Com a ocorrência do 25 de Abril, Israel aproveitou para informar as autoridades portuguesas que "reconhecia" a Junta de Salvação Nacional. Prudente, o nosso MNE registou então, numa nota interna, que Portugal nunca tinha expressamente reconhecido Israel, razão porque o respetivo governo não fora incluído na comunicação geral através da qual dera conta ao mundo do novo regime.
Porque os tempos corriam a favor de um posicionamento prioritário de abertura da diplomacia portuguesa face ao então chamado "Terceiro Mundo", em que os países árabes tinham um papel predominante, e de que decorria naturalmente uma atitude mais pró-palestiniana, o período pós-Revolução não parecia muito favorável a uma aproximação com Tel-Aviv. Melo Antunes, ministro dos Negócios Estrangeiros, assumiu então posições públicas desfavoráveis aos desígnios israelitas e abriu caminho a que, nas Nações Unidas, num voto que viria a ser considerado muito polémico, o nosso país se ligasse a uma resolução que equiparou o sionismo ao racismo (72 votos a favor, 35 contra e 32 abstenções), afastando-se, neste caso, da posição de vários países ocidentais.
Julgo que se pode considerar que, tendo sido este o gesto anti-israelita mais extremado assumido pela diplomacia portuguesa, ele acabou por criar, paradoxalmente, um ambiente propício a uma viragem na atitude futura de Portugal face a Israel.
Foi o Partido Socialista quem esteve no centro desta nova atitude portuguesa. Com efeito, estando o Partido Trabalhista no poder em Tel-Aviv, a lógica de apoios dentro da Internacional Socialista acabou por favorecê-lo e Mário Soares veio a mostrar-se crescentemente aberto a favorecer uma maior aceitação de Israel no quadro internacional, com a contribuição de Portugal. Ao mesmo tempo - e lembremo-nos que estávamos no tempo tenso de 1976 -, esta orientação socialista marcava também, no plano interno, o seu claro afastamento da linha "terceiro-mundista" que o PS considerava ter marcado o consulado diplomático de Melo Antunes. Aliás, o ministro militar teve o cuidado de desenvolver bem o seu ponto de vista no seu discurso de despedida do MNE, largamente citado pela minha colega Manuela Franco, num artigo em cuja factualidade me tenho vindo a apoiar neste e no anterior post e cuja consulta recomendo.
Assim, logo no programa do I Governo constitucional, em 1976, referem-se, embora sem sentido claro de decisão, "as questões do estabelecimento de relações diplomáticas com a China Popular e Israel". Esta clara inflexão fora precedida de visitas partidárias a Israel de Jaime Gama e de Salgado Zenha. Porém, como bem refere Manuela Franco, dentro do MNE essa nova predisposição socialista não apenas não provocou efeitos sensíveis como terá mesmo suscitado algumas surdas resistências. Basicamente, e para o que contava em termos de atitude prática, a política manteve-se a mesma, mesmo sendo já Medeiros Ferreira o novo ministro.
Embora não disponha, de momento, de datas exatas comigo, recordo que, algures em 1977, uma missão técnico-diplomática que eu integrava, destinada a finalizar um promissor processo de contratação de obras públicas, iniciado no ano anterior, foi sujeita a uma espécie de "quarentena" em Tripoli, na Líbia, durante quase uma semana. Isolados num hotel nos arredores da capital, sem comunicações com o exterior, com os passaportes e bilhetes nas mãos dos nossos anfitriões, verificávamos, com surpresa, uma diferença radical de atitude face à simpatia com que, menos de um ano antes, aí havíamos sido recebidos. Ao final de um período de perplexidade e mesmo de alguma angústia, viémos a ser informados que estávamos a ser "vítimas colaterais" do anúncio da decisão, por parte de Portugal, de que Lisboa e Tel-Aviv iriam estabelecer relações diplomáticas a nível de Embaixada. "For the record", assinale-se que tudo se compôs e os contratos com os líbios acabaram por ser assinados, tendo aberto caminho a uma ininterrupta presença da indústria portuguesa de construção e obras públicas naquele mercado.
A decisão de elevação das relações para o nível de Embaixada (Israel transformaria em Embaixada, logo em 1977, o Consulado-geral que mantinha em Lisboa; Portugal só em 1988 acreditaria o seu embaixador em Roma como não residente; um embaixador residente português em Tel-Aviv apenas se instalou em 1991) poderá ter sido um dos factores de conflito entre Medeiros Ferreira e Mário Soares, com a saída do primeiro de MNE, substituído interinamente pelo segundo. Com esta decisão favorável a Israel, a nossa diplomacia passou então por momentos de grande dificuldade com os países árabes, que chegou a ameaçar os nossos fornecimentos petrolíferos, tanto mais que estávamos em campanha na candidatura a um lugar de membro não-permanente do Conselho de Segurança da ONU.
No ano seguinte, por insistência do governo de Tel-Aviv, aquela que julgo ser a primeira missão oficial portuguesa visitou Israel. Fui nela integrado e, dessa forma, julgo ter sido o primeiro funcionário diplomático português a deslocar-se oficialmente a Israel (curiosamente, creio que havia sido também o primeiro a ir à Líbia, em 1976, enquanto representante do MNE).
Em Portugal, viviam-se os tempos do Governo PS-CDS, sendo Victor Sá Machado, deste último partido, ministro dos Negócios Estrangeiros. Antes da partida da missão, o jovem terceiro secretário de embaixada que eu era foi levado à presença do ministro, acompanhado do chefe de repartição, Queirós de Barros. Foi-me explicado que o ministro da Agricultura, o socialista Luis Saias, que eu acompanharia, tinha uma missão exclusivamente técnica e que estava, em absoluto, fora de causa assumirem-se quaisquer posições políticas, quer com impactos bilaterais, quer relativamente ao conflito do Médio Oriente. Assim se fez, com pormenores curiosos que só o tempo permitirá revelar, não obstante o contraparte do nosso governante, que nos acompanhou grande parte do tempo, o então ministro israelita da Agricultura, se chamar... Ariel Sharon!
Como atrás se disse, a nossa Embaixada em Tel-Aviv só viria ser aberta em 1991, a tempo de poder acompanhar a nossa segunda presença no Conselho de Segurança das Nações Unidas. A partir daí, as relações entraram num registo de normalidade, com Portugal a assumir sempre uma posição de grande equilíbrio que, basicamente, tentava conciliar o direito à criação de um Estado palestiniano e a necessidade de preservação de um Estado de Israel com fronteiras reconhecidas.
Em fins de 1995, teve lugar a primeira visita de um chefe de Estado português a Israel. Então já no exercício de funções políticas, acompanhei Mário Soares nessa viagem, em substituição do ministro dos Negócios Estrangeiros, Jaime Gama. Era um tempo de grandes esperanças para o processo de paz no Médio Oriente, posterior aos acordos de Oslo e Washington. Mário Soares era um interlocutor respeitado pelo primeiro-ministro Yitzhak Rabin e pelo MNE Shimon Peres. Nas várias conversas que ambos tivemos com estes responsáveis israelitas, fomos estimulados a ajudar, nomeadamente no âmbito europeu, aos esforços de reconstrução económica que a Autoridade Palestiniana tinha em curso na Cisjordânia e, em especial, em Gaza. Estávamos precisamente com Yasser Arafat, líder da Autoridade Palestiniana, depois de jantar, em Gaza, na noite de 5 de Novembro de 1995, quando nos chegou a notícia do assassinato de Rabin, em casa de quem tínhamos almoçado na véspera.
Nada seria igual, naquela parte do mundo, depois dessa data. O processo de paz ruiu, a unidade palestiniana rompeu-se, Israel evoluiu internamente por caminhos diversos. Como hoje se vê pelas imagens de tragédia que se juntam às notícias que nos chegam.
1 comentário:
Foi um "privilégio" raro, Senhor Embaixador de ter encontrado o "algoz" de Sabra e Chatilla nas suas andanças diplomáticas em Israel.
Eu encontrei o mesmo, sem poder escapar à sua presença, num voo de regresso de Tel-Aviv a Paris, num avião da Air France, no qual impôs a sua presença, com a esposa e dois guardas de segurança…e nos obrigou a um atraso de 45 minutos.
E não foi tudo: obrigaram-me a ceder o meu assento, na primeira fila, perto da porta, que reservo sempre, como de costume, para o conforto das minhas longas pernas.
Primeiro a hospedeira e depois o chefe de cabine pediram-me para mudar de lugar, para satisfazer uma individualidade…Recusei.Ainda não sabia quem era…. E quando ele chegou, continuei a recusar, até que o comandante veio explicar-me que ele mesmo foi avisado no ultimo minuto, por questões de segurança, porque o carrasco de Sabra e Chatilla, cuja consciência devia pesar muito, devia ser protegido mesmo no avião francês, por dois esbirros armados…que deviam sentar-se em frente dos passageiros, nos lugares normalmente destinados aos dois membros do pessoal de Air France.
Fiquei imediatamente atrás do indivíduo, e era ver os dois esbirros saltar como duas molas, dos seus assentos ,quando fui buscar um dossier na minha pasta colocada por cima. Prontos a sacar das armas...
Confesso que fui buscar documentos mais de uma vez para os “incomodar”..
A chegada a Lyon-Satolas, fui o único passageiro a descer do Airbus ! No meio duma escolta de CRS, da porta do avião até à aerogare. O avião estava cercado de dezenas de CRS.
Escrevi à Direcção de Air France, para protestar que tivessem autorizado um criminoso de tal nível, num avião comercial, pondo em perigo centenas de passageiros. Que ia a Paris, fazer as suas compras de Natal, com a esposa, segundo o que me foi dito… Ignoraram ...
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