Ainda nos recordamos do discurso de Juncker, em 2016, quando anunciou uma espécie de estado de emergência da Europa, fruto das angústias suscitadas pelo Brexit, que se somavam às múltiplas perplexidades que já então atravessavam o projeto integrador. A resposta à tragédia dos refugiados dividiu transversalmente a União, tal como, noutro sentido geográfico, a questão da solidariedade perante a crise financeira o havia já feito. O alerta pessimista, assumido por um otimista profissional como é o presidente da Comissão europeia, foi então bastante forte.
Depois, surgiu do outro lado do Atlântico o choque Trump. Passado o primeiro trauma, a sua mensagem provocatória teve o condão de funcionar como um inesperado fator agregador, tanto mais que, por uma vez, a América não se entreteve apenas a dividir a Europa – coisa que faz, com sucesso, sempre que quer, como “poder europeu” que é. Ela deixou claro ter como deliberado objetivo enfraquecê-la como um todo, enquanto projeto coletivo, económica e estrategicamente concorrente. Isso começou com o anúncio do fim do TTIP e expressou-se, logo depois, nas reticências sobre a NATO, parcialmente revertidas, não obstante a persistência da relação pessoal obscura de Trump com Putin. O vai-e-vem dos principais líderes europeus a Washington, com diferentes coreografias, às vezes caricatas, deixou desde logo claro aquilo com que, nos próximos anos, a Europa podia contar. O que veio depois apenas confirmou as piores previsões.
Lembrar-se-ão também de que, por esses tempos, os cenários caricaturais para o futuro do projeto europeu estavam na moda: maior ou menor integração, núcleos mais ou menos duros de países. Era um “déjà vu” pouco estimulante, prova indireta de que esse projeto atravessava um estádio de auto-interrogação. Era também a confissão de que talvez tivesse chegado ao fim a ambiguidade em matéria de finalidades do modelo que, por décadas, conseguira criar a ilusão de que todos caminhavam alegremente rumo ao mesmo destino. A Europa da “bicicleta de Delors” (se deixamos de pedalar, caímos para o lado) parecia ter colocado finalmente os pés no chão e ter parado para refletir. Mas, como as mais das vezes acontece no errático debate europeu, o dia seguinte levantou logo uma poeira que toldou o sentido desse esforço de reflexão.
Foi então que surgiu no palco político uma surpresa chamada Macron. Fruto evidente de uma conjuntura particular, o novo líder de Paris acarretava consigo a ambição, muito franco-francesa, de querer aproveitar a futura ausência britânica para colocar o seu país bem no centro da liderança do processo. Deixou claros os fatores de reforço integrador que entendia necessários para suportarem o projeto da moeda única, desafiou alguns tabus soberanistas primários e, com naturalidade, procurou Berlim como parceiro motor para esse novo impulso. O “timing”, porém, era o menos adequado, do lado de lá do Reno. Merkel entrava no declínio do seu poder interno, fruto de vários fatores, de que a sua coragem ética e política perante os refugiados não era o menor. Até no seio do seu próprio partido, como se viu nos últimos dias, o peso da Chanceler segue em perda de velocidade. A capacidade alemã para dar alimento, mesmo financeiro, ao motor europeu, sendo essencial, já não pode ser dada por adquirida.
Ora a Europa, depois de ter atravessado, “tant bien que mal”, várias crises cumulativas ou sucessivas, necessitaria precisamente de uma terapia intensa de reforço da vontade comum, quer no plano institucional de preservação do euro – como Centeno recordou na sua recente carta ao Conselho europeu -, quer na adoção de um conjunto de políticas que pudessem traduzir a assunção da vontade comum, que nos habituamos a ver como devendo emanar daquilo a que chamamos uma potência.
E o que vimos neste Conselho europeu? Um postergar de decisões, avanços semânticos para não perder a face, a clara sujeição a agendas populistas e demagógicas, já sem um pudor político mínimo. Aquela que era para ser uma “cimeira do euro” acabou por se transformar numa manta de retalhos, em matéria de decisões, refém do discurso dos medos, uma cimeira securitária que consagrou surpreendentes recuos. Para utilizar uma imagem destes dias, a Europa acaba de beneficiar o infrator.
Posso estar enganado, mas sinto que o termo de mandato da presente Comissão europeia, cujo fôlego dá mostras de exaustão, e a circunstância de irmos entrar num período de eleições para o Parlamento Europeu, com dossiês muito complexos, como o saldo do Brexit e as consequências das conflitualidades com os EUA, vai inaugurar um tempo novo e decisivo para o projeto da União. Vamos assistir ao acesso ao futuro parlamento de Estrasburgo de muitos representantes da Europa dos medos e da insegurança, do soberanismo nacionalista, dos prosélitos das políticas securitárias, declamadores de uma narrativa populista, com alguns Estados a garantirem-lhes um suporte institucional no Conselho de Ministros. Mais ainda: a quererem assegurar uma fatia importante de poder na futura Comissão, onde eles sabem que se caldeiam as propostas de mudança de política que são essenciais para o seu objetivo: mudar a Europa e fechá-la ao mundo.
Esta pode – e a meu ver deveria – ser a hora de verdade para os grandes grupos políticos à escala europeia, da democracia-cristã à social democracia, passando agora também pelos liberais, entre os quais, no passado, se processou a grande aliança implícita que permitiu a construção da Europa. Esses grupos, hoje padecendo de uma heterogeneidade que os começa a descaraterizar, necessitariam de reconstruir entre si um novo pacto de valores e princípios, por cima das suas diferenças programáticas. Mesmo que isso tivesse de conduzir à expulsão, do seio dessas famílias políticas, de partidos “irmãos” que hoje envergonham a sua imagem. É que nada há de mais degradante do que esta paz podre instalada nos sorrisos coletivos nas fotografias de família dos Conselhos europeus. Só dignificava alguns dirigentes terem a coragem de afirmar, alto e bom som, que alguns desses parceiros já não integram o barco comum europeu. Separar as águas seria um ato saudável de coragem e dignidade. A próxima campanha eleitoral para o Parlamento europeu seria o momento certo para se definir quem fica a bordo e quem deve escolher outras companhias.