Há muitos anos, em Israel, visitei um “kibutz”. Na ocasião, a primeira impressão que tive foi a de devia haver poucas coisas mais parecidas com o “ideal” da sociedade comunista do que essas comunidades onde os bens materiais tinham uma importância muito limitada, em que o dinheiro físico era de um valor quase instrumental, onde a partilha de tudo, até a educação coletiva dos filhos, era a regra. Tratava-se de uma economia de mera subsistência, suportada por uma forte cultura religiosa, com as técnicas requintadas de preservação da água a dar o toque de contemporaneidade àquele vida de recorte quase primário.
A visita era “política” e tinha muito a ver com a propaganda israelita ao seu modelo de sociedade, de que os “kibutz” eram símbolos exemplares. O grupo de portugueses envolvido na visita, onde não havia nenhum crente no judaísmo, achou graça ao exercício mas, ao que pressenti, permaneceu sempre um pouco descrente na capacidade de sustentacão futura daquele tipo de “engenharia” social. Consta-me, aliás, que o mundo dos “kibutz”, nos dias de hoje, é já muito diferente, sendo pouco apelativo para as novas gerações, mobilizadas por agendas de interesses bem diversas.
Mas voltemos à nossa visita. Para chegar ao “kibutz”, verdejante e erigido como um bem guardado oásis em terra inóspita, tínhamos atravessado zonas que, vim a saber, em resposta à minha curiosidade, eram pequenos aldeamentos árabes, com um grau de visível pobreza. Fixei a cara dessas pessoas, que olhavam, com um ar tenso, as viaturas israelitas que nos transportavam.
No “kibutz”, para nossa surpresa, também se falava português. Eram alguns judeus que tinham migrado do Brasil para a “terra prometida”, ali misturados com outras nacionalidades. O nosso principal interlocutor, simpático e falador, fez-nos uma descrição verdadeiramente entusiástica das virtualidades do modelo: da troca de produtos que faziam com outros “kibutz”, da venda dos frutos da exploração nos mercados de Tel-Aviv, utilizando depois o resultado coletivo dessas vendas para compra de outros bens essenciais, nas raras saídas para fora do “kibutz”. “Se não fosse uma heresia dizê-lo, eu afirmaria que vivemos no paraíso, onde nada nos falta”, disse-nos, com um largo sorriso.
Acho que nenhum dos visitantes ficou seduzido pela hipótese de algum dia vir a viver num “falanstério” similar, mas por todos perpassou uma imensa admiração por quem o fazia, desprendido dos bens materiais. A similitude com um convento terá surgido de imediato na nossa cabeça.
Confesso que, sem o menor sentido provocatório, fiz então uma pergunta, num tom neutro, mais para encher conversa do que por real interesse: “Também trocam produtos com as aldeias árabes por que passámos, que vimos no caminho para cá?”
Num segundo, o ambiente mudou por completo. Os acompanhantes israelitas olharam para mim como se eu tivesse dito um insulto. O judeu brasileiro “fechou” a cara e nunca mais esqueci a frase simples, mas bem sintomática, com que me respondeu: “Essa gente, para nós, não existe!” E mudou de conversa.
As pessoas com quem eu ia creio que ficaram tão chocadas como eu. Acho que os próprios funcionários israelitas se surpreenderam com a crueldade do comentário do habitante do “kibutz”. E, naquele instante, grande parte da simpatia genuína que, nos minutos anteriores, se tinha gerado, desvaneceu-se. A visita terminou com alguma rapidez.
Quando, há dias, vi que o mandato de Benjamin Netanyahu foi renovado, que o seu projeto de um “grande Israel” tem hoje o apoio claro da maior potência internacional, à revelia de resoluções do Conselho de Segurança da ONU que os próprios EUA aprovaram, que o caminho do Estado israelita vai no sentido evidente de um sistema de “apartheid”, dei comigo a pensar que o judeu brasileiro com quem me cruzei, há umas décadas, nesse “kibutz” perdido no “West Bank”, se acaso ainda for vivo, deve estar hoje feliz. Mas lembrei-me muito “dessa gente”.