sexta-feira, novembro 14, 2025

Talhinhas


Ontem, ao rever a lista dos "habitués" para a reunião do meu grupo da "tropa", com o qual aos vinte cinco dias do penúltimo mês de cada ano organizo um almoço exclusivamente dedicado a comemorar o dia 25 de Abril, reparei que ainda faltava a resposta do Talhinhas. No último almoço regular do nosso grupo, no mês passado, ele já tinha falhado. Soube agora, por uma mensagem, que também vai faltar a este. E aos próximos.

Terá sido nas primeiras semanas de outubro de 1974 que conheci o Casimiro Pacheco Talhinhas. Eu tinha sido transferido da assessoria da Junta de Salvação Nacional, na Cova da Moura, para a 2ª Divisão do Estado-Maior das Forças Armadas, no Palácio da Ajuda. Fui ocupar o mesmo gabinete e sob a autoridade do então capitão (hoje general) da Força Aérea Casimiro Pacheco Talhinhas. Creio que terá sido o coronel paraquedista Jorge Calheiros quem me recomendou junto do Talhinhas. 

Naquele que era então o único serviço de informações do novo regime, ao Talhinhas e a mim competia acompanhar a atividade dos então imensos partidos e forças políticas, alguns dos quais apareciam e desapareciam no prazo de semanas. Explicar, todos os dias, ao poder militar a evolução e orientação daquela proliferação de siglas constituia a nossa tarefa. Bem interessante, por sinal. Ambos estivemos na primeira Assembleia do MFA na apresentação da nossa leitura do espetro político pós-Abril.

O "28 de Setembro", a primeira tentativa sediciosa contra a Revolução (descontado o frustrado golpe palaciano de Palma Carlos), tinha tido lugar meses antes. Estava a ser criada uma comissão de inquérito "ad hoc" sobre o 28 de Setembro (as comissões "ad hoc" estavam na moda) e o então brigadeiro Pedro Cardoso, que chefiava a nossa Divisão, pediu ao também então major Gabriel Espírito Santo, diretor da Repartição de Informação Interna, para destacar dois oficiais para integrar a comissão. O Casimiro Talhinhas e eu, que ainda mal nos conhecíamos, fomos os escolhidos.

No dia seguinte, apresentámo-nos no Forte de Caxias. O ambiente era um tanto anárquico. A comissão não reunia e, desde logo, ficámos com a impressão de que a presença ali da 2ª Divisão, entidade sobre a qual pairava algum ambiente de suspeição, que nos meses seguintes só se iria adensar, não parecia ser muito bem aceite. Foi então ali, em Caxias, que o Talhinhas e eu nos confrontámos com os "powers that be" daquele estado de coisas. Numa certa altura, vi impedido o meu acesso a uma sala onde ia consultar uma derminada documentação. A pessoa que me barrou a entrada não era um militar, era quadro de um partido político que para ali fora destacado (não, não era o PCP, sabendo que ao escrever isto vou desiludir as pessoas a quem tal daria jeito para as teorias do costume). 

O Talhinhas e eu queixámo-nos do incidente a um responsável da Marinha, tendo-nos sido dito que as coisas ali eram mesmo assim. E, sendo assim as coisas e não nos agradando o modo como elas eram, decidimos suspender a nossa participação na comissão "ad hoc" e regressar a penates, isto é, à 2ª Divisão. Ficámos com a sensação de que ninguém ficou surpreendido com o desfecho. Esse incidente criou uma cumplicidade pessoal entre mim e o Talhinhas que durou até hoje.

De outubro de 1974 a agosto de 1975, trabalhei de muito perto com ele, primeiro na 2ª Divisão, depois, por alguns meses, no SDCI, para onde ambos fomos transferidos após o 11 de Março e a dissolução da 2ª Divisão. 

Entretanto, as nossas vidas mudaram: eu saí da tropa e entrei para o MNE; o Talhinhas fez o que militar e politicamente entendeu dever fazer. A nossa amizade só se reforçou desde então. Nunca mais perdemos contacto - e já lá vai mais de meio século. De grupo em grupo, comigo mais faltoso por via da minha vida itinerante, fomo-nos vendo em muitas jantaradas, cheias de fortes abraços, com a memória de Abril a ligar-nos para sempre.

Desde o meu regresso definitivo a Lisboa, há quase 13 anos, passei a integrar com regularidade uma tertúlia onde o Talhinhas era um impecável gestor logístico, muitas vezes na messe da Força Aérea em Monsanto, outras no Clube Militar Naval, umas muito poucas nuns sítios que eu me encarrego de inventar. Nesse nosso grupo, diga-se, predomina pessoal da Marinha. Ele pela Força Aérea e eu pelo Exército ajudávamos a criar uma, ainda assim escassa, diversidade entre os ramos militares representados nos ágapes. Agora, a Força Aérea deixou de "voar" por ali.

O Casimiro Talhinhas era um homem bom, um amigo certo, com o seu eterno sorriso e um look "boyish" que disfarçava bem a idade que afinal ia tendo. Aliás, que vamos tendo, até que o tempo se canse de nós. Como hoje aconteceu com ele.

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