Era dezembro de 1987. A porta do meu novo gabinete tinha uma mola. Ele passou metade do corpo e ficou por ali, qual Martim Moniz, atravessado na entrada, com a barriga saliente a segurar a porta.
"Tu é que és o Seixas da Costa?", perguntou, da sua insólita postura. Confirmei e ele entrou, dando-me uma forte mãozada. "Sou o António, António Sequeira Nunes. Vamos ser vizinhos". Com o António, não havia um segundo de oportunidade para não nos tratarmos por tu.
António Sequeira Nunes era chefe de gabinete do ministro João de Deus Pinheiro, ministro dos Negócios Estrangeiros. Eu era o novo assessor do secretário de Estado Durão Barroso. Os nossos dois gabinetes eram muito próximos. E próximos ficámos, criando uma relação pessoal muito boa.
Às vezes, nos mais de dois anos que passei por ali, o António entrava e sentava-se no único sofá da minha sala. Trazia historietas, raramente da casa, algumas picantes, coisas com graça. Outras vezes, era eu quem empurrava a porta dele, ao contrário da minha quase sempre entreaberta e, depois de um "Estás livre?", entrava, levando uma anedota.
Numa casa por onde sempre perpassa alguma snobeira e espírito de casta, o António deve ter percebido, desde muito cedo, que, comigo, estaria mil por cento à vontade. Imagino que deve ter embirrado com alguns dos meus colegas mais velhos, muito "stiff upper lip", prenhes de importância, mas que eram obrigados a frequentar, por razões de serviço ou exigência de carreira, o gabinete de um homem simples, direto, que todos sabiam de uma dedicação extrema ao ministro, com quem já viera da sua estada na Educação.
O António era, no dizer de alguém, um verdadeiro "character". Tinha patilhas, faltava-lhe o cabelo no topo da cabeça que lhe sobrava, em dois tufos, ao lado das orelhas, fazia, às vezes, um carão, falava grosso e fumava imenso. Quero crer que não fazia o género de alguns "plenipotenciários"! E ele ralado!
Era um fanático do Belenenses, de que foi presidente, por alguns anos. Acho até que gostava mais do clube do que do PSD - ele que andara pelas origens do PPD e até ajudara na sua segurança, em tempos que entendia como heróicos, de que me contava alguns episódios pitorescos, perguntando: "Nessas alturas, tu achavas que éramos uns fachos, não era?" Eu não lhe respondia...
Um dia, quase que se zangou comigo: recusei um convite para ir para "número dois" na nossa missão na OCDE, depois de ele ter "vendido" o meu nome, recheado de elogios, ao embaixador político que estava por lá. Ficou furioso, escandalizado: "Não percebo! Não queres ir viver para Paris?". Fosse eu presciente e ter-lhe-ia respondido que iria ter tempo para isso.
Voltámos a ver-nos, episodicamente e sempre por mera casualidade, salvo no dia em que, simpaticamente, foi ao lançamento de um livro meu, no Centro Cultural de ... Belém - "where else?", para um belenense.
Ao longo dos anos, fui sabendo dele. Ontem, soube que o meu amigo António Sequeira Nunes morreu.
4 comentários:
Estive com ele várias vezes por razões profissionais "nossas" e, mais tarde, por razões de "outros" que ajudei a intermediar.
Já lá vão muitos anos mas lembro-me bem da simpatia e afabilidade que sempre caracterizaram os nossos contactos, uma daquelas poucas pessoas que sabemos de antemão que, por mais complicado que seja o tema, vamos ter uma reunião suficientemente informal e bem disposta para só poder acabar com todos os consensos possíveis alcançados.
Ao ler agora o seu texto veio-me logo à memória a última vez que estive com ele, nessa altura já não nos víamos há uns 5 anos.
Estava eu reunido com outra pessoa, ele deve ter querido lá ir dizer algo a essa pessoa, alguém lhe deve ter dito que estava em reunião comigo, entrou por ali dentro com um alegre "disseram-me que você estava aqui e não podia deixar de lhe vir dar um abraço" com aquele à vontade e simplicidade raros.
Numa casa por onde sempre perpassa alguma snobeira e espírito de casta
Como assim? Qualquer um pode ser ou tornar-se diplomata, não é verdade? Ou é preciso ser-se de sangue azul? O Francisco, ao que julgo, não é de nenhuma família nobre nem de nenhuma casta.
Nada mais bonito que ficar na memória como um "gajo muita porreiro" e deixar belas histórias para contar a quem com a pessoa conviveu. Que descanse em paz.
Luís Lavoura, são precisos títulos e brasões para as pessoas se armarem ao pingarelho e acharem-se de um nível existencial superior? Estruturas altamente hierarquizadas são um belo palco para compensar certas falhas narcísicas.
Que descanse em Paz.
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