Quem fica à frente de quem numa cerimónia pode parecer uma questão bizantina para um observador comum, mas não o é para quem conhece as questões institucionais.
A ordem de precedências repercute a hierarquia de poderes. Por alguma razão, por muitos anos, depois do 25 de abril, a lista de precedências das autoridades do Estado esteve “congelada”: a ausência de consenso em matérias que metiam presidência de tribunais superiores, chefias militares e um certo tipo de governantes, por exemplo, criou muitas dificuldades.
Pelo caminho, ficavam outras questões polémicas, como o lugar das autoridades religiosas ou o gesto, que alguns consideram dever ser feito, ao familiar em linha direta da última família que titulou a monarquia. Mas lá se chegou a um consenso relativo, com alguns restos de ambiguidade pelo meio.
Se, ao nível nacional, as coisas têm esta delicadeza, no plano externo o tema assume uma imensa complexidade, porque pode significar desigualizar os países. Mas é também uma questão sensível no âmbito das organizações internacionais.
Há semanas, assistimos à cena da presidente da Comissão Europeia, na Turquia, ter sido privada de um lugar equivalente, em precedência, ao do seu colega presidente do Conselho Europeu, com este último a assumir o “faux pas” de deixar que a cena se passasse como se passou. O famigerado Tratado de Lisboa é um dos culpados de isto acontecer, para além de outras coisas más, entre as poucas boas, que trouxe à vida europeia.
Passaram mais de duas décadas anos, pelo que acho que já posso contar uma história ocorrida no Conselho Europeu de Lisboa, em março de 2000, bem antes daquele tratado.
Depois de um almoço do Conselho Europeu, com os primeiros-ministros, iam reunir os ministros dos Negócios Estrangeiros dos então “quinze”.
A certa altura, no caminho para a reunião, naquele espaço junto à Junqueira, senti que alguém me metia o braço: era Javier Solana, desde há meses Secretário-Geral do Conselho e Alto-Representante para a Política Externa e de Segurança Comum.
Eu sabia que ele não andava muito bem disposto. Na noite anterior, tinha tido um dissídio com o nosso Diretor-Geral de Política Externa, o embaixador João Salgueiro, que me tinha obrigado a sair de casa, cerca da uma da manhã, para ajudar superar o problema - uma questão que, a esta distância, já esqueci qual era.
Javier também vinha desagradado com o lugar que lhe tinha sido dado à mesa do almoço. Reagi, bem humorado: “Hombre! Te quedaste a mi lado!” O problema dele era o facto de estar “menos bem” colocado do que Chris Patten, o comissário que tinha a seu cargo as Relações Externas: o eterno problema Conselho vs Comissão. E perguntou: “Agora, na reunião, fico à direita ou à esquerda do Jaime (Gama)?”. Disse-lhe, francamente, que não sabia.
Chegámos à sala, fui para o lugar de Portugal (era Jaime Gama quem presidia à reunião, pelo que eu chefiava a nossa delegação). Vi o “sitting arrangement” da cabeceira do Conselho e constatei que Patten se sentava à direita de Gama. Olhei para o outro lado e lá estava Solana. Cruzou o olhar comigo, à distância, e levantou os braços ao céu, como que a exclamar: “Estás a ver isto?!”. Eu fiz um gesto com as mãos, de que nada podia fazer. E lá se fez a reunião dos chefes da diplomacia europeia.
Acabou tudo em bem, creio eu!
1 comentário:
O famigerado Tratado de Lisboa é um dos culpados de isto acontecer
Ainda bem que o Francisco reconhece isto.
Em vez de atirar pedras ao presidente turco e ao seu país, deveríamos reconhecer que a principal culpa do sucedido é a União Europeia, a qual não tem uma hierarquia clara, que deveria ter.
Enviar um comentário