quarta-feira, janeiro 20, 2021

Bom senso e bom gosto


A experiência demonstra que o sistema político, instituído em 1976, privilegia a reeleição do presidente em exercício. A cada inquilino que colocou em Belém, o eleitorado concedeu sempre uma década no cargo.

A eleição intercalar nem sequer obrigou nenhum incumbente a uma segunda volta. Acaba por funcionar apenas como um retrato do estado da arte no mundo político. Estando o resultado determinado, o exercício permite, contudo, testar a fidelidade dos eleitorados partidários.

Em 1981, Eanes foi quem teve a tarefa mais complexa, ao ser confrontado por um desafio conservador que, no entanto, já havia morrido, de véspera, em Camarate. Soares viria a ter pela frente, em 1991, um Basílio Horta surpreendentemente radical. Isso nem sequer se repetiria em 2001, quando Ferreira do Amaral se prestou a marcar apenas o ponto contra Sampaio. Alguma exasperação face a esta inevitabilidade da recondução automática foi notória no confronto a Cavaco por Manuel Alegre, em 2011. Mas acabou por ter o grau habitual de sucesso, isto é, nenhum. E o mesmo vai suceder no domingo.

Por que será que as coisas se passam sempre assim? Não há a quem perguntar, mas, muito provavelmente, isso deve-se ao facto do presidente que “já” está em Belém ser visto pelos eleitores como um fator de estabilidade do sistema. Mais do que isso: pela circunstância da maioria dos votantes parecer não descortinar razões para introduzir, com a afirmação de uma nova cara, uma rutura com essa normalidade instalada.

Um observador exterior será levado a questionar-se sobre se, afinal, neste meio século, o eleitorado apenas fez escolhas quando isso se tornou constitucionalmente inevitável. No fundo - e já estamos a ver o olho guloso de alguns monárquicos a reluzir - o país dá sinais de pretender preservar o máximo de estabilidade possível na chefia do Estado.

Olhadas as escolhas feitas, o eleitorado deu sempre mostras de querer ter, nessa função superior, senadores políticos.

Eanes terá sido um caso especial, porque trazia já os galões de ser um dos fundadores militares da democracia.

Marcelo Rebelo de Sousa era, de há muito, um estadista em construção e, sem que isso seja passível da menor contestação, confirmou sê-lo, nos cinco anos que agora se concluem. A preservação da estabilidade em democracia, o primado do diálogo e um forte sentido de responsabilidade de Estado foram sempre a sua imagem de marca. Por essa razão, a sua reeleição consagra-se como um ato não apenas de bom senso mas igualmente de bom gosto democráticos.

5 comentários:

Luís Lavoura disse...

o sistema político, instituído em 1976, privilegia a reeleição do presidente em exercício

Não é o sistema político quem privilegia isso, é o povo que o faz. O povo é que decide sempre reeleger o presidente; o sistema político permite-lhe perfeitamente outra opção.

Luís Lavoura disse...

Por que será que as coisas se passam sempre assim?

Em parte, porque o povo se apercebe de que o presidente tem tão poucos poderes, no dia-a-dia, que não vale a pena dar-se ao trabalho de escolher um diferente daquele que lá está.

O presidente é efetivamente, no atual sistema político, quase que como um rei: não tem poderes de governação, apenas tem poderes marginais e muito ocasionais de algumas escolhas simples e binárias. Sendo o presidente como um rei, mais vale tratá-lo como tal e deixá-lo lá estar vitaliciamente, pensa o povo.

José António da Conceição disse...

Senhor Embaixador

Correcção irrelevante: Eanes enfrentou em 1980

Francisco Seixas da Costa disse...

Tem razão, José António da Conceição. Nesse ano, as eleições foram em dezembro.

josé ricardo disse...

Marcelo foi um bom presidente? Claro que a resposta a esta pergunta (que é quase retórica) só pode ser afirmativa. Aliás, Marcelo foi tão bom Presidente como o foram os seus antecessores no primeiro mandato. A diferença residirá na segunda parte do programa presidencial, ou seja, o após reeleição.
Sempre vi Marcelo como um presidente frustrado, isto é, um presidente que gostaria de ter sido primeiro-ministro e que nunca alcançou essa aspiração (sublinhe-se, de passagem, que daria um excelente primeiro-ministro, pois é um cargo que se adequa mais ao seu perfil hiperativo). No seu último suspiro enquanto político, Marcelo agarrou o que estava mais à mão e que era a Presidência da República. O resto é a inclinação do povo português para a estabilidade, e nada melhor do que um presidente-rei para assegurá-la.

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