Há poucas semanas, numa entrevista a Maria João Avillez na CNN Portugal, o papa Francisco, sem enjeitar as responsabilidades da igreja perante as cada vez mais frequentes revelações sobre abusos sexuais no seio da instituição, lembrou, e bem, que a maior parte dos crimes desta natureza são praticados nas famílias.
As estatísticas dão razão ao papa, mas não podem absolver a igreja católica, por pequena que seja a sua quota de culpa. E é também por essa razão, somada às evidências que já não podem ser negadas, que a própria igreja tem vindo a autocriticar-se. E só lhe fica bem.
Há uns tempos, estive à conversa com um amigo que viveu uns anos num seminário. Veio à baila a questão dos abusos sexuais que por ali se praticavam. Esse amigo referiu-me que, nesses tempos, a fragilidade dos filhos de gente pobre, nomeadamente oriunda de zonas rurais, enviada para os seminários como único caminho para obter uma educação e a esperança de algum futuro, era por vezes explorada por religiosos abusadores. Esse era então um “segredo de Polichinelo”, numa época em que a força da autoridade, bem como a complacência da instituição, conduzia a um manto de silêncio sobre tais práticas.
Nos últimos dias, surgiram acusações contra o bispo timorense Ximenes Belo, dando conta de se tratar de histórias antigas, pelos vistos arquivadas na memória embaraçada da hierarquia religiosa.
Tive oportunidade de encontrar Ximenes Belo quando Timor-Leste precisou da sua coragem. Com ele e com Ramos Horta, partilhei uma jornada em Genebra, em setembro de 1999, durante a qual, no seio da então Comissão dos Direitos Humanos, foi possível isolar a Indonésia, no caminho para a libertação do território. Ambos viriam a representar a determinação dos timorenses, com a justa atribuição do Prémio Nobel da Paz, em 1996.
Há menos de três anos, cruzei Ximenes Belo numa pastelaria de Campo de Ourique. Conversámos uns minutos e recordámos esses tempos. Nunca mais o vi, desde então. A tragédia pessoal, pelos vistos, bate-lhe agora à porta. Terei imensa pena, se as graves acusações que sobre ele impendem forem verdadeiras. Mas uma coisa não apaga a outra: um eventual comportamento dessa natureza, a confirmar-se, deve ser condenado e denunciado, mas não pode nunca anular a admiração que a sua luta por Timor-Leste concitou pelo mundo.
10 comentários:
“Tragédia pessoal”? de quem?
«...se as graves acusações que sobre ele impendem forem verdadeiras»
Verdadeiras ou não, o dano está feito. É este o problema da voragem mediática dos nossos dias. Uma suspeita ou uma acusação têm maior impacto na vida concreta de pessoas concretas do que uma condenação, sem que isso cause um sobressalto cívico a quem tem voz e presença na praça pública, como fica bem ilustrado neste post de Seixas da Costa. Se vozes como a sua não se erguem nas muralhas da Cidade, quem vai defender o Estado de Direito?
MRocha
Estas suspeitas relativamente ao Ximenes Belo são tão antigas quanto a presença da ONU em Timor. Simplesmente, não havia interesse algum em explorar o assunto.
Devo dizer que nunca gostei do homem e do seu sorriso melífluo mas isso não me impediu de sair à rua naquele dia em que ele visitou Lisboa e milhares de lisboetas fizeram uma espécie de cordão humano ao longo das ruas por onde ele passou (a mim "coube-me" a Av. de Berna, parece-me).
Ximenes foi um símbolo da resistência timorense e o papel que ele teve foi importantíssimo. Sendo um padre, contava com algum pudor por parte dos indonésios em o atingir e ele valeu-se bem desse estatuto para lutar por Timor.
Não deixa, no entanto, de ser curioso que os serviços secretos indonésios não soubessem da alegada pedofilia do bispo ou que, sabendo, não tivessem usado essa arma para o abater junto da opinião pública...
Com o passar do tempo talvez apareçam outras histórias de Timor, sobre as quais desde sempre se ouviram "bocas": O atentado a Ramos Horta, a prisão de Xanana Gusmão (e, também, o atentado de que foi alvo), o verdadeiro papel da mulher de Xanana, etc.
As pessoas ainda estão vivas e há necessidade de estabilidade em Timor. Ximenes já lá não está, não conta e, portanto, pode ser posto ao lume.
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Tal como acontece hoje a propósito da Ucrânia, antigamente também tínhamos por cá colaboracionistas. Em Timor não havia nazis porque os timorenses eram "comunas", claro. Era preciso paz. A Indonésia era uma força económica e só tínhamos a ganhar em comerciar com ela. Os timorenses queriam ser indonésios. A Indonésia fazia muitas melhorias em Timor. Os guerrilheiros timorenses eram terroristas. A Resistência não tinha força alguma, etc.
A tragédia pessoal bate-lhe agora à porta.
Que expressão tão esquisita. Trata-se de uma tragédia, supõe-se, fabricada por ele próprio. Não é algo que lhe bate à porta, é algo que ele próprio produziu.
Entrevistei o Bispo Belo em 1992, parte de uma série de entrevistas que na altura efetuei a vários líderes timorenses, nomeadamente Ramos Horta, João Carrascalão e Vicente Guterres. Pareceu-me uma pessoa sábia e moderada. Curiosa era a sua relação com Ramos Horta, com o qual viria mais tarde a partilhar o Nobel e que odiava o bispo, chegando Horta, na entrevista que me concedeu, a dizer: "O bispo Belo é um palhaço"; escusado será dizer que a frase resultou numa senhora de uma manchete para o jornal onde trabalhava no dia seguinte. Acho esta história muito estranha. Trinta anos depois, com o bispo velho e cansado, retirado, aparecem estas alegações. E quem lhes deu rosto?, um jornal holandês, tinha de ser um jornal holandês... Espero que esteja inocente, sendo que, claro, não sei se está ou não. O que sei é que dificilmente se poderá apagar a mancha na reputação de um homem que sempre considerei bom e mais digo que esta história me cheira a esturro.
Não estou a focar este caso em particular, não acuso sem provas concludentes ninguém mesmo que os indícios pareçam ser fatais.
Estou totalmente de acordo com a sua conclusão em termos genéricos mas, como sabe porventura melhor que eu, não é assim que as coisas funcionam.
Vivemos tempos interessantes também aí pois a partir do momento que se começa a afirmar por aí que "pode ter sido", "alegadamente fez", "testemunha que não se quer identificar afirma que" e outras frases catitas deste tipo acusatório para o suposto malandro e desculpabilizante para o também suposto transmissor não há caminho de retorno na opinião pública sedenta de sangue e que se alimenta de todo o tipo de rancores.
Repito que não estou a falar deste caso em particular, é cedo para isso.
Mas o contributo extraordinário que ele deu e lhe valeu o Nobel da Paz fica arrumado em 5 minutos mesmo que não seja provado nada.
E se fôr provado então já está arrumado para muita gente que nunca lhe deu particular atenção a gabar-se de que "aquele nunca me enganou".
Os abusos (em Portugal) dos senhores padres sobre menores, cremos que ultimamente são mais avultados do que noutros tempos.
É que antes havia um forte travão contra o abuso de menores.
Esse travão era responsabilidade das "beatas", "ratas de igreja", umas senhoras que se encarregavam de dar em cima dos senhores padres, se fossem atiradiços e em idade de reprodução.
Agora já não há esse travão, ou haverá mas muito reduzido.
???
Não estou de acordo consigo. Há manchas que contaminam tudo.
Como é evidente, uma coisa nada tem que ver com a outra nem a invalida. No entanto, no mundo actual, as pessoas misturam assuntos com a maior das facilidades e criam personalidades unidimensionais dos outros. Não é assim, ninguém tem só um lado, para o bem e para o mal.
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