terça-feira, janeiro 19, 2021

Mesas perdidas




Foi no início deste século. Tinha tido o cuidado de telefonar para aquele restaurante, nas cercanias de Vila Real, por terras por onde Camilo tinha andado, pedindo para terem preparado um determinado prato, para ser servido logo que chegássemos.

A pressa era justificada pelo facto do levarmos connosco uma pessoa muito idosa, cujo tempo de permanência à mesa queríamos encurtar, por razões de saúde. Explicámos isso mesmo. Foi-nos prometido que tudo seria feito como desejávamos.

Chegámos, naturalmente, à hora acordada. Era um domingo soalheiro, com uma luminosidade que entrava pelo envidraçado da sala, já com alguns clientes. A nossa mesa lá estava, indicada pelo empregado que nos recebia, que constatei ser a pessoa com quem eu havia combinado as coisas. Era, aliás, o único empregado visível no restaurante.

Notei-o, desde o início, um tanto tenso. O tempo foi passando e começámos a perceber que o pedido que eu tivera o cuidado antecipado de fazer afinal não estava pronto. Chamei o empregado e fiz notar o meu desagrado. Já não sei como, percebi que comungava do meu mal-estar, com uma atitude que revelava a sua impotência.

Não tinha passado um minuto quando, entre a sala e a cozinha, entre o empregado e um cavalheiro de dava ares de dono, se criou uma altercação ruidosa. Os nossos pedidos estariam, ao que parece, no centro da polémica: o empregado havia-os transmitido, a tempo e horas, mas não fora dada sequência útil à sua indicação. Agora, era a sua cara, perante o cliente, que estava em causa. Daí a indignação, pelo descaso que afetava a imagem profissional do seu serviço.

Os olhares das mesas convergiam para a troca de argumentos, a qual, na lógica habitual destas coisas, sabíamos que acabaria por ser resolvida a favor do patrão.

Naquele dia, porém, as coisas passaram-se de forma diferente. O incidente com o nosso pedido fora, aparentemente, a gota de água que faz transbordar o copo. Mas, com toda a certeza, haveria por ali muitas coisas acumuladas do passado. A voz do empregado foi subindo de tom, sem que o que dizia o seu interlocutor acabasse por prevalecer: “Sabe que mais? O senhor não sabe dirigir um restaurante! Estou farto! Vou-me embora!” - e a sala, incrédula, viu aquele que era o único empregado atirar o avental para um balcão e sair porta fora.

O patrão, desautorizado, de cara fechada, teve de tomar conta das mesas, Da cozinha, em emergência, avançou, para o ajudar, uma figura feminina, como último recurso. Já nem recordo como se comeu, embora tenha, na memória acumulada de todas as vezes em que por ali passei, a ideia de um declínio inexorável da oferta. Há restaurantes que passam, perdidos no tempo.

Devo ser um recordista mundial de cenas similares. Por duas vezes, ambas nos anos 70, assisti a episódios com idênticos contornos, uma vez num restaurante de Loures, outra, não muito longe, na Flamenga, junto a Santo António dos Cavaleiros, onde então vivia. Da segunda vez, houve mesmo pugilato à mistura, somando uma coreografia de espetáculo à refeição. Sem preço acrescido, diga-se.

Passaram alguns anos. Estava num grande jantar de aniversário, na sala do único hotel de Vila Real. Já tínhamos ouvido o Abreu ao piano e a refeição corria normalmente. A certo passo, o empregado que me servia perguntou-me, em tom baixo, com um sorriso: “Já não se lembra de mim, pois não?”. Olhei para ele e, de facto, a cara nada me dizia. Ele adiantou: “Não está recordado de uma cena num restaurante, aqui perto da cidade, com o empregado a ir-se embora a meio de uma refeição?” Fez-se-me luz! Era ele! Ali estava, felizmente com emprego! Fiquei com uma grande simpatia por aquele homem. Afinal, eu estivera na origem imediata de um capítulo marcante da sua vida.

Sem comentários:

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...