quarta-feira, maio 26, 2021

Arlindo Barbeitos


Julgo que terei conhecido o Arlindo Barbeitos, como era vulgar nessa Luanda dos anos 80, num jantar em casa de alguém. Seria com a Alzira e o João Sobral Costa? Não sei, nem isso interessa hoje muito. Só sei que fiquei marcado pela serenidade sorridente daquele que me foi então dito ser um reputado poeta, depois de ter andado anos pela guerrilha. Era etnólogo, formado em Frankfurt. Tinha um perfil físico que sempre achei muito pouco angolano, o estilo que podia ser de um árabe.

Esse nosso primeiro contacto foi breve. O Arlindo estava acompanhado pela mulher, a Maria Alexandre Dáskalos, uma figura que com ele contrastava, pela expressão histriónica, olhos vibrantes e um discurso um tanto torrencial. Trocámos apenas as palavras vulgares desse tipo de ocasiões.

O meu segundo encontro com o Arlindo teve mais graça. 

Semanas depois daquele jantar, ao deitar uma olhada, ao passar, para a sala de espera da embaixada, vi o Arlindo ali sentado, a olhar o infinito. Explicou-me que aguardava ser recebido por um colega meu.  Mas tinha havido uma situação imprevista e ele tinha ainda para uma boa meia hora de espera. Perguntei-lhe se não queria, entretanto, ficar no meu gabinete. Era mais cómodo. E para lá fomos.

Falámos, para encher o tempo, de algumas pessoas que ele tinha conhecido, no passado, na embaixada e, a certa altura, saiu-lhe esta: “Sabe com quem estou um pouco aborrecido? Com o seu colega Seixas da Costa!”.

Divertido, alimentei o equívoco: “Ah sim?! E porquê? O que é que se passou?”. Explicou: “Depois que ele saiu de Luanda, escrevi-lhe uma carta e nada! Confesso, que sendo ele um homem tão atencioso para os amigos, não esperava uma atitude dessas do Seixas da Costa!”.

“Dei gás”, por um tempo mais, à confusão: “Sabe como são os correios! Conheço bem o Seixas da Costa e sei que ele não deixaria de lhe responder. Quer que lhe diga alguma coisa?”. Que não, que ia escrever-lhe de novo...

Achei então por bem desfazer, de vez, o quid pro quo. Ele queria referir-se ao Luís Filipe Castro Mendes, colega que, anos antes, passara pela embaixada, poeta como ele. Acabámos a rir, comigo a achar imensamente graça a ouvir-me falar de mim como se fosse outra pessoa.

Algumas vezes lembrámos o episódio, quando nos encontrávamos. Isso acontecia, por algum tempo, com frequência, nesse pequeno mundo social, às vezes mais intelectual ou político, às vezes apenas divertido e para espairecer, de uma certa Luanda que eu então percorria nos lazeres, com um imenso gosto. Nunca chegámos a estabelecer uma relação próxima, mas fixou-se uma forte cordialidade entre nós.

Depois, a vida levou-nos para sítios distantes: ele foi viver para a Argélia e eu regressei à Europa. Tenho, contudo, uma vaga ideia de o ter cruzado, pelo menos uma vez, algures no mundo. À Maria Alexandre, vi-a, numa última ocasião, no bar Procópio, já lá vão muitos anos.

Porque falo hoje do Arlindo? Porque ontem, numa pesquisa sobre outro assunto no Google, o seu nome surgiu-me mencionado numa nota do Ciberdúvidas (obrigado, Zé Mário!), com uma referência terrível: duas datas dentro de um parêntesis (1940-2021).

O Arlindo tinha morrido em Luanda, de covid. Ora, há poucos dias, eu soubera que a sua mulher, Maria Alexandre Dáskalos, que também tinha andado pela poesia, falecera também, ainda no passado mês de abril. 11 dias antes! Que tragédia familiar! 

Com a idade, não só o futuro começa a fugir-nos como vamos perdendo cada vez mais o que nos restava do passado. Bom, resta-nos o presente! Bem dizia o (também) poeta romano: “Carpe diem”.

3 comentários:

Luís Lavoura disse...

uma referência terrível: duas datas dentro de um parêntesis (1940-2021). O Arlindo tinha morrido em Luanda, de covid

Bem, com 81 anos de idade, não é propriamente surpreendente nem chocante que tenha morrido. É, digamos, uma idade normal para se morrer.

Que a terra lhe seja leve.

Francisco Seixas da Costa disse...

Ó Luis Lavoura. Gostava de informá-lo de que também pode publicar comentários positivos. Não se acanhe!

Luís Lavoura disse...

Ó Francisco. Eu também publico ocasionalmente comentários positivos. Hoje por exemplo já publiquei três.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...