quarta-feira, maio 18, 2022

A Ucrânia e os riscos

 


Caras


Em janeiro de 2017, a imprensa internacional deu grande destaque a uma fotografia do “staff” da Casa Branca, com a tristeza marcada na cara pela saída de Barack Obama, o presidente com quem tinham trabalhado. E, talvez ainda mais, pela chegada de Donald Trump.

Das três mulheres no centro dessa fotografia, só reconheci a do meio: era Susan Rice, “Nacional Security Advisor”, antiga embaixadora na ONU. Mas recordei e fixei, para sempre, a cara sofrida da mulher de cabelo comprido. 

Quatro anos passaram. Trump, embora a custo e, pelo menos, até ver, saiu da Casa Branca. Chegou Joe Biden. E a tal mulher de “cara sofrida” viria a surgir, agora quase sempre com um sorriso, como porta-voz do presidente, um dos mais exigentes cargos do interface entre a presidência americana e o exterior. 

O seu nome é Jen Psaki, de origem grego-polaca. Ao longo deste ano, no número considerável de briefings que parcialmente acompanhei pela televisão, pude apreciar a sua qualidade profissional, testada nessa presença quase constante perante os jornalistas, com a necessidade de “ir a todas” e o risco de poder dizer uma palavra em falso, comprometendo a administração. Psaki, contudo, era muito experiente: tinha trabalhado na diplomacia, no “State Department” e na equipa de Obama.

Psaki aguentou mais de um ano. Fez 224 briefings, mais do que todos os porta-vozes nos quatro anos de Trump, cobrindo 91% dos dias úteis! Na memória de muitos ficaram as tensas trocas de palavras com os jornalistas da Fox News, essa constante tribuna crítica de Joe Biden. Jen Psaki parte agora para outra tarefa, no campo do jornalismo televisivo, passando para “o outro lado”, imagino que cansada deste desgastante ano. 

À saída, Jen Psaki manteve o sorriso recuperado. Por mim, que sou um incurável curioso destes ”fait divers”, recordei o contraste da cara nas fotografias.

terça-feira, maio 17, 2022

Brasil

No Brasil, as sondagens indicam uma aproximação de Bolsonaro a Lula, diferente dos dois dígitos do final de 2021. Os observadores externos devem olhar menos para os comícios de convertidos e mais para os instrumentos financeiros que o poder tem ao seu dispor em ano eleitoral.

Coitados!

O esforço que por aí vai para relativizar a importância das expetativas positivas sobre o crescimento da economia portuguesa!

Justiça salomónica

EUA e Austrália estão preocupados com o acordo militar entre as Ilhas Salomão e a China e ameaçam com reação por esta entrada de Pequim na sua esfera geopolitica de influência. Curioso! Então as Salomão não têm o mesmo direito que a Ucrânia? Só vale para um e não vale para outro?

EUA

Depois do caos do Afeganistão (muito por culpa do que Trump tinha deixado armadilhado), Biden decide, sob pressão da expansão do Al Shabab (uma espécie de Al Qaeda), mandar tropas para a Somália, revertendo atitude do antigo presidente. Os EUA vivem um tempo apenas reativo.

Turquia

Erdogan segue uma estratégia de afirmação internacional que tem um ponto em comum com Putin: dá mostras de preferir ser temido do que respeitado.

Azovstal

Daqui a umas semanas, ninguém mais falará em Azovstal. Os militares radicais ucranianos que lá estavam, agora prisioneiros da Rússia, devem a sua vida à atenção internacional criada em torno de Mariupol. Guterres teve algum papel nisso.

França

Primeira-ministra francesa: mulher, oriunda da esquerda moderada, com experiência em áreas políticas críticas. Sinal político de Macron para tentar ganhar as legislativas de 12/19 de junho. O que deve acontecer.

segunda-feira, maio 16, 2022

A desneutralização europeia


Finlândia e Suécia estão prestes a apresentar o seu pedido formal de adesão à NATO. Foi a Finlândia que primeiro anunciou essa predisposição. O governo sueco necessitava do argumento de um possível isolamento, caso não seguisse o seu vizinho a Leste, para dar mais força à sua vontade de adesão. Mas foi óbvio que o “tandem” foi estudado.

Os dois países têm, como se sabe, uma história muito diferente no que respeita ao seu não alinhamento.

A Finlândia viveu o pós-Segunda Guerra sob uma neutralidade forçada pela URSS, assumindo, como consequência, uma atitude internacional a que o mundo exterior chamava, de forma injustamente depreciativa, a “finlandização”.

Já a Suécia tinha a neutralidade nos seus genes estratégicos, há dois séculos, usando-a para criar uma imagem de “potência moral”, singularidade que, sem dúvida, lhe rendeu alguns ganhos de prestígio.

Com o fim da Guerra Fria e a implosão da União Soviética, e de certo modo sob impacto da discussão que então teve lugar, em torno da eventual mudança de qualidade do projeto da NATO, nas opiniões públicas de ambos os Estados ter-se-á firmado a ideia de que, reduzidos que pareciam estar os riscos de segurança, em especial pelo enfraquecimento e aparente nova natureza do poder em Moscovo, a adesão ao projeto de defesa transatlântico não se justificava. Pelo contrário: aderir à NATO era chamar os fantasmas. Contudo, esse tempo idílico do “fim da História” não ia durar muito.

Com a entrada da Suécia e Finlândia, em conjunto com a Áustria, na União Europeia, ficou notório, desde o primeiro momento, que a mensagem que, de Helsínquia, chegava a Bruxelas, em matéria de segurança e defesa, era muito mais acomodatícia de um cenário de aproximação à cultura NATO do que aquilo que soava de Estocolmo. Mas sempre pareceu óbvio que, a acontecer um dia tal adesão, ela seria feita em conjunto.

Da Áustria, o terceiro parceiro desse grupo de países neutrais, numa União onde, à época, só a Irlanda se mantinha com esse estatuto, sendo membros da NATO todos os restantes “onze”, chegava um sinal flagrantemente contrário: a sua Constituição, feita sob os equilíbrios do pós-Segunda Guerra, impedia formalmente o seu alinhamento pela aliança ocidental.

O caso irlandês é um pouco diferente. Dublin foi sempre, muito claramente, um parceiro “do lado de cá”, com forte cumplicidade com os EUA, que não escondeu nunca as suas preferências na trincheira da Guerra Fria. A Irlanda, que tem forças militares incipientes, parece deliberadamente querer fugir ao debate, assente na blindagem legal que, nos tratados europeus, garantiu para essa sua excecionalização.

Há que notar que a NATO teve, entretanto, uma evolução, em termos securitários, que se tem mostrado bastante abrangente. A organização fez parcerias, assente num conjunto de valores altamente consensual, com as democracias do espaço ocidental. A luta contra o terrorismo, depois do 11 de setembro, veio a densificar ainda mais essa filosofia comum em matéria de segurança, que passou a ser crescentemente consagrada e desenvolvida no seio da União Europeia. As Forças Armadas de muitos desses países, da NATO e fora dela, têm vindo a ser envolvidas em exercícios militares conjuntos, para além do usufruto de uma crescente (embora raramente assumida) cumplicidade em termos de “intelligence”, que hoje aproxima, da cultura NATO, todos os membros da União.

Entretanto, é uma evidência que a deriva autocrática ocorrida dentro da Rússia, particularmente sentida pelos países bálticos (os únicos novos aderentes que tinham feito parte da União Soviética), com os quais os Estados nórdicos que são membros da União Europeia têm grande afinidade, ajudou a Suécia e a Finlândia a encurtar o seu caminho face à Aliança Atlântica. Caminho que agora fica percorrido, sob o trauma ucraniano.

Restará apenas saber se a Suécia irá apresentar algumas condicionantes à sua entrada na NATO, nomeadamente sobre a proibição da presença regular de forças militares estrangeiras e a colocação de armas nucleares no seu território. A futura contribuição da marinha de guerra sueca, que tem tido uma expressão de grande eficácia no Báltico, bem como os seus aviões de combate, são ativos tidos por relevantes nesta adesão, aos olhos de Bruxelas.

A Finlândia, que traz à NATO uma nova fronteira de 1300 km com a Rússia, dispõe, ao que se sabe, de uma equipadíssima guarda de fronteira e de modelos sofisticados de “intelligence”. Não tendo umas Forças Armadas muito fortes, é, porém, um dos países europeus que alimenta uma cultura nacional de segurança mais aprofundada, com importantes números em matéria de reservistas.

É inegável que a presença conjunta da Suécia e da Finlândia, a somar-se a um país fundador da NATO, a Noruega, vai permitir dar maior coerência ao espaço nórdico da organização, geografia onde hoje reside um dos desafios de segurança do futuro, o espaço do Ártico.

Nos anos 50, dizia-se, a brincar, por essa Europa, face ao receio que a URSS tinha criado do lado ocidental da “cortina de ferro”, que era justo que Stalin, juntamente com Schumann e Monnet, fosse também reconhecido como um dos “pais” da unidade europeia, mais tarde plasmada do Tratado de Roma. Hoje, ao observar-se o “boost” que acabou por imprimir à NATO, com o terramoto estratégico que produziu com a invasão da Ucrânia, Putin surge como mais um “construtor”, involuntário e irónico, da unidade ocidental.

E agora? Onde ficam a Áustria e a Irlanda? E Chipre? E Malta? Ficam a ser, na União Europeia, os únicos Estados ausentes da NATO. E agora? Colocar-se-á, no seu seio, a discussão sobre as vantagens e inconvenientes de virem a aderir à Aliança Atlântica, num tempo em que, cada vez mais, a União Europeia dá passos para o reforço intenso de uma dimensão de segurança, com consequências óbvias na sua defesa? Atenta a imprevisibilidade do “amigo americano” - Trump foi um interlúdio ou Biden é que o será? -, que, no entender de muitos, parece justificar que a Europa tente saber tratar de si própria, vai ser interessante perceber se o debate da “desneutralização” europeia continuará.

À atenção de quem?


Quando expliquei a um estrangeiro que a parafernália de “outdoors” que ele tinha visto no Marquês, em Lisboa, nada tinha a ver com campanhas eleitorais, e que eram permanentes, por imperativo legal, por muito que desfeiem a praça, riu-se e não acreditou. Como é que o convenço?

domingo, maio 15, 2022

Ainda o Procópio e o seu sossego


A minha amiga Alice Pinto Coelho, numa das entrevistas que deu, por ocasião das comemorações dos 50 anos do Procópio, de que é proprietária, referiu que, quando foi criado, aquele passou a ser o primeiro bar que, em Lisboa, uma mulher sozinha podia frequentar. Até então, isso era inconcebível. 

Há já mais de uma década, num evento no nosso consulado-geral em S. Paulo, no Brasil, eu estava à conversa com a cantora Eugénia de Melo e Castro e com uma amiga dela, brasileira, que em breve ia visitar, pela primeira vez, Portugal. A sua estada não ia ser longa, pelo que procurava referências sobre lugares que, em Lisboa, não podia deixar de conhecer. Falei-lhe então do Procópio.

A Eugénia, naturalmente, conhecia o bar e concordou logo comigo, na recomendação. Para tornar mais apelativa a referência feita, notei então que Procópio era um local onde qualquer mulher podia entrar desacompanhada, sem que ninguém a incomodasse. Para uma bebida ou apenas para tomar um chá.

A amiga da Eugénia olhou para mim, com um sorriso que me pareceu equívoco, e tentou esclarecer: “Você diz que, se eu entrar sozinha nesse tal de Procópio, ninguém se mete comigo, é?”. Confirmei. O sorriso, dessa brasileira que recordo bonita, abriu-se mais, ao dizer-me: “Se ninguém se mete comigo, não vou gostar do sítio!”. E acabámos os três às gargalhadas.

Eurobrincadeiras

A Ucrânia, no passado, provou que tinha qualidade musical para não necessitar destes ridículos fretes políticos na Eurovisão.

sábado, maio 14, 2022

Ucrânia, claro! E a Palestina?

O que se passa na Palestina é um escândalo. De Washington, nada de novo: a exigência em matéria de direitos humanos é sempre “à la carte” dos seus interesses estratégicos. E da UE? Os mesmos “double standards”? A assim ser, não deve queixar-se ao ver muito “Sul” abster-se na ONU na questão da Ucrânia.

Wembley

E, agora, ai de quem me interromper as duas horas seguintes, com o Chelsea-Liverpool, para a final da taça de Inglaterra!

João Rendeiro

 

Ao longo dos anos, cruzei-me algumas vezes com João Rendeiro, em diversas circunstâncias. Transmitia auto-suficiência, uma quase condescendência para com os outros, numa afirmação agressiva da sua inegável inteligência. Talvez por isso, nunca projetou em mim uma imagem simpática, e acho também que ele nunca se esforçou muito por isso - embora admita que possa ser eu quem tenha visto mal como as coisas se passaram. Hoje, confesso, tenho pena de João Rendeiro. Tenho pena de alguém que concluiu ser incapaz de enfrentar aquilo que a vida lhe trouxe, como decorrência das suas ações. Contrariamente a muitas outras pessoas, ele tinha sabido conquistar, com o seu trabalho e inegável talento, o direito a ter várias e excelentes opções na vida. E, no entanto, nas escolhas que eram decisivas, fez exatamente as que estavam erradas. Logo ele, que era óbvio admirador da sua própria racionalidade e perspicácia, afinal qualidades que viriam a ser, em absoluto, desmentidas pelo seu comportamento. Não há hoje espaço para nenhum relativizador “isto ainda está mal contado”, no que respeita à sua atividade delituosa, que se constatou conflitual com a ordem da sociedade em que ele pretendia ser reconhecido pelos seus méritos. Rendeiro foi amplamente culpado, como a justiça provou à saciedade, e, no entanto, teimava em agir em negação, como se o não fosse. Isso era chocante e chegava a ser ofensivo, em especial para quantos por ele foram lesados. João Rendeiro pareceu querer manter essa atitude até ao fim, mas, a certo ponto, terá perdido a coragem e decidiu apressar esse mesmo fim. Ou, orgulhoso como era, decidiu ser ele próprio a determiná-lo, num gesto derradeiro de suprema soberba. Afinal, de banal fraqueza humana.

Notícias de Tskhinvali

Parece que a Ossétia do Sul vai fazer um referendo para determinar se o auto-proclamado Estado passará (ou não!) a integrar a Federação Russa. Imagino o "frisson" que vai em Tskhinvali com as imensas dúvidas sobre o sentido do resultado desse voto!

sexta-feira, maio 13, 2022

… e Doinel


A revista "Visão" lembra, no seu número de hoje, que o Maio 68 parou a França. E traz uma página com uma conhecida fotografia com os realizadores que, em Cannes, no dia 10 desse mês único, anunciaram também terem entrado em greve: por ali se veem Claude Lelouche, Jean-Luc Godard, François Truffaut, Louis Malle, Roman Polansky e Jean-Claude Carrière.

Apenas uma nota, que a revista não refere (não podia referir tudo, claro): a cara que se vê do lado direito, a meio da fotografia, olhando em direção ao público, é o clássico ator que François Truffaut utilizou em vários dos seus filmes, Jean-Pierre Léaud. Nas películas de Truffaut, Léaud é "Antoine Doinel". Foi descoberto em 1958, entre seis dezenas de miúdos que apareceram na resposta a um anúncio colocado pelo realizador no “France-Soir”.

Quem gosta dos filmes de Truffaut - e eu gosto imenso e julgo ter visto todos - guardou para sempre no seu imaginário a figura de “Antoine Doinel”. Numa inesquecível série de cinco filmes, iniciada com os "Quatre-cents coups", "Doinel" foi crescendo (fisicamente, mesmo, embora não muito: tem a minha altura) aos nossos olhos, a partir dos 15 anos, evoluindo num modelo que, contudo, fixou algumas linhas comportamentais comuns. Sempre agitado, com um rosto de gravidade assustada, misto de timidez e indecisão, mas capaz de rasgos atrevidos de surpresa, "Doinel" foi uma figura, em parte autobiográfica, que Truffaut utilizou, com o seu imenso génio, para nos retratar uma França em mudança acelerada de costumes.

Uma vez, em 1992, numa ida em turismo a Nova Iorque, aconteceu-me ficar num mesa ao lado daquela onde estava Léaud. Foi no "Michael's Pub", onde ambos, e muita mais gente, tínhamos ido ver Woody Allen tocar clarinete, nessas celebradas segundas-feiras (Allen mudou-se depois para o Carlyle).

Como tínhamos um sobrinho que estava então a estudar cinema, a minha mulher insistiu em que eu fosse pedir-lhe um autógrafo. Em toda a minha vida, fui sempre incapaz de uma iniciativa desse género (nem nos lançamentos de livros peço dedicatórias!), pelo que lhe deleguei esse encargo. Mas havia um problema, que nos era comum: não nos conseguíamos lembrar-me do nome do ator, só nos vindo à memória "Antoine Doinel". Hoje, com o “tio” Google, tudo seria mais fácil. Mas ela lá foi, contornando o embaraço. Tenho de perguntar ao meu sobrinho se guarda o autógrafo.

Jean-Pierre Léaud teve uma longa carreira no cinema francês. Para além de Truffaut, foi utilizado por Jean-Luc Godard, tendo, ele próprio, dirigido alguns filmes. A meu ver - mas esta é uma opinião que vale o que vale - nunca foi um ator excecional e jamais ultrapassou uma aceitável mediania. Porém, há que reconhecer nele um dos nomes emblemáticos da "Nouvelle Vague" francesa, em cuja história tem um indiscutível lugar.

Há tempos, numa madrugada televisiva, surgiu-me uma comédia romântica de 1996, intitulada "Pour rir!", na qual Léaud contracena com Ornela Mutti. Por uma imensa curiosidade, muito centrada na evolução artística de Léaud, vi o filme até ao fim. A opção iria revelar-se quase masoquista: tive de suportar a inenarrável prestação de Mutti. Machistamente, devo dizer que ela perdeu muitos dos atributos que, durante anos, nos faziam esquecer a sua mediocridade como atriz. Enfim, não ganhei muito para a minha cultura cinematográfica. Para o que aqui me interessa, foi quase patético ver um Léaud de 60 anos assumir os trejeitos e a "coreografia" típicos de um "Doinel" adolescente.

Há atores que guardam uma imagem que acaba por se impor nas diferentes figuras que interpretam, por mais diversas que estas sejam. São "characters" - e isso pode ser uma coisa positiva ou tornar-se pesada e desinteressante, particularmente quando os filmes e as personagens têm de ser desenhados em função dessas suas conhecidas peculiaridades. Foi o que me pareceu, neste triste, embora "Pour rir!", com Jean-Pierre Léaud.

Turquia

Ontem na CNN Portugal, referi que a cultura de segurança e de valores que hoje prevalece em países como a Finlândia e da Suécia, dada a sua aculturação no seio da União Europeia, estavam mais próximas da NATO do que da de alguns dos atuais membros da organização. E, de passagem, mencionei a Turquia e a Hungria. 

Hoje, Erdogan, não desiludiu. Com o sentido de “solidariedade” de que já tinha dado mostras aquando da crise dos refugiados, anunciou a sua oposição a este alargamento da NATO. E, claro, deixou um cheiro a chantagem no ar, revelando que o tema do “separatismo violento” (uso aqui uma expressão que é conhecida de quem conhece aquilo de que ele pretende falar), que lhe é tão caro, é uma excelente arma. 

A polémica transferiu-se assim, para o seio da NATO. E Putin vai-se rindo.

“A Arte da Guerra”


Desde há bem mais de um ano, o jornalista António Freitas de Sousa e eu mantemos, com uma regularidade semanal, o podcast “A Arte da Guerra”. De que se trata? De uma conversa de cerca de meia hora (verdade seja que costumamos ultrapassar esse tempo) sobre três temas da vida internacional.

Esta semana, o programa, que pode ser visto clicando no link abaixo, trata (como não podia deixar de ser, não é?) a situação na Ucrânia, a crise e as eleições no Líbano, bem como a inquietação na Austrália e nos EUA pelo facto das Ilhas Salomão (um arquipélago no Pacífico) terem decidido fazer um acordo militar com a China.

quarta-feira, maio 11, 2022

Ucrânia - é imperioso sair da caixa


Esta guerra já não é apenas entre a Rússia e a Ucrânia. É cada vez maior o envolvimento, através de ajuda militar e de sanções, de muitos países que passaram a ser parte, embora por ora não beligerante, no conflito. Em moldes todavia nunca comparáveis ao sofrimento da população da Ucrânia, as respetivas sociedades estão a começar a sentir as consequências do prolongamento da guerra.

Parece não ter sentido que os países envolvidos no apoio à Ucrânia fiquem a aguardar o resultado, cada vez mais duvidoso, de um processo negocial, aparentemente suspenso, entre Kiev e Moscovo. Há dimensões do conflito, como fica evidente na questão das armas nucleares, que vão muito para além da situação concreta da Ucrânia, embora com ela interligada.

António Guterres disse hoje que não parece haver condições para um cessar-fogo bilateral. Porquê? Porque entende que a Rússia pretende estabilizar alguns dos seus ganhos e não completou o cerco de isolamento que pretende fazer à Ucrânia pelo sul. E também porque o secretário-geral da ONU pressente que a Ucrânia, forte do apoio militar crescente com que conta reverter a sorte do conflito, avalia que as próximas semanas lhe podem trazer vantagens. Um dos dois contendores está enganado na sorte que o relógio lhe pode trazer, mas só no final se saberá qual.

É imperioso sair do impasse da situação no terreno. Os países ocidentais, mantendo-se sempre firmes no apoio que dão à Ucrânia - essa é, alías, a expressão essencial do seu poder neste contexto - deveriam abrir uma frente negocial direta com Moscovo. Um conflito que pode escalar para proporções (in)imagináveis não pode ficar dependente exclusivamente dos eventuais resultados de uma diplomacia ucraniana acossada pela agressão e pela expectativa ansiosa da evolução da situação militar no seu terreno.

O envolvimento negocial ocidental deveria, como é óbvio, associar plenamente a Ucrânia e ter no centro os seus legítimos interesses de soberania, mas igualmente não poderia deixar de ponderar as consequências económicas, e em breve também sócio-políticas, decorrentes do efeito “boomerang” das sanções e dos previsíveis problemas decorrentes da situação dos muitos refugiados que não poderão ainda regressar à sua terra . Há que ter consciência, e aparentemente ela parece não existir, de que o momento ótimo de consenso entre os aliados vai começar a diluir-se, por virtude dos efeitos do inevitável desgaste de vontade, em vários paises europeus.

O mundo que Vladimir Putin conhece é o da força. Ora o ocidente tem hoje, nas suas mãos, dois instrumentos negociais que podem ser decisivos para qualquer compromisso: a sua capacidade e determinação em poder continuar a armar a Ucrânia, colocando-a em condições de ir “empatando” a guerra, e o fortíssimo pacote de sanções, que, recordo, foi posto em prática por virtude da agressão russa, pelo que parte do qual pode ser usado como moeda de troca na hipótese de um eventual compromisso.

Macron mantém o número de telefone de Moscovo. Draghi deu sinais, em Washington, de que favorece um caminho de um diálogo exigente, sempre sob uma posição comum. Berlim, nesta sua fase hesitante, conta bastante pouco para ousadias. O jingoísmo descabelado de Boris Johnson ecoará o que Washington ditar. É nos Estados Unidos que reside a chave de um eventual novo tempo neste processo, pelo que compete aos europeus lembrar-lhes que é só deste lado do Atlântico que, por agora, continua a guerra.

A História mostra que, para pôr termo a um conflito, ou se derrota totalmente o inimigo (e a Rússia não é derrotável, enquanto potência, como sabe quem sabe destas coisas) ou se fala com ele para ir aferindo das hipóteses de um acordo. Pensar que o tempo corre sempre a nosso favor é uma ingenuidade perigosa.

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Em 2010, o presidente pró-russo Viktor Yanukovych ganhou as eleições presidenciais na Ucrânia a Yulya Tymoshenko, candidata pró-ocidental. 

Vale a pena comparar o mapa dos votos de cada um com a evolução da atual situação militar, para aferir das eventuais ambições russas.



Os novos federalistas

Há por aí alguma inocência, uma súbita “descoberta da pólvora”, na ideia salvífica do fim da unanimidade em certas decisões dentro da União Europeia. É fácil dizer isso a quem está protegido pelo padrão médio de interesses que se projeta em Bruxelas. Mas há quem esteja fora dele.

Com a recusa da Hungria em se juntar ao consenso sobre o petróleo, o tema passou a “sexy”. Ora não é por mero acaso ou por teimosia soberanista que umas decisões são tomadas por maioria (e noto que, nesse voto, uns têm mais peso do que os outros) e outras requerem a unanimidade.

Quando se é alemão, francês ou italiano, ou se vive no mundo do Benelux ou no conforto nórdico, com interesses similares, pode-se aceitar com facilidade o voto por maioria qualificada. Mas experimentem defender legítimas posições marginais sem a unanimidade! E esqueçam a Hungria!

Lembro apenas que, se a unanimidade não tivesse sido obrigatória para certas decisões europeias em matéria de política externa, Portugal não teria conseguido evitar concessões em favor da Indonésia, promovidas por “amigos de Peniche”, que protegeram os direitos do povo de Timor.

terça-feira, maio 10, 2022

A Ucrânia que aí vem (em mil carateres)


Nenhum cenário aponta para que a Ucrânia, no termo da guerra, venha a recuperar a geografia que tinha antes de 2014. A Rússia nunca desocupará a Crimeia. Além disso, vai, com toda a certeza, manter, sob o seu controlo, as áreas separatistas do Donbass. Pode mesmo vir a integrá-las na Federação Russa, o que, formalmente, as protegeria mais. Nessa região, contudo, pelo modo com conduz a guerra, a Rússia mostra que pretende ir mais longe, por forma a criar uma “buffer zone” permanente bastante mais alargada do que a que existia a 24 de fevereiro. Outros ganhos que a Rússia alvejará estão a sul, na tentativa de criar um corredor que impeça o acesso da Ucrânia ao Mar Negro, tornando-o num país “encravado”, que dessa forma ficaria sufocado economicamente. A Ucrânia, que, a cada dia, recebe mais ajuda militar ocidental, o que lhe está a permitir “empatar” o conflito, terá como objetivo existencial quebrar esse corredor russo pelo sul. Ambos vão perder a guerra. Só falta saber “por quantos”.

Rainha de Inglaterra


Acumulam-se sinais no sentido da rainha Isabel II estar a iniciar a sua saída da cena oficial, com a próxima abdicação em favor do seu filho. Se isso for feito de forma serena e adequada, a monarquia britânica pode ter ganho uns bons anos mais. Para tal, também é necessário que o novo rei tenha bom senso e, em especial, extrema contenção opinativa, limitando-se, publicamente, a mostrar sorrisos e dizer platitudes - isto é, a ser, constitucionalmente, uma verdadeira “rainha de Inglaterra”. Uma outra variável é, contudo, menos controlável, mas não menos importante para a sobrevivência do sistema: que a restante família se não envolva em mais escândalos e polémicas, que possam dar ao cidadão comum a ideia de que o erário público britânico contribui para alimentar uma cada vez menos aceitável excecionalidade social, num tempo em que as aristocracias e as elites só ganham em não se expor demasiado. O tempo do “glamour” e da atração fascinada pela vidas das princesas e coisas do género, muito reluzente nas revistas do género, parece que já lá vai.

A lei dos números

Ao ocupar a Crimeia e ao promover a secessão de parte do Donbass, em 2014, a Rússia como que ajudou a reforçar a identidade de uma “nova” Ucrânia. O país, por essa nova geografia política, passou a ter muito menos ucranianos russos, pelo que prevalência eleitoral de figuras anti-russas ocorreu com naturalidade. A Ucrânia em que um presidente pró-russo como Víktor Yanukóvytch pôde ser eleito deixou assim de existir.

Original intimação

 


segunda-feira, maio 09, 2022

A feira


Será pelo Covid? Seja lá quais forem as razões pelas quais a Feira do Livro de Lisboa não tem lugar em maio/junho, como manda a tradição, a verdade é que isso violenta o meu “bio-ritmo” de comprador de livros. Ir à feira no final de agosto? Que raio de ideia!

domingo, maio 08, 2022

Guerras

Foi inteligente o discurso de Zelensky, antes do 9 de maio, sublinhando o heroísmo anti-nazi que uniu os povos da antiga URSS, mesmo que a não tenha mencionado pelo nome. Ele sabe que, para além da guerra atual entre russos e ucranianos, houve uma história comum de sofrimento, que ainda perdura na memória de muitos.

Logo se verá!

As teorias sobre o que Putin vai dizer no seu discurso de amanhã têm sido tantas que alguma delas há-de acertar…

A Ucrânia e Lula

O que Lula disse sobre a Ucrânia provocou reações negativas na Europa, onde o tema é hoje considerado quase matéria de fé estratégica. E no Brasil? Terão essas declarações algum efeito nefasto na popularidade do agora já candidato? É que, se assim não for, os EUA e os europeus devem pensar na razão de as coisas se passarem assim por lá.

O aborto de Trump

Se os três juízes nomeados por Trump vierem a conseguir reverter a permissão do aborto vigente desde 1973 (!) nos EUA, abrindo caminho à sua subsequente proibição em muitos estados americanos, o ex-presidente vai acabar por merecer, com justiça, uma “estátua” de gratidão por parte do reacionarismo moralista internacional.

sábado, maio 07, 2022

Brasil


Cada vez encontro mais brasileiros a trabalhar em casas comerciais, um pouco por todo o nosso país. Fazem uma concorrência “desleal”: são muito mais simpáticos! Que sejam muito bem vindos!

E eu morto por lá ir!


Disseram-me que fechou, em definitivo. Não percebo: com um nome tão apelativo, mesmo ao lado do cemitério…

“From Russia with sillyness”…


Ó diabo! Ainda me arrisco a levar com um míssil hipersónico do Kremlin! Logo eu que, em matéria de bares, me fico pelo Procópio…

sexta-feira, maio 06, 2022

Do IRA aos Fenianos


O Sinn Féin ganhou as eleições na Irlanda do Norte. Durante anos, o Sinn Féin foi o braço político do IRA. Quem, no Porto, comprou sapatos na Sapataria Feniana ou dançou no Clube Fenianos sabia que a sua origem eram os “Féin” do radicalismo católico irlandês? Estudassem!

Accordo Ortographico

O ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, disse em Luanda que o governo não tem a menor intenção de rever o Accordo Ortographico. 

Não, não li no “Público”…

Fim de semana

 


Sobe-se a escada e fica-se por ali.

O preço da guerra

Fala-se da presença de mercenários (até portugueses), na guerra da Ucrânia. Lembraria que há uma diferença fundamental entre soldados e mercenários: os primeiros querem que as guerras acabem o mais cedo possível; os segundos ganham “à bandeirada”. Quanto mais longa for a viagem…

quinta-feira, maio 05, 2022

Shalom

Quando chegou ao poder, Putin era considerado um amigo de Israel, país parcialmente russófono e com uma relação de altos-e-baixos com Moscovo. Com o pedido de desculpas pelas palavras insensatas de Lavrov, Putin também se dirige à imensa comunidade judaica da própria Rússia.

America, America

Em muitas partes do mundo, o grande fator divisivo, em termos sentimentais que se transformam em estratégicos, é estar ao lado dos Estados Unidos ou contra eles. A Rússia é apenas uma dimensão colateral e conjuntural dessa “guerra”. Na Europa, isto é menos percetível.

Violações

Convirá que se saiba que as violações pontuais do espaço aéreo de alguns países nórdicos por parte da Rússia, muito reportadas na imprensa, foram comuns ao longo das últimas décadas, não representando, na realidade, nada de novo. A situação de segurança atual é que é nova.

Franco-franceses

A França, contrariamente ao que alguns podem julgar, é um país com um modo muito franco-francês de ser europeu. Com o expectável reforço dos eurocéticos no próximo parlamento, duvido que Macron consiga congregar apoios para um aprofundamento integrador da União Europeia.

"La Place Rouge était blanche..."


Nos últimos anos, o desfile militar de Moscovo, em 9 de maio, era usado como uma “montra” da crescente capacidade da Rússia como potência, nomeadamente no plano da guerra convencional. Depois dos azares russos na Ucrânia, este ano vai ser bastante difícil compatibilizar as duas imagens. É que pode surgir a pergunta: mas se a Rússia é assim tão forte, porque é que o não mostra na Ucrânia...

... e a Ucrânia ali tão longe!

As críticas de Lula a Zelensky não devem ser descontextualizadas da circunstância de, fora da Europa, a questão ucraniana ser vista de uma forma mais distanciada, em que a “demonização” da Rússia não parece ser tão evidente.

Ah! La France!


Com imensa dignidade, Valérie Pécresse recusou a contribuição financeira de Nicolas Sarkozy (que apoiou Macron) para atenuar a imensa dívida das suas despesas de campanha, em que não teve direito a subvenção estatal, por não ter atingido 5% de votos. E respondeu-lhe: “Merci pour ce sabotage!”.

Bela memória, a lembrar o livro-vingança de Valérie Trierweiller contra o seu antigo companheiro François Hollande, intitulado “Merci pour ce moment”. Cá se fazem...

Marx e a liberdade


Marx, se fosse vivo, faria hoje 224 anos. Há muito quem pense que ele ainda anda por aí. E, se calhar, de vez em quando, ele faz-se lembrado. Mostro sempre, aos meus amigos estrangeiros, uma estátua, na Avenida da Liberdade, que é Karl Marx ”por uma pinta”, como antes se dizia. Por uns segundos, interrogam-se sobre este estranho marxismo olisiponense.

“A Arte da Guerra”


Convido-os a ver e ouvir o programa ”A Arte da Guerra” desta semana, o podcast do “Jornal Económico” onde, esta semana, falo com o jornalista António Freitas de Sousa sobre a guerra na Ucrânia, a luta eleitoral em França e a Irlanda do Norte, onde vão ter lugar eleições que podem, pela primeira vez e a acreditar nas sondagens, colocar os nacionalistas católicos do Sinn Féin na chefia do governo, em detrimento dos unionistas protestantes do DUP.

Podem ver clicando aqui: https://youtu.be/U5GYNkAVvKk

Autocrata por autocratas

Com o embargo ao petróleo russo, a União Europeia dará um rude golpe num regime que, mantendo formalmente uma estrutura democrática, é já, na prática, uma ditadura. A grande ironia é que, para substituir a Rússia, a Europa vai passar a reforçar importações de outras autocracias.

Os vinte magníficos


Hoje, dia em que o Procópio comemora os seus 50 anos, é o dia certo para aqui deixar registados os nomes de 20 dos integrantes da nossa tertúlia da Mesa Dois, animada pelo grande Nuno Brederode Santos, que já se foram. Amigos que, infelizmente, tiveram de sair mais cedo do bar.

Álvaro Neves da Silva 

António Franco 

António Russo Dias 

António Silva

Artur “Kiko” Castro Neves

Caetano da Cunha Reis

Carlos Antunes

Conceição Antunes

Fernando Vilhena

Jorge “Jójó” Galamba 

Jorge Fagundes

José Cardoso Pires

José Carlos Serras Gago

José Fonseca e Costa

José Medeiros Ferreira

Leonor Xavier

Luiz Rosa Dias

Nuno Brederode Santos

Raul Solnado 

Simão Santiago

Covid

Cada vez me chegam mais notícias de pessoas amigas e conhecidas com Covid. Porque, nos próximos dias, vou ter de estar em diversos “ajuntamentos”, vou ter de utilizar o meu direito à máscara.

“Passe lá!”

É sempre depois de jantar, antes da recolha pública do lixo. Nunca o vi montado na bicicleta que encosta à parede, de cujo guiador pendem dois sacos de plástico, enquanto, com a ajuda de uma lanterna, espiolha o caixote que, todas as noites, eu e os meus vizinhos colocamos na rua, à porta do prédio onde vivo. Já ocorreu as vezes suficientes para perceber que é um rotina antiga, embora por ali não diária.

Na penumbra em que tudo ocorre, muito pela sua postura física inclinada, mas também por algum assumido embaraço da minha parte, nunca lhe olhei bem a cara de frente. Terá 50 e tal anos, veste-se como qualquer de nós e fico com a sensação de que, se o encontrasse em outra circunstância, num escritório ou numa sala de espera, nunca o reconheceria. Ele opta por não nos fixar, evitando qualquer interlocução, nem que seja para um simples boa-noite, que já tentei sem sucesso.

Quando ontem cheguei à porta da rua, estava na minha frente, na sua tarefa habitual, apressada, com o caixote a dificultar a minha saída. Disse-lhe: “Dá-me licença?”. Proferi a frase com o maior cuidado, tentando que não parecesse impositiva, nem que dela soasse minimamente qualquer réstia de ironia, por ter de pedir-lhe espaço para poder sair. Ele puxou o caixote uns centímetros para o lado e, sem conferir a menor expressão naquilo que disse, respondeu, secamente: “Passe lá!” E continuou na sua tarefa.

Algumas vezes em que, ao final do dia, vou colocar o lixo naquele caixote, dei comigo a pensar: como é que alguém tem a coragem física para ir vasculhar nos restos de comida que deixamos nos sacos, no pão que já tinha bolor, nas maças que afinal estavam podres, nas cascas e nos restos de tudo o que ficou do nosso dia que terminou? Como é que alguém, contra o mínimo de regras de higiene, se atreve a escolher o que nos sobejou por imprestável, em condições críticas de risco sanitário? Como? Por necessidade.

Custa-me a ideia de que, meio século passado sobre Revolução de Abril haja gente que não tenha escapado a este destino, ou que pode, a qualquer momento, cair nele. Aquele “passe lá!”, seco e indiferente, marcou-me. É que eu passei e ele ficou por ali.

Guterres

Os que foram tão críticos, apontando a “irrelevância” da deslocação de Guterres a Moscovo e Kiev, já fizeram a sua “mea culpa”, ao terem de constatar que a ação da ONU, articulada com a Cruz Vermelha, por iniciativa do secretário-geral da ONU, está a salvar a vida a muita gente?

quarta-feira, maio 04, 2022

Macron e a França

Macron está prestes a nomear um novo primeiro-ministro, que é capaz de ser uma mulher, para tentar surfar “l’air du temps”. Seja essa pessoa quem vier a ser, a imprensa francesa já antecipa, com algum humor, que será alguém que os franceses se habituarão rapidamente a detestar.

O PCP

Face ao policiamento pidesco em curso, imagino que alguns achassem que eu deveria começar este texto por um qualquer “disclaimer” preventivo - falando da Ucrânia, de não ser comunista e coisas assim. Mas, deliberadamente, não o farei, porque não tenho de dar a menor satisfação a esse tipo de gente. 

Direi apenas que nem sequer atribuo excessiva importância ao que algumas vozes desgarradas andam por aí agora a remoer contra a legitimidade da existência do Partido Comunista Português, na nossa cena política. 

Devemos tratar isso como meros roncos de ressonância fascistóide, quer sejam ditos por portugueses ou por estrangeiros, respondendo a todos com um imenso desprezo e sem a menor consideração.

Leonardo Padura


O escritor cubano Leonardo Padura está em Portugal, para apresentar o seu novo livro “Como poeira ao vento”. Falámos no domingo, num jantar com amigos. 

Padura continua a olhar de forma muito empenhada o seu país e o quotidiano dos seus concidadãos, com um humor sereno e uma inteligência aberta e muito atenta. É um prazer ouvi-lo.

Conhecemo-nos em Cuba, há quinze anos. Descobrimos então que, nos anos 80 do século passado, ambos tínhamos coincidido em Angola, sem nunca nos termos encontrado.

Nesse ano de 2007, Padura estava a ultimar o seu grande êxito inicial, o extraordinário romance “O homem que gostava de cães”. 

De então para cá, um pouco por todo o mundo, a obra de Leonardo Padura tem-se tornado conhecida e muito apreciada.

Amanhã, quinta-feira, pelas 19 horas, Leonardo Padura falará no teatro São Luis sobre literatura policial.

Diplomacia

Do grupo de alunos que, com outros colegas da Universidade Autónoma de Lisboa, ajudámos a preparar para o acesso à carreira diplomática - naquele que é, a grande distância, o concurso de entrada mais exigente da função pública - há apurados para a fase final. Da última vez que isso aconteceu, todos foram admitidos. Vamos agora trabalhar para repetir isso.

Serviço público

Em apenas meia-hora, com simpatia e eficiência, resolvi um problema numa Loja do Cidadão. Talvez a questão fosse fácil, talvez eu tenha tido sorte na hora em que fui atendido, a maioria das pessoas não terá a mesma experiência. Mas lá que, desta vez, funcionou, lá isso funcionou!

Frei Bento

Frei Bento Domingos escreve há 30 anos no Público, que agora o homenageou. É uma figura magnífica, um humanista com grande lucidez e coragem.

Boris

Altamente controverso na Câmara dos Comuns do seu país, Boris Johnson faz a unanimidade no parlamento ucraniano.

Claro como a água

Tendo começado na polémica do comissário e do 25 de novembro, prolongando-se agora na questão das condecorações, fica claro que alguns pretendem começar a criar, desde já, um ambiente público divisivo em torno das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, em 2024.

Quase NATO

Em termos formais, a Rússia acha que adesão da Finlândia e da Suécia à NATO agrava a contabilidade em seu desfavor. Porém, na realidade, ambos os países há muito que são “like-minded” com a filosofia NATO. Ou melhor: serão mesmo mais do que alguns dos atuais membros…

Mélenchon

Jean-Luc Mélenchon não pode, em rigor, ser qualificado como um político de extrema-esquerda, não obstante parte desta nele se rever. Contudo, ao ler o que propõe sobre a Europa, percebe-se que os socialistas moderados franceses possam ter uma forte razão para o não apoiarem.

Regredir

Não se sabe se o “leak” saído dos bastidores Supremo Tribunal dos EUA, que indicia uma possível reversão da lei do aborto, irá corresponder ao sentido da decisão final. A assim acontecer, vamos ter na rua as “duas Américas”. Vai ser interessante de ver.

Elogio do silêncio

Há muito que a Rússia dizia que o ocidente a queria enfraquecer e evitar o seu ressurgimento como potência. Os EUA sempre desmentiram essa intenção. Por voz oficial, agora justificado pelo ataque à Ucrânia, esse objetivo foi confirmado. Não sei se é uma boa ideia dizê-lo.

“For the record”

 

terça-feira, maio 03, 2022

Nome de Guerra


A ideia é genial! Com data de 16 de abril, nos 80 anos do João Paulo Guerra, a Clara assumiu a direção do “Tributo”, lançando um belo jornal, com um número único, com 20 páginas, recheado de fotografias e textos, de familiares e amigos, entre os quais me conto. Trata-se de uma edição com uma tiragem limitada a … 80 exemplares! De um dos quais sou, a partir de hoje, o feliz possuidor. Ser amigo do João é não só um privilégio com nos oferece estes privilégios.

Parabéns, uma vez mais, João Paulo Guerra - John Paul War quando calha. E que bela ideia, Clara!

Isabel Mota

Há precisamente cinco anos, no dia 3 de maio de 2017, escrevi isto por aqui:

“Isabel Mota assume hoje as funções de presidente da Fundação Calouste Gulbenkian. É a primeira mulher à frente dos destinos da Gulbenkian e isso não pode deixar de ser especialmente assinalado. 

Conheço Isabel Mota há muitos anos, desde que foi trabalhar para a Representação Permanente em Bruxelas, pouco após a nossa entrada para as então Comunidades Europeias, em 1986, ao tempo em que eu próprio integrava a estrutura central de coordenação da nossa integração europeia, em Lisboa. Depois, Isabel Mota foi secretária de Estado do Planeamento durante vários anos, durante os quais adquiriu uma vasta experiência nos dossiês comunitários.

Com o fim do "cavaquismo" (a Isabel não gosta muito da expressão...), Isabel Mota passou a assessorar o então líder do PSD, Marcelo Rebelo de Sousa, nas questões europeias. Eu era então o secretário de Estado dessa área. Um dia, no gabinete do então primeiro-ministro António Guterres, este combinou com Marcelo Rebelo de Sousa, na nossa presença, que seria criada uma "miniestrutura de relação permanente" entre o governo e o PSD, que "monitorizava o acompanhamento da política europeia passo-a-passo" (para utilizar as expressões usadas pelo agora presidente numa entrevista ao "Expresso", em dezembro de 2015). Essa "miniestrutura" era a Isabel e eu, que passámos a almoçar e a encontrarmo-nos com alguma regularidade. 

Embora com algumas "nuances", as posições dos dois principais partidos tinham largas similitudes no plano europeu e, muito em especial, ambas eram bem distintas, à direita, das do então muito eurocético CDS e, à esquerda, das do PCP (o Bloco estava ainda para nascer). Ficou claro que o PSD não teria um "droit de regard" sobre as posições do governo socialista mas, nas principais questões, este procuraria consensualizar com ele, na medida do possível, aquilo que viesse a apresentar em Bruxelas. E assim se fez, creio que com proveito para o país. Com a "oposicionista" Isabel Mota, que me recorde, só tive uma troca pública de argumentos, aliás bem civilizada, no "Expresso", em torno da questão da regionalização, tema que ela combatia e em que eu defendia a posição governamental, com toda a convicção pessoal que consegui mobilizar na altura para o assunto - e que, confesso, não era imensa... Às vezes, ainda nos rimos com essa polémica.

Os nossos encontros eram sempre com muito "boa onda", porque Isabel Mota é uma pessoa extremamente agradável e divertida. Julgo que conseguimos levar a bom porto aquilo de que os dois líderes políticos nos encarregaram. Anos mais tarde, em 2003, quando eu estava como embaixador na OSCE em Viena, viria a encontrar de novo Isabel Mota numa "task force" que o governo de Durão Barroso criou para acompanhar as negociações do malogrado Tratado Constitucional europeu.

Nos últimos anos, tendo eu passado a exercer as funções de presidente do Conselho Consultivo para a Delegação de Paris da Fundação, regressámos a um contacto mais regular. Sendo Isabel Mota a administradora responsável por aquela área, revelo aqui que passei a tratá-la por "chefe". Agora com a sua ascensão à presidência, vou ter de descobrir um qualificativo que possa representar um "upgrade" a esse título!

Só posso desejar à minha querida amiga Isabel Mota os maiores sucessos na presidência dessa notável instituição "do bem" que tem o nome de Fundação Calouste Gulbenkian.”

Isabel Mota abandona hoje a presidência da Gulbenkian. Foi um período muito exigente - quem sabe do que falo sabe por que o digo - na vida da instituição, com decisões complexas, que se traduziram em importantes mudanças para o futuro da fundação. Foi com imensa coragem e determinação que Isabel Mota conduziu a equipa que enfrentou esse tempo, levando a sua missão a muito bom porto. Deixo-lhe aqui a minha admiração pelo trabalho executado e o meu muito obrigado pela simpatia com que, na minha modesta contribuição para a Gulbenkian, sempre pude contar da sua parte.

A partir de hoje, a Fundação Calouste Gulbenkian passa a ser chefiada por António Feijó, que já fazia parte da administração presidida por Isabel Mota. Trabalhámos juntos, durante três anos, no Conselho Geral Independente da RTP. É uma sólida garantia de que a Gulbenkian, que é um dos ativos culturais mais importantes do país, fica em excelentes mãos.

Ucrânia - e a negociação?

 


Pode ver aqui.

segunda-feira, maio 02, 2022

A Mesa Dois do Procópio


"Nos anos 90, que a Alice me pediu para recordar, o Procópio transpirou o Portugal que então mudava.

A sua Mesa Dois começou por ser a janela nocturna para o “phasing-out” político que se ia adivinhando pelo país, sublinhado nas crónicas do Nuno Brederode, posto a cores nos desenhos do António. Foi a sede constante de uma crítica irónica, arquivo oral do anedotário cáustico que sempre acompanha os tempos moribundos. Para alguns, foi uma trincheira de um exílio político sem sair de casa, sofrido entre dois JB’s, de conspirações mornas com a imprensa e do alimentar de amanhãs que, afinal, se iram cantaram mansamente, de gravata e fato escuro, numa tarde cálida na Ajuda.

Chegada essa hora do socialismo vangélico, parte da Dois foi cooptada, com naturalidade geracional, para o novo poder e suas adjacências. Outra parte, não despicienda, seguiu, com idêntica naturalidade, o sampaísmo até Belém, na dobradinha que a esquerda conseguiu ao virar do quinquénio, dando corpo a um sonho antigo.

Na segunda metade da década, a Dois continuou um fervilhar de ironia e de heterodoxia. Se o novo poder contava ter nela uma complacente cumplicidade, enganou-se redondamente. A Dois confirmou o seu tropismo anarca: “Hay gobierno ? Soy contra!”. As orelhas do guterrismo saíam bem vermelhas das noites procopianas, com alguns dos presentes a terem de aguentar a crítica sonora, a assistirem, impotentes, à enxurrada de pancadaria num governo que tinham como seu. Nada que o “fair-play” não tenha ajudado a suportar, com grande garbo, diga-se desde já.

A história da Mesa Dois não esgotou, nesse tempo, a vida no Procópio. Aliás, parte da Mesa esteve-se sempre muito nas tintas para a política, mandava uns bitaites, contava umas historietas e limitava-se a beber copos, intervalados por aquela espécie de esferovite que a Alice sempre fez passar por pipocas. Foi um tempo em que, por selecção natural, foram abandonando o Procópio alguns espécimens mais chatos, quase sempre por motivação etílica. O bar tornou-se sereno, talvez até sereno demais.

Ao final das tardes, canastrões com ar clandestino e empresarial faziam a folha a secretárias à cata de promoção, sempre recolhidos na mesa à esquerda de quem entra. Em algumas noites, grupos heteróclitos de duvidosa extracção chegavam em bandos, sem pés de veludo, e pediam duas Cocas para oito. Ao bar e à maldita televisão colavam-se alguns pretensos machões, que se entretinham a rodar a sala com o olhar concupiscente, consumindo uma mísera imperial. Nas mesas dos cantos, arrulhavam casais, por horas perdidas, à volta de duas garrafas de Pedras. Os tempos não eram fáceis para a máquina registadora.

No balcão e no apoio gentil às mesas, perdeu-se nesse período o estimável Juvenal, para cujo Pedro V se continua a rumar nos Agostos, quando a Alice empurra os fiéis para a vilegiatura forçada. Passou-se depois por aquela que ficou conhecida como a fase Manpower de recrutamento, com o “Bósnio” e o “Croata” como expoentes desse auge de flexibilidade do mercado de trabalho. Até que, em boa hora, chegou o Luís, emigrado do Ertilas, sossegando para sempre a sala e as hostes com o seu sorriso, simpatia e grande profissionalismo.

Mas, afinal, perguntar-se-á, o que vem a ser essa Mesa Dois de que tanto se fala? A Dois, leitor amigo, é o lugar geométrico do Procópio, identificada por um papelinho que diz “Reservado”, para onde ciclicamente conflui uma fauna de mescla pouco provável, que junta juristas com publicitários, artistas com diplomatas, gestores com cineastas, médicos com doentes da bola, jornalistas com académicos, para além doutras actividades que a prudência aconselharia a não citar, como é o caso dos políticos e dos engenheiros.

A Dois tem uma centralidade lateral (não há contradição nenhuma) que lhe confere a vantagem de uma confortável visão estratégica, que se alarga da porta de entrada ao “primeiro andar” vizinho, passando por todo o bar, dando a melhor possibilidade teórica de “catch the eye” do Luís, para o “refill” dos copos. Os seus bancos têm protuberâncias que seguem estritos critérios ortopédicos, internacionalmente recomendados para a zona sublombar. Sem falha, são mandados reformar pela Alice num ano bissexto sorteado cada vinténio, e acomodam, sobre aquele veludo acetinado, escolhido com esmero nos saldos da Feira de Carcavelos, não mais que cinco clientes. Para além deste número, o convívio cumulativo dos supranumerários obriga a um inevitável empernanço, que a prática demonstra ter já hoje escasso valor como estímulo lúbrico na comunidade de frequentadores.

A partir das noites de glória dos fins-de-semana desse tempo dos anos 90, o espaço vital da Dois foi-se alargando, os banquinhos amontoavam-se, o “primeiro andar” adjacente era às vezes tomado, a mesa do “tête-à-tête” do piano frequentemente anexada. Foi o tempo em que apareceram pela Dois belezas tropicais a alegrar o ambiente e o Jójó, por aí estiveram belas amigas de conhecidos que, tragicamente, desapareceram com a rapidez com que arribaram. Ah! e havia ainda cinema mudo, de que hoje resta o écran, não se sabe bem para quê.

Também por essa época, eram distribuídos com regularidade, na festa estival, os famosos Prémios Procópio, sob critérios de justiça que, pelo menos num caso, o autor destas linhas não tem razões para pôr em causa. Sabe-se hoje que malévolas reticências à democraticidade do júri que atribuía tais galardões eram completamente infundadas, dado que a Alice cuidava em seguir à risca um modelo há muito consagrado nas instituições do Burundi, recomendado por uma embaixadora que com ela toma chá.

Com a década no fim, a Mesa Dois, e nós com ela, ficou mais velha, talvez um pouco mais sábia e mais serena. Mas ficou-lhe, para sempre, o culto da ironia, da amizade, da solidariedade. Hoje, a Dois é uma ilha grisalha num Procópio que parece estar recuperado para a juventude, para a conversa alta, para a alegria saudável das noites. Até a Sedonalice anda mais contente, não é?"

(O bar Procópio faz agora 50 anos. Em 2007, foi editado um livro em que, com textos e imagens, se tentou fazer a história do Procópio. Para ele, houve colaborações da Alice Pinto Coelho, do André Jordan, do António Antunes, do Aventino Teixeira, do Chico Caruso, do José Fonseca e Costa, do Raul Solnado e um texto meu, que a Alice então me pediu que escrevesse, em especial sobre aquilo que a Mesa Dois representou na vida do Procópio na década de 90. Reproduzi aqui esse texto, que já tem mais de quinze anos. Se quiserem comprar o livro, acho que ainda há lá pelo Procópio alguns exemplares à venda.)

domingo, maio 01, 2022

Schröder e Portugal


Gerhard Schröder é, nos dias que correm, uma das figuras mais controversas da Alemanha. Administrador da Nord Stream AG, da Rosneft e da Gazprom, é visto como um “homem de Putin”, o que, no atual contexto, é, porventura, a “recomendação” menos recomendável.

Schröder foi líder dos social-democratas alemães e primeiro-ministro entre 1998 e 2005, numa coligação entre o SPD e os Verdes, então dirigidos por Joschka Fischer, que derrotou a CDU de Helmuth Köhl.

Na memória económica europeia mais liberal, Schröder é creditado como tendo sido responsável pela introdução de importantes reformas, que, para muitos, terão contribuído para um ciclo de prosperidade económica do seu país. Para a esquerda dos social-democratas alemães, porém, o tempo de Schröder é visto como o de uma forte descaraterização ideológica do SPD, um pouco ao jeito daquilo que Tony Blair fez com o “Labour” britânico.

As eleições legislativas de setembro de 1998 deram a maioria absoluta à coligação SPD-Verdes. O novo governo tomou posse em outubro e Schröder, como novo primeiro-ministro, veio a Lisboa, logo no início de novembro, visitar o seu homólogo, António Guterres, num périplo por todos os parceiros.

O principal dossiê europeu de Portugal era, à época, a negociação da programação financeira plurianual da União, a chamada “Agenda 2000”, que deveria passar a vigorar entre 2000 e 2006.

Desde há meses que me competia andar num incessante “shuttle” pelos vários Estados europeus, tentando “vender” a nossa perspetiva sobre a repartição de fundos. Como a Alemanha iria ter a presidência da União no primeiro-semestre de 1999, competindo-lhe então fechar a “Agenda 2000”, ela era, naturalmente, um dos nossos principais interlocutores.

Uma semana antes de Schröder visitar Guterres, eu tinha estado em Bona (é apenas no primeiro semestre de 1999 que a capital alemã se muda definitivamente para Berlim), chefiando uma delegação técnica. Os temas agro-alimentares eram então uma nossa importante prioridade. Já esqueci o que então “sabia” de trigo duro e de quotas de leite…

Schröder jantou com Guterres em S. Bento. Conheciam-se menos bem. Só trazia pessoas do seu gabinete, nenhum ministro ou vice-ministro.

Guterres, ao lado de quem eu estava sentado no jantar, disse-lhe ter sido informado por mim de que havia muito boas perspetivas de as pretensões portuguesas, no quadro das negociações da “Agenda 2000”, estarem a ser bem acolhidas pelo novo governo alemão. Os contactos que eu tinha tido em Bona iam nesse sentido.

Vimos Schröder ficar com um fácies fechado e, voltando-se para mim, inquirou:

- Falou com quem, em Bona?

Disse-lhe que tinha reunido no ministério dos Negócios Estrangeiros, com uma delegação de vários departamentos alemães. 

- E quem é que chefiava a delegação alemã?

A cena estava a ser algo surrealista! Expliquei que tinha sido o vice-ministro dos Negócios Estrangeiros, Hans Von Ploetz.

Schröder voltou-se então para a sua delegação e, em alemão, em voz alta, pergunta: “Quem é esse Von Ploetz?”. De um extremo do seu lado da mesa saltou alguém para explicar, já em voz um pouco mais baixa, ao recém-empossado chanceler, que se tratava de um dos seus dois vice-ministros dos Negócios Estrangeiros, um diplomata de carreira. 

Guterres olhou-me com um discreto sorriso. Eu também estava divertido, mas mantinha-me impassível, a observar a cena.

O chanceler olhou para mim, através da mesa, e disse: “Quando é que pode voltar a Bonn? Este assunto tem de ser visto na chancelaria federal, não no AA” (abreviatura de Auswärtiges Amt, nome do MNE alemão).

(Note-se que a diplomacia alemã era dirigida pelo líder do seu parceiro de coligação, os Verdes, Joschka Fischer. Schröder tinha colocado “ao lado” de Fischer, como outro vice-ministro, um seu homem de confiança, Günter Verheugen. Semanas depois de entrar em funções, Verheugen, que eu conhecia de outras circunstâncias, tinha-me confidenciado que as suas relações com Fischer não eram as melhores. Dois anos mais tarde, Schröder nomeá-lo-ia comissário europeu.)

Olhei de viés para Guterres, que continuava a sorrir beatificamente, e respondi a Schröder, arriscando uma graça: “Até posso ir hoje à noite no seu avião, se tiver lugar para mim…”

Schröder deu uma risada e disse: “Não! Não é preciso! Marque depois uma data com o meu conselheiro europeu”, apontando para um tipo gordo e pesado, que viria a ser uma das “chaves” do nosso (por todos reconhecido) sucesso no compromisso final em Berlim, em março de 1999. Infelizmente, não me recordo agora do seu nome.

Dias depois, lá fui de novo a Bona. Com o meu novo interlocutor, fizemos uma revisão criteriosa de tudo o que havia sido acordado na reunião anterior. Ele disse-me que Schröder lhe havia recomendado que devia “ser tão simpático quanto possível, para tentar resolver o ‘problema português’ “. E foi-o.

No caminho de carro entre a chancelaria federal e a nossa embaixada, onde eu iria depois ter de explicar a um grupo de jornalistas portugueses a razão de duas idas a Bona em tão curto prazo, o meu telemóvel tocou. Era Von Ploetz: “Já sei que estiveste na chancelaria. Houve alguma novidade?”

Disse-lhe que não, mas percebi que ele estava “no escuro”. Naturalmente, evitei dizer-lhe que Schröder, em Lisboa, não sabia bem quem ele era. Para seu percetível contentamento, disse-lhe que ficara com a sensação de que o gabinete do primeiro-ministro me havia confirmado, no essencial, aquilo que, dias antes, ele combinara comigo.

Devo dizer que, nesse momento, senti uma satisfação interior: afinal, os alemães, com toda a sua fama de eficácia, ainda eram mais descoordenados do que nós.

Anos mais tarde, vim a cruzar Hans Von Ploetz, que entretanto fez uma bela carreira como diplomata, julgo que numa conferência em Baku, no Azerbaijão. Não resisti a relembrar-lhe esse episódio, de que ele se lembrava.

Schröder acaba de sofrer, há horas, pela boca do novo ministro alemão das Finanças, a ameaça de lhe cortarem os privilégios que ainda terá como antigo chanceler, tal a fúria oficial que está a cair sobre a sua cabeça, em especial depois de uma entrevista, um tanto arrogante, que deu ao “The New York Times”. Fala-se também de poder ser expulso do SPD.

Para o que aqui me importa, apenas recordo que Schröder se portou impecavelmente com Portugal, durante todo o tempo que pude testemunhar - da “Agenda 2000” às negociações institucionais europeias. O resto é lá com os alemães.

Justiça europeia

Teresa Anjinho foi eleita Provedora de Justiça Europeia. Esta escolha é muito prestigiante para Portugal e representa o reconhecimento de um...