sexta-feira, setembro 30, 2022

Nervos de aço


A Federação Russa aceitou o pedido de integração das quatro repúblicas criadas no território da Ucrânia, duas em 2014, duas outras pelos referendos organizados na última semana.

Sei que, chegados a este ponto, muitos leitores devem estranhar que o parágrafo com que encimei o texto não esteja recheada de aspas, que a palavra repúblicas não esteja antecedida do ritual auto-proclamadas, que o termo referendos não tenha antes o adjetivo de falsos. Fiz isso de propósito, porque as evidências devem falar por si e as pessoas não precisam de muletas gráficas para entenderem o óbvio. Aquelas repúblicas e a sua independência fugaz valem o que valem, os atos referendários têm a legitimidade que cada um quiser atribuir-lhes. A cada um a sua verdade, ou a sua mentira.

No seu discurso de hoje, somado a outros recentes, Vladimir Putin foi muito claro. A sua leitura da Rússia mostra uma evidente não acomodação à realidade que constituiu a implosão da União Soviética, em 1991, da qual resultou a criação de 15 Estados. Putin não desejava o fim da União Soviética. Já agora, eu relembraria que Mikhail Gorbachev também não.

O que é distintivo nesta doutrina de Putin é a noção, que hoje ficou ainda mais clara, se necessário fosse, de que os espaços geográficos da antiga URSS onde ainda exista uma significativa presença de populações russas constituem, para a Rússia de Vladimir Putin, territórios passíveis de integração na Federação Russa, tida relutantemente como a matriz institucional atual da pátria russa.

A lógica deste raciocínio é extremamente simples: trata-se de tentar reverter, na medida do que hoje ainda é possível, o destino criado a essas populações pelo ato de 1991, que, agora se percebe melhor, não é aceite por Putin como legitimador de fronteiras.

Se repararmos bem, o gesto de Moscovo, ao reconhecer, em 2014, as repúblicas da Abcásia e da Ossétia do Sul, áreas cindidas da Geórgia e das quais tinham saído, depois de conflitos armados, as respetivas populações não russas, já ia precisamente nesta linha.

Na Ucrânia vivia, até ao dia de hoje, a maior população russa expatriada. Na perspetiva de Moscovo, isso agora acaba: essas populações, e com elas os territórios em que residem, passam a integrar a pátria russa.

A circunstância da recolha de vontade se ter processado, nesses territórios até hoje ucranianos, debaixo de uma violenta ocupação militar, o facto de muitos outros cidadãos não-russos que aí viviam terem entretanto saído contra a sua vontade, não contando assim para o apuramento dos esmagadores resultados apresentados, parece não ter visto como afetando a legitimidade desse processo.

O dia de hoje é muito importante para o destino do Direito Internacional, sendo que ao dizer importante não lhe dou o significado de feliz.

António Guterres, ao pronunciar-se sobre a flagrante ilegalidade dos referendos e da sua sequência, com os processos de integração dos novos estados na Federação Russa, falou em nome de uma ordem internacional que tem a ONU no seu centro e que, ao longo de muitas décadas, tem sido o referente da gestão das relações entre os Estados, um pouco por todo o mundo.

Não podemos esquecer que outras potências relevantes, como é o caso dos Estados Unidos, várias vezes colocaram em causa a sua subordinação a esse modelo de gestão pactada do mundo. Aliás, a China continua a fazer o mesmo, com as suas iniciativas nos mares meridionais, dando mostras de ter uma leitura muito própria das regras internacionais.

Nunca, porém, um membro permanente do Conselho de Segurança da ONU assumiu, de forma tão flagrante, o seu afastamento deliberado do normativo internacional que vinha a reger a sociedade internacional, embora, cinicamente, tentando dar ares de a ele se subordinar, como a Rússia hoje fez.

Ao desafiar desta forma a ordem internacional, a Rússia abre caminho a que outros se possam sentir tentados a ir revanchistamente na mesma linha, criando talvez o momento mais perigoso que o mundo está a viver desde o fim do segundo conflito mundial.

Neste tempo de desvario acossado de Moscovo, o mundo democrático e, em especial, os Estados Unidos e a Europa, têm a estrita obrigação de manterem uma contenção de atitudes à altura das responsabilidades que têm na segurança global. Este não é o tempo para emoções, para gestos de gongorismo proclamatório, por muito que isso possa confortar o ar do tempo. É que é para firmeza, determinação e, em especial, nervos de aço.

10 comentários:

Mal por Mal disse...

?Um povo tão grande como são os russos estarão tão obtusos, para não dizer outra coisa, que se deixam abençoar por um bispo cristão que lhes diz para irem combater na Ucrania se querem ir para o Céu?

Eles que eram tão comunistas e tão ateus.

Anónimo disse...


Reconhece que a Rússia está a ser ( e tem vindo a ser..)"acossada". Por quem? Pelo "mundo democrático", deduz-se. Então porque não critica a falta de "contenção de atitudes" nessa politica de afrontamento e apenas a aconselha no contexto duma resposta aos eventuais "desvarios" dos "acossados" ? Confesso-me perplexo. Mas numa coisa lhe dou toda a razão: é preciso nervos de aço para digerir o gongorismo deste estilo de discursos.

MRocha

Francisco disse...

Como cliente habitual desta casa tão bem frequentada, sinto até algum peso de consciência pelo facto de não ter conseguido trazer até agora qualquer acha para a fogueira do debate de ideias, perante a substância de tanto que aqui foi dito e escrito nos últimos dias.
Estamos todos na orla da fumarola, enquanto o vulcão, debaixo dos nossos pés, faz a digestão ruidosa e difícil, da sua sopa magmática. Não, o mundo não vai mesmo voltar a ser o mesmo. E a pergunta capital é a de saber em que direcção queremos que ele gire. Por enquanto, temos os factos sobre a mesa - irrecusáveis - e temos também o que parece ser uma cegueira política sem limites, traduzida nomeadamente no comportamento seguidista deste directório de potências a que chamamos União Europeia e da sua inefável Presidente da Comissão, que por estes dias parece ter retomado a leitura dos textos evangélicos, como guias de orientação política que, a pouco e pouco, nos empurram para múltiplos abismos, de que a situação política na Suécia, na Itália ou na guerra russo-ucraniana, são exemplos mais evidentes. Exigem-se por isso, de facto, nervos de aço.

Adalberto disse...

E como se enquadram nessa lógica o Kosovo ou o Curdistão iraquiano ou o Sudão do Sul?
Não se enquadram? Então em que enquadram?

José disse...

[ A grandeza ]

O "Mal por Mal" chama "grande" ao povo russo. Mas, onde está a sua grandeza? No ter vivido no feudalismo até ao Séc. XIX? No ter passado do quase absolutismo czarista para a ditadura comunista que aguentou durante décadas sem reclamar? No ter permitido que do comunismo se passasse ao capitalismo selvagem? Ou de ter alimentado o Putin durante vinte anos? Estará a grandeza no silêncio e apoio aos crimes de guerra na Chechénia, na Síria, na Ucrânia? É uma questão interessante, parece-me, a da definição de grandeza...


[ A Federação ]

Esta coisa da "Federação Russa", repetida "ad nauseam" na comunicação social e "comentadorosfera", é um dos bons exemplos daqueles fenómenos de mimetismo que ciclicamente nos atormentam. Porque não "Rússia"? Alguém sente necessidade de falar em "República Federal da Alemanha", ou na República Federativa Brasileira, ou no Reino da Holanda ou na República Francesa, cada vez que se referem a esses países? Cheira-me que esta coisa da "Federação Russa" é uma espécie de lavagem de imagem da "Rússia" (a inocente e grandiosa), subjugada pela terrível "Federação".


[ A solução ]

Relativamente a esta publicação - e, à semelhança de várias outras do mesmo autor -, ao desfile de constatações - que estão ao alcance de qualquer pessoa minimamente informada -, segue-se o... nada. Afinal de contas, qual deve ser o plano de ação? Qual o passo seguinte? Há que ter calma, há que ter nervos de aço, há que ser determinado mas... com que objetivo? O que se deve, exatamente, fazer? O que se deve esperar? Calma foi o que o mundo teve depois da Chechénia, Síria e Crimeia. Muita calma, mesmo. E os resultados? O Mal venceu, sempre!

Vamos ter nervos de aço e rezar para que o Putin se acalme? Vamos ter calma e tentar convencer os ucranianos a abdicarem de 20% da sua Pátria? Vamos ser determinados e repetir inutilmente um qualquer mantra durante vinte anos? Irra, para platitudes, já me servem as conversas de café!

manuel campos disse...


Tenho 75 anos e portanto sou velho.
Mas nunca tomei um comprimido para nada faço 4 ou 5 kms a pé todos os dias nesta "Lisboa que eu amo" e a minha mais completa refeição do dia é o jantar(e o subsequente e sempiterno whisky).

Portanto há velhos e velhos e eu estou num lado e quase todos os meus conhecidos estão no outro, o da caixa cheia de comprimidos, do sofá em frente à televisão todo o santo dia e da torradinha com um cházinho à noite.

Mas para mim esta conversa, que se lê em tudo o que sejam caixas de comentários, do vamos lutar, vamos tomar atitudes fortes assim ou assado, não vamos negociar nunca jamais com bandidos, vamos dar cabo daquilo tudo e acabar com eles, é típica de velhos, ainda que mais novos que eu.
Tenho verificado que a maior parte das vezes nem filhos têm (quanto mais netos!) e, não tendo já muito com que se ralar em relação a um previsível longo futuro, podem entreter-se com as tais declarações de grandiosas intenções pois não vão andar por cá muitos anos.
Assim estão pouco ralados para o mundo que aí deixam apesar das juras de preocupação com o que vão deixar às gerações futuras (que não sabem o que são nem o que querem para as suas vidas, de um modo geral, eu sei porque os meus netos até já têm todos carta de condução).

Isto tudo faz-me lembrar sempre o muito popular "agarrem-me que senão eu mato-o" em que ninguém agarra e ninguém mata.
As pessoas deixaram de pensar, anda tudo muito nervoso (isso vê-se andando pela rua ou guiando pela estrada) e muito boa gente que tem medo de intervir numa simples discussão de rua está desejosa de desatar aos tiros (mas não são eles que os vão dar nem levar, claro).

Por isso faltam vozes que clamem por um pouco de calma e bom senso.
Não porque a calma e o bom senso por si sós resolvam este drama terrível, mas porque podem evitar que ele se agrave (e muito) ao permitir que aqueles que tomam decisões por nós se deixem arrastar pelos apelos das "redes sociais" e quejandas, sempre prontas para a luta no conforto da mantinha e das pantufas.

manuel campos disse...


Esqueci-me de acrescentar um ponto.

Quando se fala na necessidade de não serem dados passos precipitados e com risco de serem em falso, ouço da parte de muitos conhecidos (amigos só tenho quatro, como toda a gente) que é preciso actuar já e travar de imediato tudo.
E a seguir perguntam-me o que é que afinal eu proponho de concreto.
E eu devolvo e pergunto o que é que afinal eles propõem de concreto.
E ficamos assim, eu posso não saber mas eles também não sabem porque nenhum de nós sabe mais do que aquilo que conseguiu saber com o que leu e o que estudou (tem ar de Lapalissada, mas paciência).
De qualquer modo o Sr. Stoltenberg ontem deu a entender o que deu a entender e "à bon entendeur salut".

Anónimo disse...

Este texto só pode justificar-se por ter sido escrito para a CNN, como é sabido, um meio de divulgação de propaganda e defesa dos interesses do EUA pelo mundo.
Assim não espanta que a frase "Não podemos esquecer que outras potências relevantes, como é o caso dos Estados Unidos, várias vezes colocaram em causa a sua subordinação a esse modelo de gestão pactada do mundo" não tenha sido seguida de tratamento aprofundado através de exemplos relativos aos EUA - o que, aliás, não faltou logo de seguida para a China. É certo que os exemplos dessa "Não podemos esquecer que outras potências relevantes, como é o caso dos Estados Unidos, várias vezes colocaram em causa a sua subordinação a esse modelo de gestão pactada do mundo", no que se refere aos EUA, são "às dezenas". E seria fastidioso exemplificar tantas "colocações em causa da sua subordinação. Fica aqui o desafio de se pronunciar em próxima oportunidade (seja na CNN ou no Jornal Económico) sobre o caso do Kosovo - Putin refere sempre, que este foi o precedente mais marcante para todas os reconhecimentos de independência de territórios ex-ucranianos que a Rússia tem feito. E não podemos ser ingénuos: o reconhecimento da independência do Kosovo (sem referendo), por parte dos EUA, foi o acontecimento mais importante do Direito Internacional no Sec. XXI. As suas consequências, estamos a vivê-las, e para sempre.

Anónimo disse...

A soma de todos os medos:

https://aventar.eu/2022/09/28/a-soma-de-todos-as-medos/

José disse...

Caro Manuel Campos,

Dou-lhe os parabéns pela idade e faço, desde já, votos de que ainda assista aos bisnetos a tirarem a carta de condução. Ver a Seleção ganhar mais um troféu calculo que já seja esticar demasiado os limites da Natureza.

Como já vai tarde para se candidatar a uma carreira diplomática, sugiro que tente a de comentador omnipresente. Tem à sua disposição o Blogger, o Facebook, o Twitter, a CNN, a RTP, três ou quatro jornais, rádios e, ainda, a Confraria do Bacalhau. Em todos eles poderá "platitudinar" à vontade com base na sua enorme experiência. E se aparecer algum fedelho a dizer coisas do tipo "Isso é tudo muito bonito mas o que acha que se deve fazer?", não lhe ligue porque é um palerma a armar-se aos cágados. Se há coisa que a experiência nos ensina é que a arte de opinar é como as rotundas: são sítios onde andamos às voltas até escolher a saída que nos dá mais jeito.

Estados de alma

Há uns anos, tivemos por cá uma amostra paroquial de um governo que detestava o Estado a dirigir esse mesmo Estado. Era a lógica de "me...