domingo, março 01, 2020

O destino da comenda

Anos 50 ou 60. O secretário-geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros, depois de muitas insistências e empenhos de terceiros, lá se tinha dignado receber aquele diplomata. 

Era um homem apagado, a quem nunca tinha sido atribuída a chefia de qualquer missão, que jamais tinha podido ouvir alguém chamá-lo de embaixador, que rodara entre alguns postos de segunda linha, sem grandes queixas de ninguém mas também sem um lustro minimamente notório. 

Curiosamente, quer ele quer o secretário-geral tinham entrado para as Necessidades no mesmo ano, mas os seus destinos não podiam ter sido mais díspares. O chefe da carreira, que é aquilo que todo o secretário-geral é, tinha tido um percurso profissional fulgurante, com alguns postos daquilo que, na linguagem mordaz da casa, se chama a ”linha Elisabeth Arden”: Nova Iorque, Londres, Paris, Roma... O seu modesto colega de entrada apenas chegara a ministro plenipotenciário de segunda classe, vulgo “ministro de segunda”, e jazia, prestes a chegar à reforma, numa obscura repartição, onde vulgarmente ia parar quem estava destinado ao esquecimento.

O gabinete do secretário-geral era, ou parecia, imenso. Estava situado no chamado terceiro andar do palácio. Quem não estivesse habituado à linguagem da casa diria que aquele era o primeiro andar do edifício das Necessidades, situado imediatamente após o piso da entrada, a quem acede pelo largo do Rilvas. Mas não, as contas, por lá, não se fazem assim - e não me obriguem a explicar agora porquê.

Escrevi que o gabinete “era”, porque, desde há bem mais de três décadas, a birra de um ministro, num assomo de poder, determinou a saída do secretário-geral desse espaço tido por nobre, enviando-o para outro andar - mais abaixo, claro. Onde hoje está e, por sinal, dignamente instalado o chefe da carreira.

Entrava-se para esse antigo gabinete do secretário-geral por uma porta envidraçada a fosco, bordeada a cortinados de veludo verde. A secretária onde se sentava o poderoso embaixador estava situada ao fundo. Os escassos segundos que demorava a travessia da sala atapetada, a caminho da pessoa que encarnava o topo funcional da casa, pareciam, para alguns funcionários que eram ali convocados, uma eternidade, que pontuava a distância hierárquica que esse percurso simbolizava. Lá chegados, havia uma cadeira, sempre colocada ligeiramente de lado, arredondada nos braços e nas costas, com palhinha. 

O nosso homem, que tinha dado entrada na sala por indicação do chefe de gabinete, instalado na antecâmara, aproximou-se da mesa do poder corporativo e, atento e venerador, ali ficou de pé, expectante. O secretário-geral, a custo, levantou os olhos para o velho colega, com quem não falava havia décadas, e, com um ar indiferente, disse: “Ah! És tu!”. Sem lhe estender a mão, apontou para a cadeira: “Senta-te!”. Passaram uns segundos e, com um suspiro e a condescendência de quem não estava disposto a perder muito do seu tempo, atirou: “Então diz lá ao que vens!”

O diplomata tinha ensaiado um discurso que começou a debitar. A sua carreira estava a chegar ao fim, preparava-se para regressar definitivamente a casa, sem que alguma vez a casa tivesse tido para com ele um reconhecimento mínimo, depois dos mais de quarenta anos que dedicara ao serviço público. Nunca pudera dar o gosto à família de ter recebido, por parte do Estado que servira, um gesto de apreço pelo seu trabalho, passado algumas vezes em lugares bem penosos, porque o seu fora o caminho das pedras.

O secretário-geral, sobranceiro, com um palpável e sobranceiro sentimento de distância humana. Era conhecido por ser uma figura autoritária, que utilizara o poder para algumas “vendettas” e não poucos gestos de arbítrio, à revelia do ministro, que lhe entregara a gestão da casa. Notava-se que começava a perder a paciência para toda aquela ladaínha, e já não o escondia, ora remirando papéis sobre a mesa, ora esboçando um esgar desagradado. Olhava o interlocutor por cima das lentes dos óculos, que usava para o despacho que se vira obrigado a interromper para aquela indesejada audiência. A certa altura, visivelmente cansado das lamúrias do colega, que mal reconhecia profissionalmente como tal, exclamou: “Mas então é uma condecoração que tu queres, é isso?”. O outro tartamudeou algo que não contrariava esse entendimento do secretário-geral. 

Este, impaciente e quase irritado, abriu uma gaveta da sua secretária, remexeu umas coisas por lá e fez sair uma pequena caixa côr-de-vinho que fez cair à frente do diplomata: “Pronto! Pega lá! Leva esta!”

A condecoração era um grau baixo de uma ordem criada pela Polónia depois da recuperação da independência do império austro-húngaro, após a Grande Guerra. Era atribuída, por esses tempos, com uma generosidade quantitativa que a desqualificava pelo mundo, pelo chamado governo polaco no exílio, em Londres, a quem desse mostras oficiais de apoiar a sua luta contra o regime comunista que passara a reinar em Varsóvia. A ordem honorífica chamava-se “Polonia restituta”.

O nosso homem olhou a caixa, intrigado, não reconhecendo, na águia dourada gravada na tampa, nenhum sinal identificativo de uma qualquer comenda portuguesa, que era o seu objetivo natural, nesse final de carreira. E perguntou, já tenso: “O que é isto?” O secretário-geral, displicente, respondeu-lhe: “É a “Polonia restituta”. É o que se pode arranjar...”.

Não tocando na caixa, o diplomata pôs-se de pé, afastou a cadeira, ficou hirto e, num assomo de dignidade, que terá vingado uma vida de humilhação e de forçada modéstia, teve uma reação sobre a qual, passados que são todos estes anos, a doutrina da casa ainda hoje se devide. 

Há uma escola, que creio maioritária, segundo a qual, cavalgando a sonoridade da última sílaba da designação da distinção polaca, o nosso homem terá mandado o secretário-geral de volta para a senhora, com suposta vida pública menos prestigiante, que o teria gerado. 

Outra corrente alimenta, contudo, a versão de que o diplomata poderá ter sugerido ao secretário-geral que viesse a introduzir a condecoração num orifício natural que a contenção tradicionalmente usada neste espaço me não permite explicitar, com a crueza lexical que consta terá sido utilizada.

Tirando esta pontual divergência sobre o destino recomendado para a comenda, contradição que, passados todos estes anos, se torna difícil de sanar, a única coisa que me é possível atestar, porque faz parte da irrefragável tradição oral do venerável palácio das Necessidades, é que a veracidade do episódio que acabo de relatar se situa acima de qualquer dúvida.

3 comentários:

Jaime Santos disse...

Seja como for, parece que o diplomata terá restituído a condecoração à proveniência recorrendo a linguagem à altura da importância ocupada na época pela dita comenda... Só não foi linguagem exactamente diplomática, mas porventura adequada ao grau da ofensa...

Inclino-me ainda assim mais a aceitar a segunda versão, dada a formação do ministro que mesmo num assomo de raiva, saberia que a atitude do seu superior e antigo colega de formação nada se deveria à actividade porventura exercida pela progenitora deste.

E também não duvido da veracidade da historieta, proveniente que é dessa instituição cultivadora do vernáculo que imagino ser o funcionalismo público, sempre off-the-record, claro...

Anónimo disse...

Humilhar colegas hierárquicamente inferiores, é de gente pequenina.

disse...

Mas e o que é que aconteceu ao pobre diplomata? Terminou uma carreira com um processo disciplinar? Conseguiu aposentar-se? A vida de funcionário público é lixada.

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