quinta-feira, outubro 03, 2024

O outro doutor


"Onde é que trabalha?" A pergunta, feita pela minha ocasional parceira de viagem, naquele Boeing 707 da Pan American, entre Lisboa e Nova Iorque, era, manifestamente, para encher o muito tempo à nossa frente. Respondi: "Trabalho na Caixa Geral de Depósitos". Não sei se acrescentei que aquelas eram as minhas primeiras férias, depois de um também primeiro ano completo de trabalho na Caixa. Mas pode ter acontecido: sou muito dado a alimentar conversas com pormenores. Estávamos em dezembro de 1972.

"Trabalha no departamento médico?", inquiriu a minha vizinha de assento. Respondi que não, achando um pouco estranha a pergunta. "Mas é médico, não é?"

Foi nesse instante que percebi a confusão que se instalara. Dias antes, eu tinha ido a uma agência de viagens comprar um lugar numa escursão a Nova Iorque, que vira anunciada num jornal. Lembro-me bem que o preço era menos de sete mil escudos, viagem e hotel incluídos. Outros tempos! A pessoa que me atendeu disse-me: "Talvez lhe possa arranjar uma viagem mais barata. Temos um pacote especial de grupo, para o Auto-Clube Médico Português, e falta-nos precisamente uma pessoa para o completar. Se aceitar integrar esse grupo, poupa algum dinheiro". A ideia era apelativa e concordei. E lá fui, dias depois, para Nova Iorque, inserido no grupo.

Demorou aí dois ou três dias até que todos viessem a saber que era menos adequado tratarem-me por "colega", como haviam começado por fazer. Mas foram muito simpáticos. Até ao fim da viagem, que no regresso teve um inesperado mas muito agradável e prolongado desvio por Barcelona, com a Portela fechada por nevoeiro, fui sempre tratado como uma espécie de "médico honorário".

Passaram uns bons anos até que um dia, ao entrar num consultório médico, algures em Lisboa, fui saudado pelo especialista que ia consultar com um risonho "Como vai o colega?", logo se identificando como um dos meus companheiros dessa velha e bela viagem aos "States", poucos dias antes do Natal de 1972. Não recordo que, no termo da consulta, entremeada com memórias comuns desses dias em Manhattan, o meu "colega" me fez algum desconto...

Ao passar numa das Avenidas Novas, fotografei há dois dias este letreiro luminoso. E, tal como as cerejas, as coisas vieram, umas atrás das outras.

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