sexta-feira, março 06, 2020

Essa gente


Há muitos anos, em Israel, visitei um “kibutz”. Na ocasião, a primeira impressão que tive foi a de devia haver poucas coisas mais parecidas com o “ideal” da sociedade comunista do que essas comunidades onde os bens materiais tinham uma importância muito limitada, em que o dinheiro físico era de um valor quase instrumental, onde a partilha de tudo, até a educação coletiva dos filhos, era a regra. Tratava-se de uma economia de mera subsistência, suportada por uma forte cultura religiosa, com as técnicas requintadas de preservação da água a dar o toque de contemporaneidade àquele vida de recorte quase primário.

A visita era “política” e tinha muito a ver com a propaganda israelita ao seu modelo de sociedade, de que os “kibutz” eram símbolos exemplares. O grupo de portugueses envolvido na visita, onde não havia nenhum crente no judaísmo, achou graça ao exercício mas, ao que pressenti, permaneceu sempre um pouco descrente na capacidade de sustentacão futura daquele tipo de “engenharia” social. Consta-me, aliás, que o mundo dos “kibutz”, nos dias de hoje, é já muito diferente, sendo pouco apelativo para as novas gerações, mobilizadas por agendas de interesses bem diversas.

Mas voltemos à nossa visita. Para chegar ao “kibutz”, verdejante e erigido como um bem guardado oásis em terra inóspita, tínhamos atravessado zonas que, vim a saber, em resposta à minha curiosidade, eram pequenos aldeamentos árabes, com um grau de visível pobreza. Fixei a cara dessas pessoas, que olhavam, com um ar tenso, as viaturas israelitas que nos transportavam.

No “kibutz”, para nossa surpresa, também se falava português. Eram alguns judeus que tinham migrado do Brasil para a “terra prometida”, ali misturados com outras nacionalidades. O nosso principal interlocutor, simpático e falador, fez-nos uma descrição verdadeiramente entusiástica das virtualidades do modelo: da troca de produtos que faziam com outros “kibutz”, da venda dos frutos da exploração nos mercados de Tel-Aviv, utilizando depois o resultado coletivo dessas vendas para compra de outros bens essenciais, nas raras saídas para fora do “kibutz”. “Se não fosse uma heresia dizê-lo, eu afirmaria que vivemos no paraíso, onde nada nos falta”, disse-nos, com um largo sorriso.

Acho que nenhum dos visitantes ficou seduzido pela hipótese de algum dia vir a viver num “falanstério” similar, mas por todos perpassou uma imensa admiração por quem o fazia, desprendido dos bens materiais. A similitude com um convento terá surgido de imediato na nossa cabeça.

Confesso que, sem o menor sentido provocatório, fiz então uma pergunta, num tom neutro, mais para encher conversa do que por real interesse: “Também trocam produtos com as aldeias árabes por que passámos, que vimos no caminho para cá?”

Num segundo, o ambiente mudou por completo. Os acompanhantes israelitas olharam para mim como se eu tivesse dito um insulto. O judeu brasileiro “fechou” a cara e nunca mais esqueci a frase simples, mas bem sintomática, com que me respondeu: “Essa gente, para nós, não existe!” E mudou de conversa.

As pessoas com quem eu ia creio que ficaram tão chocadas como eu. Acho que os próprios funcionários israelitas se surpreenderam com a crueldade do comentário do habitante do “kibutz”. E, naquele instante, grande parte da simpatia genuína que, nos minutos anteriores, se tinha gerado, desvaneceu-se. A visita terminou com alguma rapidez.

Quando, há dias, vi que o mandato de Benjamin Netanyahu foi renovado, que o seu projeto de um “grande Israel” tem hoje o apoio claro da maior potência internacional, à revelia de resoluções do Conselho de Segurança da ONU que os próprios EUA aprovaram, que o caminho do Estado israelita vai no sentido evidente de um sistema de “apartheid”, dei comigo a pensar que o judeu brasileiro com quem me cruzei, há umas décadas, nesse “kibutz” perdido no “West Bank”, se acaso ainda for vivo, deve estar hoje feliz. Mas lembrei-me muito “dessa gente”.

9 comentários:

Jaime Santos disse...

É por isso que quando eu ouço certas pessoas da Esquerda dizer que é necessário providenciar segurança às classes populares e fechar fronteiras ao comércio, para combater o populismo, não se ficando muito bem a perceber o que irão fazer aos imigrantes, fico logo com a pulga atrás da orelha. O falanstério israelita pelos vistos redundou no grande Israel de Bibi Netanyahu...

Viva pois o livre comércio e a livre circulação de pessoas que são das maiores conquistas que a UE nos permitiu, inclusive aos nossos emigrantes, muitos dos quais são justamente provenientes das ditas classes populares...

Joaquim de Freitas disse...

Sei que por vezes, nos meus comentários, apareço muito mais radical que o Senhor Embaixador. A minha origem social, talvez, e o percurso na vida completamente diferente. O Senhor foi emigrante itinerante profissional de alto nível, sem nunca deixar a Terra, eu sou emigrante definitivo desde há meio século, por razoes políticas ligadas à história do meu Pai. Estou cá por solidariedade, mas não precisava.

O texto do Senhor Embaixador, presente, é talvez aquele onde posso dizer que nunca estive mais em sintonia com o que pensa que hoje. É que eu conheço os kibutzes por dentro. Como responsável comercial e em seguida como empresário, visitei vários e, dalguns fiz meus clientes e alguns amigos.

Não poderia dizer melhor do assunto que o que o Senhor fez. São uma elite privilegiada da sociedade israeliana. Desde sempre. Uma espécie de cartão de visita que angariou muitos apoios sonantes e intelectuais, do mundo inteiro.

Vi como funcionam. Algumas das empresas onde vendi a minha tecnologia, são entre as primeiras em Israel. E sempre à ponta do progresso, porque a capacidade de investimento não lhes falta. E escrevo isto, porque o texto do Senhor poderia levar a crer que “só” produzem agrumes para os mercados de Tel Aviv… Não, têm grandes empresas industriais com produtos que exportam para o mundo inteiro. Sobretudo na parte eletrónica.

Contam no seu seio com bons engenheiros, que são capazes de propor modificações técnicas de valor nos sistemas industriais que lhes vendemos e de os adaptar com sucesso aos seus problemas. Eu beneficiei de duas ou três ideias inteligentes. Que a minha firma adoptou.

Resta o outro aspecto que o Senhor Embaixador notou e muito bem, o “Dessa Gente”. É na maneira como tratam aqueles que espoliaram das suas terras e da sua essência humana, que Israel é julgada e condenada pelas pessoas de bom senso.

E que tenham para os apoiar a maior potência económica e militar mundial, não é de admirar: na génese desta nação, está um dos maiores genocídios da história da humanidade. Pelas mesmas razoes, os mesmos objectivos.

Os políticos da direita israeliana e mesmo muitos da esquerda, são culpados de assassinato da memória , quando se apropriaram a história, a memoria e as identidades judias para construir, em nome dos Judeus, um Estado de Apartheid qui traz em permanência a recordação, sobre muitos planos, a Alemanha dos anos 1930.

A “lei sobre Israel Estado Nação do Povo Judeu” é exactamente isso. Este estado que era suposto dar refúgio aos judeus perseguidos tem valores que o aproximam infinitamente mais daqueles que cometeram o genocídio nazi do que daqueles que o sofreram.

Luís Lavoura disse...

Em São Paulo há um ginásio só para judeus. Gentio não entra.
Não é só em Israel que os não-judeus são "essa gente" para os judeus.

alvaro silva disse...

De facto os ditos "palestinianos" foram literalmente enganados pela Jordânia, pelo Egipto e por todos os árabes em geral quando prometeram aos "autóctones2 o retorno das terras, compradas, arroteadas e desenvolvidas pelos kibutzs. Mas enganaram-se ou foram enganados por aqueles "que lhes prometeram dar o que não era deles" e claro perderam a guerra dos seis dias e as esperanças, como já tinham perdido em 48. Mas irracionais e teimosos e devidamente instigados continuam a "marrar" em conceitos ancestrais e a acreditar nos santões do costume, sem se agiornarem com o mundo em que vivem. Tanto pior para eles que não se libertam nem deixam libertar.

Luís Lavoura disse...

Joaquim de Freitas

está instalada cá em Portugal, com uma fábrica, a empresa Shamir, que produz lentes para óculos. Essa empresa, uma grande nesse setor, nasceu e tem a sua sede num kibutz do mesmo nome, na Galileia.

Faz-me confusão como é que kibutzim podem, por um lado, ser aldeias idílicas nas quais os habitantes se dedicam à agricultura comunitária e cooperativa, por outro lado ser sedes de grandes empresas mundiais...

Luís Lavoura disse...

uma economia de mera subsistência, suportada por uma forte cultura religiosa

Acho isso um bocado surpreendente, tendo em conta que a população israelita atual é em grande parte agnóstica ou ateia (tal e qual como a população europeia atual) e que os kibutzim, em particular, foram fundados por judeus socialistas, que não eram propriamente um expoente de religiosidade - a maioria deles não era, de todo, religiosa.

Luís Lavoura disse...

há dias, vi que o mandato de Benjamin Netanyahu foi renovado

Estive agora a ver o resultado das últimas eleições israelitas na wikipedia, e não me pareceu, de todo, claro que o mandato de Netanyahu tenha sido renovado. Os quatro partidos aliados de Netanyahu, todos unidos, não alcançam metade do parlamento israelita; seria preciso um quinto partido (o Israel Beiteinu) para o perfazer - e uma aliança de cinco partidos é uma coisa terrível de manter coesa.

Não sei quais foram os desenvolvimentos pós-eleitorais, mas não me parece evidente que Netanyahu se vá conseguir manter no poleiro.

Joaquim de Freitas disse...

Luis Lavoura: 6 de março de 2020 às 11:08



As actividades agrícolas e as actividades industriais existem em kibutzes específicos. Mas ainda existem alguns em que as duas actividades coexistem.
Nos últimos anos, mais de metade dos kibutzes eram industriais, aos quais vieram juntar-se os dedicados ao turismo e aos serviços.
A agricultura é, hoje, a parte menos importante.

Nos anos em que trabalhei este sector, existiam à volta de 300 kibutzes, na qual viviam umas duas centenas de milhares de pessoas, da forma colectivista que certamente conhece.

Se o Sr. quiser explorar um exemplo de kibbutz industrial, deixo-lhe aqui um exemplo dum cliente e amigo meu: PACHMAS PACKAGING LTD - Ein Hahoresh

Joaquim de Freitas disse...

Luis Lavoura: 6 de março de 2020 às 11:08



SHAMIR , é um grande kibbutz industrial da industria optica, que pertence a 50% à firma francesa Essilor Internacional, situada proximo da minha residência, e grande ao nivel internacional.

SHAMIR é um bom exemplo de kibbutz industrial.

Parabéns, concidadãos !