quinta-feira, janeiro 07, 2021

O frio de Vila Real


Dizem-me que esteve ontem um forte chiasco, em Vila Real. Lembrei-me então desta história.

Um dia de março de 1971, ao passar pela Place da la Nation, em Paris, onde tinha aportado por uns dias, num turismo baratucho que conseguia fazer nesse tempo, dei de caras com um antigo colega de Vila Real, que sabia ter saído “a salto” de Portugal e a quem tinha perdido, por completo, o rasto.

Era um tipo alto, com raízes em Bragança e com quem, curiosamente, me cruzara também em algumas férias em Viana do Castelo. Não éramos íntimos, mas éramos amigos.

Fizemos aquela festa tradicional, típica de dois transmontanos que se prezam. Generoso, convidou-me a ir beber uma cerveja à sua casa, ali perto.

Foi-me contando que tinha um emprego em que lavava janelas a partir das seis da manhã (“não é nada mal pago, sabes?, mas é muito chato ter de sair de casa às quatro!”). Em fins de tarde, aproveitava para assistir a uns cursos livres na Universidade de Vincennes. “A vida há-de mudar!”.

Sem dizer expressamente, deu-me a entender que era militante de um partido político português (na clandestinidade, claro, porque todos o estavam), o que conteve a minha curiosidade inquisitiva sobre mais aspetos da sua vida em Paris. Anos mais tarde, encontrei-o numa bancada de vendas, numa Festa do Avante.

Subimos ao apartamento onde vivia, uma sala e um quarto, num 4.º andar sem elevador, com uma cozinha a meias com um argelino, de onde chegava um cheiro menos convidativo a comida, que se espalhava por toda a parte.

O problema é o frio. A casa não tem aquecimento. Temos de pôr aquecedores, mas a eletricidade é cara. Às vezes, vou para a cama mais cedo, só para me aquecer.

E, num tom mais triste, com aquela saudade que a minha presença lhe trazia, acrescentou: “Queres saber uma coisa? Lá em Vila Real, parece que o nosso frio era diferente.

Pois era. O frio da terra portuguesa, para quem sofria a distância e a tragédia da emigração e do exílio, tinha outro calor.

6 comentários:

Flor disse...

Vivi e trabalhei três anos em Caracas em um contexto diferente ao do amigo, morava numa boa urbanização, tinha um óptimo emprego. Quando começava a cair uma chuvinha eu suspirava e dizia: Cheira a Portugal! Um dia encontrei perto de casa dois elementos do Trio Odemira, cumprimentei-os e foi uma alegria. Parece que já nos conhecíamos há muito tempo. Depois até fui vê-los actuar no Centro Português. Caracas, 1981.:)

Luís Lavoura disse...

O problema é o frio. A casa não tem aquecimento.

Uma realidade deveras inacreditável, da qual também tomei conhecimento em Inglaterra.

Na Alemanha, em que vivi, a qualidade de vida é muito superior. Todo o parque habitacional foi destruído na guerra, e reconstruído depois com outra qualidade. Todas as casas têm bom aquecimento e melhor isolamento.

Francisco Seixas da Costa disse...

O Luís Lavoura não consegue fazer um comentário positivo?

Luís Lavoura disse...

O Francisco quer que eu comente positivamente o quê? O frio de Vila Real? A qualidade da escrita do Francisco? O partido a que o seu amigo pertence? Não percebo.
(Eu comentei de forma positiva a qualidade das casas alemãs.)

Anónimo disse...


História comovente. Sou filho e neto de emigrantes em França, do tempo em que ainda se ia a salto. Com sua licença, e pedindo desculpa pelo abuso, deixo aqui uma canção/poema do Pedro Abrunhosa, de uma canção que canta com o Camané "Para os braços da minha mãe" (está no youtube). Acho que vem a propósito

Cheguei ao fundo da estrada
Duas léguas de nada
Não sei que força me mantém
É tão cinzenta a Alemanha
E a saudade tamanha
E o verão nunca mais vem
Quero ir para casa
Embarcar num golpe de asa
Pisar a terra em brasa
Que a noite já aí vem
Quero voltar
Para os braços da minha mãe
Quero voltar
Para os braços da minha mãe
Trouxe um pouco de terra
Cheira a pinheiro e a serra
Voam pombas
No beiral
Fiz vinte anos no chão
Na noite de Amsterdão
Comprei amor
Pelo jornal
Quero ir para casa
Embarcar num golpe de asa
Pisar a terra em brasa
Que a noite já aí vem
Quero voltar
Para os braços da minha mãe
Quero voltar
Para os braços da minha mãe
Vim em passo de bala
Um diploma na mala
Deixei o meu amor pra trás
Faz tanto frio em Paris
Sou já memória e raiz
Ninguém sai donde tem paz
Quero ir para casa
Embarcar num golpe de asa
Pisar a terra em brasa
Que a noite já aí vem
Quero voltar
Para os braços da minha mãe
Quero voltar
Para os braços da minha mãe

Anónimo disse...

Luís Lavoura, que diabo, a história não é exatamente sobre construção civil... ;)

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...