sexta-feira, junho 15, 2018

“Smile me!”


Passei por lá há minutos. Foi uma residência universitária, na lisboeta rua das Praças, entre a Lapa e a Madragoa. Hoje, a olhar pelos operários no descanso, de lancheira à ilharga, na soleira da porta, o edifício deve estar prestes a ser transformado em apartamentos de luxo, com uma bela vista para o Tejo.

Nesses anos 60 do século passado, ali se recolhiam dezenas de estudantes vindos da província, cujos pais tinham posses para os manter na capital. Com maior ou menor sucesso académico, claro.

O Alexandre era um deles. Transmontano, “bon vivant” e um coração de ouro, era (e é) um amigo “de primeira”. À época, estava sempre disponível para todo o tipo de aventuras noturnas. Recordo farras homéricas no Bairro Alto, um incontável São João em Évora, jantaradas bem regadas no “Calhau”, um restaurante que existiu na esquina traseira do Politeama, no “Rancho Grande”, esse por detrás do Paladium, ou no “Café Colonial”, na Almirante Reis, onde havia um bacalhau à Braz que o Zé Cardoso Pires, numa noite da “dois” no Procópio, crismou de “imbatível em Portugal & Colónias”. Como aluno, não deixou saudades aos professores, nem marcas de grande mérito pelas pautas. Entre o 10 e o 13, oscilavam as suas classificações. Estudava o mínimo, gozava o máximo e divertia-se quanto podia. E teve sucesso na vida, diga-se.

Um dia, levou-me a uma festa da Casa de Trás-os-Montes, na Feira Popular. A certo passo, depois de muitos copos, saídos de pipos vindos do Norte, vi-o de braço dado com um senhor que à época me pareceu idoso, rotundo, em troca galhofeira de graças. Reconhecendo o seu parceiro de conversa, adverti-o, em voz baixa “Tu sabes quem é esse tipo? É o almirante Quintanilha de Mendonça Dias, ministro da Marinha!”. O Alexandre não se assustou: “Ai é? Olha que é um bom copo!”. E lá continuou na conversa animada com o marinheiro, ambos já um pouco toldados. Tinham concluído que eram conterrâneos, imaginem!

O Alexandre ficou famoso quando, um dia, foi expulso no meio de um exame. O professor era o José Maria Gaspar, à época alto dirigente do Benfica. A cadeira era “Política Social”. Discutiam-se os incentivos ao trabalho no “Ultramar”, em especial os métodos para evitar a instabilidade na fixação dos trabalhadores, que andavam de emprego em emprego, à busca das melhores condições. Na sua “sebenta”, José Maria Gaspar elencava uma dezena de medidas possíveis. Com a matéria “colada com cuspo”, como então se dizia, o Alexandre recordava-se apenas de duas ou três. O Gaspar insistia, mas da memória do Alexandre, embotada pela borga da véspera, não saía nada. Salvo, a certo ponto, esta “pérola”: “Bom, se o patrão lhes arranjar umas pretinhas para animar as noites, eles são capazes de não se irem embora!”. Recordo, visto da plateia, o momento de “suspense”, o braço estendido do Gaspar, a acompanhar o sonoro e irado “Ponha-se já lá fora, seu ignorante!”, connosco a sair da sala num roldão, atrás do Alexandre, em gargalhadas contidas até ao corredor, onde os mármores da ala nova da Junqueira fizeram ecoar em uníssono a nossa solidariedade com aquela magnífica (hoje politicamente incorreta, eu sei!) “trouvaille”.

Mas voltemos à casa da rua das Praças, por cuja porta, como disse, há pouco passei. Num desses dias da despedida da década de 60, num fim de tarde, o pessoal mais apto do lar de estudantes tinha conseguido “engatar”, na rua, um bando de inglesas que andavam de passeio por Lisboa. Escudadas umas nas outras, elas havia tido a ousadia de aceitar o convite para “visitar” o lar e “ver a vista do Tejo”, entrando naquele antro exclusivamente masculino. Eram muitas e a notícia correu célere. Foi chamado “em reforço” pessoal do Quelhas, da rua da Paz e de Alcântara, e logo montado um baile “à maneira”. As “bifas” alinhavam, de bom grado, já com uns copos à mistura. A noite prometia.

O Alexandre ferrou logo uma, uma ruiva saltitante. As coisas “foram andando” no adequado ambiente de “slows”, até que, num determinado momento de uma dança, ouviu-se-lhe, alto: “Esta gaja parece parva!”. A inglesa era simpática, muito sorridente e parecia bastante satisfeita, nos braços do Alexandre. Por isso, toda a gente estranhou o seu comentário, ele que era normalmente educado para com as damas. Mas ambos continuaram a dançar, embora o Alexandre estivesse com “cara de caso”. Minutos depois, voltou a queixar-se: “Não percebe nada, esta tipa!”.

Alguém procurou então esclarecer o mal-estar do Alexandre. E ele explicou: tinha pedido um beijo à inglesa e ela só se ria. E contava, desgostoso: “Eu digo-lhe ‘smile me’ e ela ri-se!” 

Não sei se, depois de alguém ter explicado ao Alexandre que devia ter dito “kiss me”, a tarde romântica luso-britânica se compôs. Só sei que a historieta ficou para sempre na (nossa) antologia de histórias de amigos. Como terá entretanto evoluído o Inglês do Alexandre?


(Dedico esta prosa ao meu amigo Manuel Amorim Carvalho, que conhece estes episódios melhor do que ninguém)

4 comentários:

A Nossa Travessa disse...

Meu caro Franciscamigo

Aqui para nós que ninguém nos ouve eu sei quem é o senhor...

Um abração do teu amigo e admirador
Henrique, o Leãozão

Vou fazer uma sugestão para Alvalade: uma camisa de forca, oops, força

A Nossa Travessa disse...

Meu caro Franciscamigo

Quando for grande quero ser... Cristiano Ronaldo.
Abração
Henrique, o Leãozão

Anónimo disse...

Caro embaixador.

Saboroso seu texto!!!

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Mais uma bela história!

Há muitos anos, numas férias na Nazaré, um amigo da minha mãe, que não sabia nada de estrangeiro, foi-lhe pedir ideias para conseguir sacar uma noite de ocasião com uma francesa e, num golpe de asa, a minha mãe sugeriu-lhe o refrão da "Lady Marmalade". Resultou!

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