É bom termos a sorte de nos lembrarem cenas em que participámos, mas que já havíamos esquecido! Há tempos, um estimado colega (cujo nome não refiro, porque não cuidei em lhe perguntar se o podia fazer) recordou-me uma história passada numa reunião da Conferência Intergovernamental para a negociação daquilo que viria a ser o Tratado de Nice, ao tempo em que eu era o representante do governo português nessa tarefa.
A presidência rotativa semestral da União Europeia pertencia então à Holanda - ou, fazendo-lhe a vontade na semântica - aos Países Baixos. Discutia-se a eventual alteração do modelo de voto nas decisões comunitárias, que teria de passar por uma "reponderação" da força relativa de cada Estado no processo decisório. O tema era muito polémico. Mudar a relação de forças entre os países foi sempre uma questão delicada e divisiva no seio da União Europeia.
Um dia, a presidência holandesa decidiu, sob a sua responsabilidade, colocar sobre a mesa uma proposta algo radical que, em especial, alterava a relação interna de poder entre os três países do Benelux (Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo), que tinha sido mantida intocada desde a criação das Comunidades Europeias. Para os negociadores holandeses, chefiados pelo embaixador Ben Bot, que anos depois haveria de ser chefe da diplomacia do seu país, haveria que retificar essa relação, por forma a dar uma maior consideração ao fator demográfico. Nessa perspetiva, os Países Baixos eram beneficiados, porque tinham uma população substancialmente maior que a dos seus dois outros parceiros do Benelux. Exclusivamente nessa lógica, as coisas tinham uma certa racionalidade, só que a lógica em que as coisas se apoiavam estava muito longe de ser única e, muito menos, de ser consensual.
Assumir uma presidência na União Europeia implica respeitar uma certa neutralidade naquilo que se propõe. Não se espera que o país que a detem apresente, de uma forma ostensiva e despudorada, ideias que diretamente a possam beneficiar. Foi isso, contudo, que, nesse dia, os holandeses fizeram.
Acabada a intervenção de Ben Bot, o delegado belga, uma grande e experiente figura da diplomacia europeia, o embaixador Philippe de Schoutheete, um amigo que já desapareceu em 2016, pediu a palavra e, com a inteligência, franqueza e humor que todos lhe conhecíamos, disse, muito simplesmente: "Senhor presidente. Tomámos boa nota da proposta que acaba de nos apresentar em nome dos Países Baixos. O único comentário da Bélgica ao que acaba de dizer é o seguinte: o senhor portou-se como uma barman que se serviu a si próprio antes de servir os clientes".
E a proposta holandesa morreu aí. Lembrei-me disto agora, sei lá bem porquê!
2 comentários:
Passámos agora, portanto, ao tiro ao alvo aos Holandeses...
Os belgas, que fizeram parte do Reino da Holanda até 1830, devem saber bem o que esperar dos holandeses. De qualquer maneira, essa resposta exemplar é bastante mais franca do que a que Costa dirigiu ao MF holandês, onde se limitou a classificar as declarações do Ministro, e não extrapolou para o carácter das pessoas... O contexto, claro, não permitia maior franqueza...
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