana. 

A Élia era um mulher alta, muito bonita, inteligente e extraordinariamente simpática. Era então casada então com um meu antigo colega de "tropa", o Leonel, um amigo que viria a desaparecer nas vagas do tsunami, em 2004, na Tailândia.

Com naturalidade, a Élia passou a acompanhar-nos em todos os momentos em que, nessa Luanda de quotidiano difícil, inventávamos coisas para entreter o tempo que nos sobrava, entre os dias de muito trabalho e as noites de recolher obrigatório: almoços regulares na nossa casa no “compound” da embaixada (a Élia trabalhava no 2° andar, eu trabalhava no 3° e vivia, com a minha mulher, no 4° Andar), uma imensidão de jantaradas com amigos, idas ruidosas a Cabo Ledo, noites divertidas na casa dos "Guedais”, do Zé Guilherme Stichini Vilela, do Fernando Valpaços, da Alzira e João Sobral Costa, tardes serenas de conversa no Mussulo. Tenho uma fotografia com a Élia no monomotor em que o Pena nos levou a Benguela, ela divertida e eu num susto, pela consciência tardia dos riscos da viagem.

Nada fazíamos, nessa nossa Angola em guerra civil, sem a Élia. Na sua casa, num daqueles prédios luandenses imensos, em forma de "livro", creio que num 19° andar, frequentemente sem elevador, conheci gente interessantíssima, porque a Élia construía e cultivava amizades preciosas. Numa dessas noites, vivemos, esgazeados, em direto, as imagens televisivas da tragédia futebolística de Heisel. Às vezes, para a fazer sair de casa para um jantar, mobilizávamo-nos para arranjar alguém que ficasse com o seu “monstrozinho”, como ela chamava carinhosamente à pequenina Filipa, a quem mando um beijo saudoso, com o nosso pesar.

Depois, nas décadas seguintes, com a nossa mútua vida errante, encontrávamo-nos a espaços com a Élia - frequentemente em Lisboa, também em Londres, mais tarde em Berlim, onde ela veio a trabalhar, e em Viena, onde eu então vivia. Um dia, recordo a barulheira que fizémos ao cruzarmo-nos, por mero acaso, numa esquina do Sablon, em Bruxelas! 

Quando, em 2001, fui viver para Nova Iorque, a Élia lá estava a receber-nos, como depois esteve em Washington. Sempre igual, sempre calorosa, um esteio de amizade, de companheirismo. E sempre com uma imensa coerência, nas ideias e nas opções de vida.

Com a Élia, as conversas eram retomadas como se tivessem sido suspensas ontem, muitas vezes ao lado de pessoas que havíamos conhecido por seu intermédio. Quanta gente, ao longo dos anos, me surpreende ao dizer: “Temos uma grande amiga comum, a Élia”. Entre nós, foi uma amizade firme, sólida, sem sombras, feita da partilha de muitas coisas.

Um dia, já há bastantes anos, chegou-nos a notícia: a Élia estava com sinais de Alzheimer. Lembrámo-nos então, de imediato, da doença que afetara a sua mãe e de que ela nos contara o calvário. Já depois da deteção da doença, encontrámo-la ainda em algumas escassas ocasiões, por Lisboa. Assumia, com coragem, a situação que em si galopava, brincando mesmo com os seus lapsos. Mas aquele sorriso, bom e bonito, ia ficando mais triste, o olhar mais distante, pressentia-se que a estávamos lentamente a perder. Como veio a acontecer.

Deixo uma palavra de imensa admiração para os amigos mais próximos, que a acompanharam até ao fim, e que, durante muito tempo, insistiram em fazê-la conviver e viver o mundo que lhe era ainda acessível.

A Élia, que já tínhamos perdido há muito, desaparece agora de vez. Ficam-nos histórias, conversas, cumplicidades, gestos. A tristeza que sinto, ao saber da morte física da Élia, leva a que me apeteça dizer um palavrão, de raiva.

Rigor

Quando é que os nossos jornalistas e gente aqui pelo Twitter aprende, de vez, que “Financial Times” se esteve com “c” e que não é “Finantial”? (Já que estou com a mão na massa: é “wishful” e não “wishfull” e é “welcome” e não “wellcome”. Pronto, andava para dizer isto há muito…)

Ainda a tempo: num âmbito diferente, não traduzam “eventually” por “eventualmente” e “actually” por “atualmente”.

terça-feira, setembro 20, 2022

À espera de Putin

 A Rússia pode não estar a ter muitas vitórias militares por estes dias, “to say the least”. Mas, ao fazer “desesperar” todos os serviços noticiosos pelo seu discurso, Putin “invadiu” as direções de informação do globo.

Brasil a uma só voz?

Eu sei que não vai bem com o “ar do tempo” dizer isto, mas o que Jair Bolsonaro disse na Assembleia Geral das Nações Unidas sobre a questão ucraniana e a Rússia não me parece diferir, um milímetro que seja, daquilo que Lula da Silva pensa.

segunda-feira, setembro 19, 2022

Coroa

Os monárquicos portugueses tiveram, por estes dias, momentos de forte visibilidade. É irónico pensar que é preciso que morra alguém para ficar evidente que o ideal monárquico continua vivo entre nós

domingo, setembro 18, 2022

O empresário e a diarista


As eleições brasileiras entraram na reta final. Os candidatos da “terceira via”, como era expectável, apagaram-se. Na arena - porque é quase disso que se trata - ficam Lula da Silva e Jair Bolsonaro. Parte do eleitorado que, em 2018, ajudou Bolsonaro a derrotar Fernando Haddad, o candidato “suplente” de Lula, então na prisão, estará agora inclinado a dar o seu voto ao antigo presidente.

Gostava de poder estar dentro da cabeça dessas pessoas. Não será difícil conseguir entender que estes anos com Bolsonaro tenham desiludido muita gente que nele votou. Bolsonaro acabou por sair muito “pior do que a encomenda”. Mas é-me menos fácil entender como é que alguém que, em 2018, fez essa opção, muito para afirmar a sua rejeição daquilo que considerava ser a “banditagem” do PT, que achava Lula um ladrão e um corrupto, faça agora o salto de campo e, num ato de contrição, seja capaz de dar o seu voto àquele que, há muito pouco tempo, diabilizou e que, se for eleito, trará o PT de regresso aos corredores do poder. 

Essas pessoas vão mudar de sentido de voto por considerarem Lula inocente das imputações de que se viu formalmente exonerado? É que, em 2018, a grande maioria das pessoas que votou Bolsonaro não parece ter chegado hesitante à boca da urna. Um voto em Bolsonaro, mais do que a confiança naquele antigo capitão, que ostentava um discurso de extrema-direita e de elogios à ditadura militar, foi um voto afirmadamente contra Lula e contra o PT. Lula santificou-se assim tanto aos olhos dessas pessoas? E o PT, foi lavado em água-benta?

Um dia, no final de 2006, num daqueles imensos (e, em geral, muito simpáticos) jantares em que Brasília era fértil, a uma figura do empresariado local, ao ver-se obrigado a ter de aceitar a reeleição de Lula, ocorrida uns dias antes, ouvi este desabafo: “Embaixador, não votei no Lula: não consigo ter o mesmo candidato que a minha diarista”. (“Diarista”, no Brasil, é a palavra para mulher-a-dias). Imagino que a frase possa chocar, pela arrogância classista que lhe está subjacente. Mas o Brasil (também) é assim. Essa pessoa terá então votado em Geraldo Alckmin. Infelizmente, a pessoa já morreu: é que eu gostaria de perguntar-lhe o que acha do facto de Alckmin ser, nos dias de hoje, candidato a vice-presidente na “chapa” de Lula…

Para além dos novos eleitores, para Lula ser eleito vai ser necessário que muitos dos que, em 2018, votaram Bolsonaro, acabem por se reconciliar com a ideia de que, desta vez, vão votar ao lado da sua “diarista”. Embora a esmagadora maioria dos brasileiros não tenham “diarista” e, além do mais, esteja por provar que muitas “diaristas” não tenham escolhido Bolsonaro… Enfim, como disse um dia António Carlos Jobim, “o Brasil não é para principiantes”.

sábado, setembro 17, 2022

Alemanha

Acredito que esta geração política alemã esteja, com sinceridade, ancorada nos princípios da paz e da democracia, pelo que não me assusta a recuperação do seu poderio militar. Mas não sei se, por essa Europa, nas capitais de alguns dos aliados da Alemanha, todos pensam como eu.

sexta-feira, setembro 16, 2022

Paulo Pitta e Cunha


1975. Creio que foi em maio. Com a gravata então de regra e uma forte bigodeira, fui fazer as provas orais do concurso para entrada na diplomacia. Tinha ultrapassado as provas escritas e, pelo caminho, para as vagas existentes, já tinham caído algumas centenas de candidatos.

Posso não estar a ser totalmente rigoroso, mas creio que havia, num saco, 99 bolas numeradas, correspondentes a outros tantos temas: 33 de Direito Internacional, 33 de Economia Política e 33 de História Diplomática. Cada candidato metia a mão no saco e tirava uma bola. Saiu-me um tema de Economia Política. Era sobre o processo de construção europeia. 

À época (noto que estávamos no início do “Verão Quente” de 1975), a ideia de Portugal poder vir a aderir às então designadas Comunidades Europeias nem sequer era objeto de discussão. Ninguém, que me recorde, falava sobre isso.

Eu tinha exatamente quatro horas para me preparar para conseguir fazer uma exposição de vinte minutos sobre o tema sorteado, após o que, ainda sobre o mesmo, seria interrogado durante mais vinte minutos. (Resta dizer que, ao final do dia, havia ainda uma segunda prova: dos 66 temas das outras duas categorias de temas, tínhamos de indicar um, sobre o qual éramos interrogados por mais vinte minutos). 

Recordo haver colegas que tinham preparado pequenos dossiês sobre cada um dos 99 temas! Eu, que fazia o concurso no meio do meu serviço militar e com um emprego que me ocupava todas as manhãs, não levava uma única linha preparada sobre nada! Comigo apenas tinha um livro de Ramón Tamames sobre economia internacional, o clássico manual de Direito Internacional de André Gonçalves Pereira e dois pequenos volumes da “Larousse de poche” sobre História do século XX. Sobre a temática europeia, eu nada tinha à mão para consulta. 

Cheguei à biblioteca do MNE e descobri um único livro relevante. Não consigo recordar o título (se alguém o encontrar, completarei esta nota), mas era um conjunto de estudos sobre a questão europeia. Assinava-os o professor Paulo Pitta e Cunha.

Eu pouco sabia sobre o assunto, que pouco me motivava, pelo que, naquelas quatro horas, absorvi daquele livro tanto quanto pude. Fui para essa prova oral com umas notas apontadas numa folha A4. E fiz o exame. O professor universitário, membro do júri, que me calhou em rifa, no fim desses difíceis quarenta minutos, considerou que eu era digno de ser aprovado. Como esse professor, como viria a constar, nunca tinha dúvidas e raramente se enganava, presumo que terá tomado a decisão certa.

Fiquei assim a dever a Paulo Pitta e Cunha a “ciência” que me valeu ser escolhido nessa prova decisiva para o acesso às Necessidades. Um dia, contei-lhe pessoalmente esta história. Ele, supreendido e risonho, exclamou: “Não me diga! Fico muito satisfeito por ter tido essa contribuição para o início da sua carreira”.

Há minutos, acabado de chegar a Lisboa, ao abrir uma revista, li a notícia da morte, há dias, do professor Paulo Pitta e Cunha. Deixo aqui esta nota singela de memória e de homenagem a um grande europeísta e insigne académico, com um abraço amigo de pesar ao seu filho Tiago.

quinta-feira, setembro 15, 2022

Seleção


Em matéria de camisolas para a seleção, pelos vistos, já tudo é possível. Não tenho nada contra, mas, por muito que me esforce, não consigo ter nada a favor disto.

Companhias aéreas


Estou a entrar num avião, de regresso a Lisboa, com Nova Iorque ao fundo.

As viagens aéreas são, para mim, momentos "sagrados", em que, quando não passo "pelas brasas", aproveito para ler coisas que tenho em atraso. Com esta última finalidade, levo sempre comigo quilos de jornais e revistas, dois ou três livros dentre a dezena que ando simultaneamente a ler. O que carrego para uma viagem, se acaso chegasse ao fim da respetiva leitura completa, equivaleria, no mínimo, ao tempo de três percursos. Mas é assim mesmo: sou um otimista da leitura.

Porque as viagens são isso - um incomparável tempo descansado para ler, sem ser interrompido por telemóveis ou conversas -, detesto diálogos com os parceiros do lado, a menos que, por uma qualquer razão, seja eu a ter a iniciativa de os encetar. Mal me sento (e luto pelos locais de janela, para poder "blindar-me"), evito reagir a qualquer casual comentário do viajante próximo, do tipo "está muito calor, não acha?" ou "cada vez há menos espaço entre as cadeiras" ou "será que ainda nos vamos atrasar muito?" ou outras vetustas "alavancas" análogas, usadas para iniciar uma troca de palavras. É que, se a minha resposta ultrapassar um seco monossílabo, a possibilidade de vir a ter de entabular uma conversa que afeta o meu tempo de leitura torna-se imensa. 

O período da refeição é, de longe, o mais perigoso, porque geralmente estamos desmunidos de peças de escrita, razão pela qual cuido sempre em deixar um pedaço de jornal a espreitar por debaixo do tabuleiro, fingindo que nele me concentro (assim evitando elaborar na resposta ao "que tal achou o tinto?"). Devo dizer que, com as "horas de voo" que tenho no currículo, considero-me já um "profissional" batido nesta matéria, conheço "de ginjeira" os truques todos e, quase sempre, tenho garantido sucesso neste meu (por vezes, artificialmente pouco simpático, reconheço) procedimento, conseguindo escapar aos palradores aéreos. 

Historicamente, tive um dia um azar que para sempre me ficou gravado na memória. Ia, precisamente ao contrário de hoje, de Lisboa para Nova Iorque e tinha preparado tudo para as minhas cinco horas e tal de viagem (ah! porque não durmo bem em aviões, eu também sou "aquele" passageiro incomodativo que leva sempre a luz de leitura aberta, mesmo no bréu coletivo da cabine, durante as noites, para grande raiva dos restantes viajantes): jornais, livros de vária espécie (recordo que havia poesia pelo meio) e até banda desenhada. Tinha também um "laptop" para escrever uma coisa em atraso e havia prometido a mim mesmo aproveitar para nele arrumar fotografias. Tudo estava preparado para uma bela viagem, no incomparável prazer da solidão aérea.

Acrescia a constatação feliz de que o lugar ao lado do meu iria ficar vago, o que me permitiria, desde logo, fazer nele um estendal da parafernália de leitura que transportava. Nessas ocasiões, devo confessar, passo minutos de angústia até confirmar o fecho da porta do avião, momento de alívio a partir do qual sei que ninguém mais virá ocupar esse espaço. E assim aconteceu, nessa ocasião. Como nesses tempos a classe executiva era de regra (há muito tempo que isso acabou!), até aceitei uma taça de champanhe, mais para brindar ao lugar vazio ao meu lado do que por devoção ao dito.

O avião descolou, recostei-me e comecei a sessão de leitura, saltitando entre o muito que trazia. De súbito, ouvi: "Meu caro, vi que você estava sentado aqui. Eu ia ali atrás. Importa-se que eu ocupe este lugar vago ao seu lado?". O que é que se responde a isto? "Importo, claro, desampare-me a loja, não me chateie"? Não é possível. 

Era um político português, um homem simpático mas um falador endémico, aquilo a que os brasileiros chamam "um chato de galocha", o qual, começou por me explicar que também ia para Nova Iorque (como se eu suspeitasse que fosse para Ulan Bator...) e que, praticamente durante as cinco horas da viagem, me atazanou os ouvidos com historietas, perguntas e comentários. De rastos ficou todo o plano de leituras que, com imenso critério, eu tinha premeditado para esse voo. Ainda hoje, muito tempo depois, não me recompus do trauma, como se vê.

quarta-feira, setembro 14, 2022

O outro lado

Ontem, ao ouvir uma intervenção, num determinado contexto, lembrei-me do famoso comentário de Margareth Thatcher de que gostaria que todos os seus assessores fossem manetas. Explicava a antiga primeira-ministra britânica: "quando me dão um parecer, para se não comprometerem, apresentam logo uma outra possibilidade oposta: ‘on one hand’ e ‘on the other hand’ “.

Lembrei-me então dos tempos em que algumas "informações de serviço" no MNE assumiam um estilo formalmente subserviente, marcado por um tom modestamente auto-dubitativo. Às vezes, o autor do texto sugeria opções possíveis, não raramente em contraste, e, no final, qual Pilatos, "lavava as mãos", com a frase clássica: "V. Exª, no seu alto critério, melhor decidirá".

Como devem imaginar, a apresentação de várias opções, sem coragem para as hierarquizar valorativamente, dá um jeitão, a quem tem de decidir...

terça-feira, setembro 13, 2022

Godard


Morreu Jean-Luc Godard. Tinha 92 anos. Marcou uma geração do cinema francês. Nos meios certos, em Portugal, foi uma venerada referência. Em 2009, quando criei este blogue, chamei-lhe “Duas ou Três Coisas” em homenagem ao seu “Deux ou Trois Choses que je sais d’elle”.

Cruel dilema


Continuo a trabalhar na preparação de uma intervenção que tenho de fazer daqui a horas ou espiolho a biografia do genial Art Buchwald, que há pouco descobri numa livraria?

segunda-feira, setembro 12, 2022

O tempo e o modo

Troca de palavras, ontem à noite, em Kansas City, com o motorista que me levava do aeroporto ao hotel. Falei da data, 11 de setembro, há precisamente 21 anos. Resposta: “In New York? Sad! But I like the new building!“. Idade do motorista: 20 anos.

Trivialidade

Aprendi hoje que cada monarca britânico, na efígie que dele surge nas moedas ou selos, tem a cara voltada sempre e só para um dos lados, alternando com a mudança dos titulares. Isabel II olhava para a direita, Carlos III olhará para a esquerda. O que nós temos ficado a saber sobre a família real britânica que não tínhamos a mais leve necessidade de saber! É o esplendor da vitória da trivialidade, da cultura de almanaque.

domingo, setembro 11, 2022

Tanner


Alain Tanner apaixonou-se por Lisboa. Filmou ali e chamou-lhe “A Cidade Branca”. Lisboa não é uma cidade branca, como Argel. É a cidade da cor. Tanner enganou-se, mas isso é desculpável. A luz de Lisboa encandeia naturalmente um suíço. Tanner morreu hoje.

Meio século


Fui aos Estados Unidos, pela primeira vez, em 1972, há precisamente 50 anos. 

Por essa época, os amigos e conhecidos da minha geração andavam mais pela Europa. Eu também já tinha feito a peregrinação clássica às “Mecas” do tempo, Paris e Amesterdão, com naturais “expedições” complementares à Suécia e Dinamarca. Tinha ido à boleia, de Portugal, por duas vezes. 

Um dia, aproximando-se as primeiras férias do meu primeiro emprego, dei por mim a pensar que era capaz de ser “giro” ir aos “States”. Nova Iorque era um mito como cidade (se eu escrevesse que era um “mito urbano” iria criar uma confusão conceitual, pela certa!). Tinha tantas daquelas avenidas e esquinas dentro da minha cabeça, dos filmes, que achei imperioso colar a realidade ao mito. Na saudosa agência de viagens Mundial de Turismo, na António Augusto de Aguiar, 6.800$00 era o custo de uma viagem de ida-e-volta a Nova Iorque, na Pan American, com alojamento! É verdade! E lá fui eu, por uma semana, com um grupo do Autoclube Médico Português, em que até me dei ao luxo de dar uma saltada a Washington, naqueles famosos autocarros da Greyhound.

O hotel onde fiquei em Nova Iorque, o Edison, tinha sido um dos cenários de “O Padrinho”. Era muito próximo da Times Square, a dois passos do falso fumo a sair da boca do anúncio com um cavalheiro, com ar do americano “nice guy”, de gabardine e chapéu, que víamos nas “Seleções” e que ali fumava cigarros Camel, na altura um “landmark” publicitário da cidade por todo o mundo. 

Recordo-me bem da noite da chegada em que, pela primeira vez na minha vida, tive à disposição, no meu quarto, uma televisão com uma multiplicidade de canais a cores! Nós, em Portugal, por essa altura, tínhamos um único canal a preto-e-branco da RTP “e viva o velho!”, como então se dizia. Não havia por ali, contudo, qualquer comando do aparelho à distância, pelo que, durante horas, até que o “jet lag” ditou a sua lei, fiz um “shuttle” entre a cama e o televisor, para ir apreciando, deslumbrado, aquela inédita diversidade de opções. Tempos ingénuos!

Nesse ano de 1972, só uma das Torres Gémeas estava construida, com a outra ainda a caminho de ser completada. Nesse tempo, nem sonhava que iria estar a viver em Nova Iorque no dia 11 de setembro de 2001, no dia em que o ódio iria deitar abaixo as torres e algumas certezas.

Hoje é dia 11 de setembro. E hoje vou partir, daqui a horas, em trabalho, para os Estados Unidos, para falar numa conferência sobre a América e o modo diferenciado como a Europa (as “ Europas”, para ser mais rigoroso) para ela olha, nos dias de hoje. A curiosidade é a viagem ter lugar meio século depois de lá ter estado pela primeira vez.

Estados de alma

Há uns anos, tivemos por cá uma amostra paroquial de um governo que detestava o Estado a dirigir esse mesmo Estado. Era a lógica de "me...