quinta-feira, agosto 27, 2015

Hermínio Martins (1934-2015)


Em dezembro de 1972, numa das minhas primeiras visitas aos Estados Unidos, deu-me para procurar na New York Public Library obras em inglês sobre o Estado Novo. A certo passo, deparei com um livro de textos sob o título "European Fascism", com um capítulo sobre Portugal, publicado anos antes, em Londres, assinado por Hermínio Martins. 

Quem seria Hermínio Martins? Não tinha então menor referência sobre nome, o que era natural, tanto mais que eu não era um especialista, apenas um mero curioso do tema. Ainda pensei que fosse um pseudónimo, embora o texto trouxesse uma nota concreta sobre a ligação universitária do autor. Fiquei sempre com vontade de saber mais sobre a pessoa por detrás daquele nome.

Passaram alguns anos até que comecei a saber um pouco sobre Hermínio Martins e, finalmente, acabei por comprar o livro que vira em Nova Iorque (hoje muito desatualizado, face à investigação posterior, nos vários casos abordados). Fui-o lendo, entretanto, em outros livros e em artigos publicados em revistas. Achei sempre muito curiosa a sua perspetiva pluridisciplinar, onde a sociologia se misturava com a filosofia, numa escrita aliás pouco vulgar, recheada de temáticas complementares inesperadas.

Quando fui viver para Londres, em 1990, estabeleci contacto com Hermínio Martins, creio que por intermédio do Eugénio Lisboa, e talvez também do Rui Knopfli. Recordo-me de ter convencido o embaixador Vaz Pereira a convidá-lo para um almoço na embaixada. O almoço não foi aquilo a que se poderá chamar um grande sucesso. Hermínio Martins falava pouco, a conversa "desligou-se" e, manifestamente, não conseguimos gerar um ambiente estimulante, não interessa agora saber por culpa de quem.

Alguns anos mais tarde, durante a visita de Estado de Mário Soares ao Reino Unido, insisti pela inclusão do nome de Hermínio Martins no grupo de intelectuais que ali viviam e que o presidente português entendeu dever condecorar.

As últimas décadas acabaram por trazer o reconhecimento devido a Hermínio Martins, cujo perfil intelectual e académico, a começar pela sua contribuição para a sociologia britânica, estão hoje estabelecidos de forma incontroversa, ao que leio. Também em Portugal, graças a vários seguidores e colegas, esse reconhecimento impera, sendo considerado uma das figuras cimeira das nossas ciências sociais.

Li agora no "Público" que Hermínio Martins morreu, em Oxford, na passada quarta-feira.

quarta-feira, agosto 26, 2015

Abastecimento

Surgiu ontem a história de uma chinesa que, impedida de entrar num avião com uma garrafa de cognac, decidiu bebê-la toda de seguida e, claro, acabou muito mal...

Esta história trouxe-me à memória um episódio que faz parte dos anais de uma certa boémia de Vila Real, nos anos 50/60.

Havia na cidade um grupo de amigos, sob a liderança benévola de António Fernandes, um homem abastado e "bon vivant", conhecido pelo "Antoninho do Talho", que se dedicavam a grandes "tainadas" e imemoriais convívios. Às vezes, o convívio prolongava-se mesmo em viagens ao estrangeiro, de que há anedotas deliciosas, algumas das quais citadas em livros. 

Havia, porém, uma limitação forte na logística dessas deslocações: a necessidade de levarem o próprio vinho, aparentemente por não confiarem na capacidade de um abastecimento à altura, lá pela estranja. Ficou mesmo nas lendas o despacho de uma partida de garrafões numa ida ao Brasil, no famoso "Voo da Amizade", então promovido pela Tap e pelas desaparecidas Panair e Varig.

A historieta de hoje, que veio a propósito do drama da chinesa, é bastante mais prosaica e, ao que se conta, teve lugar na fronteira entre Quintanilha e San Martin del Pedroso, na estrada de Bragança e Zamora. 

À passagem do automóvel da divertida comitiva, que iria com destino a Paris, a polícia espanhola, como era de regra, mandou abrir a bagageira da viatura e, deparando com uma imensidão de garrafões de vinho não declarados "para exportação", fez menção de reter a vital mercadoria. O pânico pela iminente desaparição dos néctares instalou-se nos viajantes, que tentaram explicar que todo aquele "material" era, muito simplesmente, para consumo. Os guardas vestidos de cinzento, abotoados até ao pescoço, com os famigerados chapéus pretos em forma de tricórnio, não se mostravam convencidos do destino não comercial do vinho.

Terá sido então que o Magalhães, uma divertida figura da família dos Macário, sacou a rolha de um dos garrafões e iniciou o respetivo emborcanço, para estupefação dos cívicos, apenas como forma de revelar o nível de consumo que era expectável no grupo. Um dos polícias mandou então suspender o ato e, ao que reza o mito urbano, terá constatado: "Van ustédes muy mal suministrados"... E lá os deixou seguir!

terça-feira, agosto 25, 2015

Conversas na Caravela (2)

- Trouxeste azar às Festas! Com a chuva, não houve procissão...

- Ora essa! A culpa não foi minha! Foi do Costa e do Nóvoa! 

- Porquê?

- Repara que, nos dias em que eles andaram pela Senhora da Agonia, não choveu nem uma gota. Logo que zarparam de Viana, foi o que se viu.

- Queres tu dizer que o Costa e o Nóvoa trazem consigo o bom tempo?

- Por mim, não duvido! O importante era que todo o país também acreditasse...

Uma história feliz


Esta história aconteceu mesmo.

O jovem militar Francisco da Costa Gomes, que mais tarde viria a ser presidente da República, passou um dia pelo atelier do seu amigo Henrique Medina, em Lisboa, e ficou deslumbrado pela figura representada no retrato que aqui se reproduz. Costa Gomes era um transmontano de Chaves. Maria Estela, a jovem que figurava no quadro vestida de "mordoma", era uma minhota de Viana do Castelo. Costa Gomes quis conhecer a jovem. E conseguiu. Dois anos mais tarde, apaixonaram-se e viriam a casar. O quadro passou a fazer parte da sua vida. Depois de ambos falecerem, a Câmara Municipal de Viana do Castelo tomou a boa decisão de o adquirir. Hoje, figura no respetivo salão nobre, onde o fui agora encontrar.

Há histórias felizes.

segunda-feira, agosto 24, 2015

Folhetim

Os "folhetins" de Verão têm uma certa tradição na imprensa francesa, onde divertem um público de leitores predispostos para olhar as coisas da política com alguma leveza, bem ao jeito de uma estação do ano que convida ao sorriso e à forma menos séria de olhar para as coisas. Por alguma razão os ingleses chama a esse período " silly season". 

Este ano, o "Diário de Notícias" enveredou pelo modelo de folhetim, construindo um cenário político de fantasia, estrelado pelos atores que todos conhecemos, embora colocando-os num "script" diferente. Os textos têm sido deliciosos, com uma densidade de pormenores que quase nos dá pena que a realidade não acompanhe a ficção.

No final do mês, creio, o folhetim cessa e, para nossa tristeza, ficaremos reduzidos à realidade. 

domingo, agosto 23, 2015

Fernando Gomes da Silva


Há dias, na praia, uma voz forte chamou-me. Olhei e era o meu amigo Fernando Gomes da Silva. Demos um abraço do tamanho do mundo!

Durante alguns anos, tive o gosto de fazer parte de um governo em que o Fernando foi ministro da Agricultura. Eramos ambos "independentes" num executivo PS, mobilizados pelo entusiasmo de integrarmos a equipa de António Guterres.

Fernando Gomes da Silva é um homem frontal, cujo desassombro me habituei a apreciar. Corajoso e sabedor das coisas do setor, o Fernando criou alguns inimigos ferozes. Certa imprensa, mobilizada por alguns deles, nunca o poupou.

O país recorda, como anedota, a sua imagem a comer mioleira num restaurante do Luxemburgo, no auge da crise das "vacas loucas". Foi um erro mediático? Não, foi um gesto que pretendia sublinhar que o principal responsável pelo setor agrícola português considerava que as medidas postas em prática para a defesa da saúde pública dos consumidores europeus, nesse caso no Luxemburgo (onde nenhum caso de BSE alguma vez foi detetado), eram adequadas e que ele próprio "corria um risco" que considerava não existir. Pois ainda hoje, quase duas décadas passadas, há quem tente ridicularizar uma atitude que era a mais racional possível.

Numa outra ocasião, quando os agricultores portugueses desceram à rua, na Baixa lisboeta, para protestar contra uma medida europeia, no âmbito da Política Agrícola Comum, o Fernando saiu do gabinete e teve a coragem de se juntar aos manifestantes, para lhes expressar a sua solidariedade. Portugal tinha-se batido em Bruxelas, sob a sua orientação, para que a medida tomada, lesiva dos nossos interesses, não fosse adotada. Infelizmente, numa votação para a qual não havíamos conseguido, com outros países, gerar uma minoria de bloqueio suficiente, os ventos não correram a nosso favor. Fernando Gomes da Silva achou então adequado - e eu também achei! - sair para a rua e prestar a sua solidariedade aos nossos agricultores, por quem ele sempre se batera, e bem! Ora foi o bom e o bonito! "Ridículo", "insensato" e outros epítetos bem piores foi o mínimo com que foi qualificado nos dias seguintes.

Um dia, uma folha de couve semanal que, por alguns anos, se dedicou, sob o gáudio alarve de algum país, a publicar notícias que se achava dispensada de confirmar, trouxe Gomes da Silva associado a um qualquer processo que, logo no dia imediato, a verdade se encarregaria de desmentir. Do meu gabinete, pelo "telefone branco" do governo, liguei ao Fernando, a prestar-lhe a expressão da minha amizade e apoio. Lembro-me, como se fosse hoje, da sua reação:

- Ó pá! Tu não imaginas a sensação que um tipo tem ao virar uma esquina, olhar uma tabacaria e dar de caras com a tua "fronha" na capa de um pasquim que te acusa de uma coisa que eles estão "desertos" de saber que é falso e cuja notícia, depois de lida, se percebe que não confirma o "escândalo" que é anunciado pelo título!

O Fernando estava indignado e tinha fortes razões para isso. Momentos como esse, bem como uma gestão sempre muito atenta dos nossos interesses em Bruxelas, que pude acompanhar de muito perto, criaram a imensa consideração e estima que hoje tenho pelo Fernando Gomes da Silva, um homem de bem e um fantástico servidor público, de quem tenho a honra de ser amigo. Espero poder continuar a encontrá-lo pelas areias da vida, agora que, como se diz no futebol, em definitivo, ambos "pendurámos as chuteiras" da política. 

Ceuta


Foi em 21 Agosto de 1415. Caramba! Já lá lá vai algum tempo!

"Chegámos" (este plural majestático dá jeito, quando nos calha partilhar glórias) a Ceuta, tomámos a cidade "aos mouros", iniciámos a expansão - embora tivesse havido uma forte pausa temporal antes do início das fantásticas navegações atlânticas.

Seria pela aventura? Seria pela fé? Seria pelo interesses? Há anos, durante a ditadura, um historiador felizmente ainda vivo, Borges Coelho, publicou o livro "Raízes da Expansão Portuguesa" em que defendia que tinham sido as motivações materiais a alavanca essencial da vontade por detrás do empreendimento. O livro foi recolhido pela PIDE!

Fosse por que razão fosse, foi um tempo muito interessante da história de um pequeno povo que teve como destino andar pelo mundo, Às vezes por boas razões, outras vezes por motivos menos bons.

A figura

Os dois miúdos rondavam há vários minutos as mesas da esplanada daquele café lisboeta, numa das quais se sentava uma conhecida figura da política portuguesa, há muito retirada das lides, mas que frequentemente era ainda recordada nas televisões. Olhavam para a pessoa de várias perspetivas, trocando sussurros entre si. Teriam, no máximo, uns doze anos. Depois de uns minutos de hesitação, um deles, deixando o outro à distância, aproximou-se da mesa e perguntou: "Você é o f....". O antigo político olhou então o garoto e limitou-se a responder: "Sou, sou eu!" É então que esse mais atrevido, de longe, se volta para o outro e, bem alto, exclama, orgulhoso da sua razão: "Eu não te dizia que ele não tinha morrido?!"

sábado, agosto 22, 2015

Conversas na Caravela (1)

- Sabias que o Nóvoa já esteve cá em Viana, nas festas?

- Sim e o António Costa também. A Senhora da Agonia atrai sempre muitos políticos.

- Mas a Maria de Belém não vem!

- Porquê?

- Não sei, mas alguém dizia, há pouco, que, por qualquer razão, ela prefere a Senhora dos Remédios...

- Na realidade, até me parece que a Senhora da Aparecida seria mais adequada.

- Esperemos que não acabe por ser a Senhora da Pena! Ou mesmo a das Dores!

- Também pode ter sorte e acabar por ser a Senhora da Hora.

- Se assim fosse, o Nóvoa seria o Senhor dos Aflitos...

- Logo veremos. Cada coisa a seu tempo. Para já, o importante é que o Costa ponha o Senhor dos Passos "com dono"!

Senhora da Agonia


Nunca foram à Senhora da Agonia, as festas de Viana do Castelo? Não? Então não sei que lhes diga...

sexta-feira, agosto 21, 2015

Conversas no Pereira (9)

- Já te vais embora? Este ano, vi-te pouco aqui pelo Pereira...

- Tens razão. Muita praia, muita coisa para ler, gente lá por casa...

- Nas nossas conversas, senti-te sempre um pouco preocupado com a política.

- É verdade, estou.

- Achas que alguém do PS acabará por ganhar as eleições presidenciais?

- Espero que o PS acabe por ganhar alguma coisa nessas eleições...

- Ah! Sim!? O quê?

- Pelo menos, juízo!

Os genéricos não funcionam?

Quando cheguei ao Brasil, em 2005, algumas pessoas que fui conhecendo, pertencentes a setores poderosos da sociedade, diziam-se "envergonhados" com o presidente que tinham. Sempre "à boca pequena", escarneciam de Lula da Silva, chamavam-lhe analfabeto e contrastavam-no com Fernando Henrique Cardoso, que tinha deixado a presidência dois anos antes.

A minha linha argumentativa contra esta ideia era simples: com FHC, o Brasil tinha ganho um estatuto internacional que a "velha" política brasileira nunca tinha obtido. O facto de um intelectual da craveira de FHC, uma figura impoluta e um homem com grande visão estratégica, ter sido sucedido, sem o menor sobressalto, por um líder sindical com forte sentido social, sem radicalismos nem pulsões revanchistas, mostrava a vitalidade do modelo político brasileiro e a maturidade da sua sociedade. Os brasileiros tinham fortes razões para estarem orgulhosos de ambos.

Não tenho a certeza de ter convencido os meus interlocutores. Com a passagem do tempo, com o evidente êxito de Lula, esses setores acalmaram, no entanto, as suas críticas. O Brasil crescia, as tensões sociais pareciam amainadas, a pobreza reduzia-se fortemente, a marca do país estava em alta, o Brasil “dava certo”. Foi o tempo do “bolsa-família” e do “fome zero”, o biodiesel parecia um maná, o “pré-sal” anunciava amanhãs gloriosos e, o que era mais importante, um futuro de desenvolvimento imparável e sustentado. O Brasil “dava cartas” pelo mundo, tratava por tu o G8, era estrela no G20, na OMC, nos BRICS, no IBAS, cortejado pelo Norte, visto como farol no Sul.

O escândalo do “mensalão” provou que o PT, que chegara ao poder sob uma agenda de “pureza” regeneradora, se comportava basicamente como aqueles que criticara. Para se defender da desilusão, o Brasil “fez de conta” que acreditava que Lula nada sabia das tramóias feitas para o manter no poder. E reelegeu-o. O segundo mandato foi menos glorioso, mas, ainda assim, beneficiou do facto da crise internacional ter chegado tarde ao país, convertido por algum tempo, como outros emergentes, em refúgio de capitais, perante a anarquia financeira que se vivia a Norte. 

Lula não podia ser reeleito, com pena de muitos brasileiros e de grande parte do empresariado. Para lhe suceder, impôs a ministra política com perfil técnico mais evidente. “Lula elege um poste”, dizia-se no Brasil. Mas Dilma Rousseff não era Lula e nunca criou um laço afetivo com um país em derrapagem económica. Perante uma vaga de escândalos, entrou numa alucinante perda de legitimidade. Completamente inábil na relação com o Brasil, confirmou o receio de muitos hipocondríacos: os genéricos não funcionam.

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

quinta-feira, agosto 20, 2015

A Rússia, a NATO e a Ucrânia


A tensão atual NATO-Rússia parte de duas realidades incontroversas e potencialmente conflituantes entre si.

De um lado, está o tropismo ocidental, muito estimulado pelos Estados Unidos e pelos países saídos da tutela soviética, de explorar a fragilidade de Moscovo, no pós-guerra fria, para "ganhar terreno" o mais a Leste possível. As aventuras americanas na Geórgia e até, por algum tempo, na Ásia Central (neste caso, a pretexto da luta contra o terrorismo), são disso flagrante exemplo.

Do outro lado, está a vontade da liderança russa de resgatar o sentido de derrota que, para o seu povo, constituiu o fim da União Soviética e o declínio, como potência, que daí resultou para a Federação Russa. A chefia de Putin, instituindo um regime autoritário que apenas salvaguarda os "mínimos" democráticos, parece ir bem com o sentimento maioritário de um país que se sente humilhado e, de certo modo, permanece sob um temor de "cerco".

Neste cenário de fundo, projeta-se a Ucrânia.

A Ucrânia é um "Estado-charneira", onde convivem (conviviam?) perceções antagónicas, polarizadas pelos dois "mundos" acima referidos. A razoabilidade aconselharia a que os sinais dados a Kiev, por ambos os lados, fossem no sentido de entender a sua especificidade geopolítica, com vista a combinar, com gestos de prudência, a compatibilidade com essas duas realidades.

O ocidente, na continuidade do tropismo liderado pelos EUA, que atrás referi, estimulou a reversão, num golpe de Estado de rua, de um presidente ucraniano que a comunidade internacional sempre considerou ter sido legitimamente eleito, mas que, aparentemente, tinha o "defeito" de ser pró-russo.  Contribuiu assim para a implantação em Kiev de um poder político que logo sonhou com a entrada na União Europeia e mesmo na NATO.

Num ambiente de crescente agressividade face às populações russófilas e russófonas do país instituído pelo novo regime, não foi espanto para ninguém que estas reagissem no sentido de salvaguardar os direitos que tinham desde a independência do país. E parece também de falsa inocência a admiração com que se olhou para o facto da Rússia ter avançado em apoio a essas populações.

A essa manobra ocidental despudorada, que legitimou o atropelo dos direitos das populações russas da Ucrânia, correspondeu, entretanto, um avanço oportunista russo, que aproveitou o ensejo da guerra entre os seu aliados russóficos e o novo poder em Kiev para "deitar mão" à península da Crimeia, cuja tutela ucraniana lhe tinha "ficado atravessada" desde o fim da União Soviética.

O ocidente, aturdido, "bombardeou" então a Rússia com declarações fortes, comunicados graves e algumas sanções - um preço barato para uma zona de imensa importância geopolítica. No chamado "acordo de Minsk", que estabelece as bases para o cessar-fogo na guerra breve entre o governo ucraniano e os separatistas pró-russos, a palavra "Crimeia" são surge, o que já representa uma incontestável vitória russa.

Entretanto, o esperado incumprimento do "acordo de Minsk" acabou por suceder. As culpas estarão de ambos os lados, não sendo de excluir que o lado pró-russo, manipulado pelo interesse de Moscovo, seja o mais empenhado em provocar uma confrontação como a que está a ocorrer em torno de Mariupol, cidade dominada pelo exército de Kiev, e cuja tomada pelos separatistas poderia significar, para Moscovo, a concretização do "sonho" de ligação terrestre da Federação Russa à península da Crimeia, até agora uma espécie de "ilha", difícil de manter por via marítima. O aproveitamento do fator climático, isto é, a oportunidade das próximas semanas de tempo razoável para facilitação de ações militares, pode ter aqui algum papel.

Esta tensão localizada, somada a outros incidentes que mostram o que muitos sabiam já há muito - que o "acordo de Kiev" era muito difícil de subsistir -, está a criar uma crescente tensão entre a Rússia e o ocidente, isto é, a NATO, isto é, os Estados Unidos. A União Europeia tem aqui um papel subsidiário, com a Alemanha e França a "fingirem" ser poder, quando, na realidade, estão "mortas" para restabelecerem os seus negócios com Moscovo mas, ao mesmo tempo, não querem desagradar aos Estados do Centro e Leste, sob uma liderança inconstante da Polónia, cuja relação traumática com a Rússia lhes cega a racionalidade.

Estes Estados, dentre os quais os países bálticos alimentam uma linguagem mais belicista, confiam muito pouco na União Europeia e colocam todas as suas cartas na NATO, o que é o mesmo que dizer nos EUA. Porque já perceberam, e bem, que se 'isto der para o torto", só a força militar americana os pode salvar.

O drama essencial nesta conjuntura é, a meu ver, a assimetria nos modelos decisórios.

De um lado está a NATO, sujeita a regras claras, a uma "accountability" democrática, que nunca será facilmente mobilizável por pulsões "jingoístas" de alguns parceiros mais impacientes. Mais do que a sua força militar, que será tanto mais valiosa quanto não tiver de ser usada, a NATO consagra um corpo de compromissos muito fortes. Mas, precisamente porque assim é, a NATO não pode nem deve prestar-se a servir de escudo ao aventureirismo de alguns dos seus Estados, por muito importantes que eles sejam no seu seio. A decisão americana de enviar algumas centenas de pára-quedistas para a Ucrânia representa um desses atos que, sendo um risco americano na essência, configura um risco colateral para toda a Aliança.

Do outro lado está a Rússia. Para além da coreografia constitucional que lhe é própria, a realidade mostra que o poder, em Moscovo, não está sujeito a "checks-and-balances" similares aos do lado ocidental. Ora isso converte a Rússia num poder com contornos muito mais imprevisíveis no seu processo de decisão política, em particular, militar. E, por isso, os riscos potenciais do lado da Rússia são muito mais elevados.

Por tudo isto, o sentido de responsabilidade do lado da NATO torna-se ainda maior. A NATO não deve alimentar uma linguagem confrontacional e deve abster-se de atos de cariz militar, em termos de manobras e outros procedimentos de mobilização de tropas e meios de ação, que possam configurar um modelo de provocação suscetível de ser aproveitado pelo "outro lado". Noutro sentido, a NATO deveria definir no seu seio, de forma muito clara, mas sempre respeitando estritamente o seu estatuto e os mandatos multinacionais aplicáveis, o que entendem ser as "linhas vermelhas" que a Rússia não poderá ultrapassar, sem o que um conflito se tornará inevitável. E fazê-los saber a Moscovo, “alto-e-bom-som”.

A Guerra Fria provou que Moscovo é um leitor atento dos sinais claros que receba por parte de quem está disposto a fazer-lhe frente. O novo poder no Kremlin não é igual ao que existia durante a União Soviética. Por muitos defeitos que tenha, há mesmo que convir que é um pouco melhor.

(Artigo publicado no "Observador")

quarta-feira, agosto 19, 2015

Uma nova "suicide note"?

Poucas histórias políticas da esquerda, em democracia, são tão fascinantes como a do "Labour" britânico. A vida operária marcou fortemente o curso da sociedade do Reino Unido, dos sindicatos à intelectualidade, do "flirt" com o comunismo às conquistas do "welfare state". Pelo trabalhismo britânico passaram algumas das figuras que orientaram o turbulento curso político progressista no mundo industrializado. A Inglaterra foi, desde sempre, um dos grandes laboratórios da esquerda na Europa.

Quando vivi em Londres, assisti ao sonho de Niel Kinnock de recuperar os anos perdidos com a aventura Michael Foot, autor de um programa político tão radical que foi humoristicamente considerado "the longest suicide note in History". Antes, não conseguindo cavalgar a onda que Harold Wilson desenhara na vida britânica dos "swinging sixties", James Callaghan havia revelado uma rara inabilidade para lidar com o radicalismo de Arthur Scargill e das suas tropas sindicais e, dessa forma, contribuiu para abrir o caminho a Margareth Thatcher. O esquerdismo de Foot (e de Tony Benn) conduziu ainda à cisão social-democrata protagonizada pelo SDP do "bando dos quatro". Na oposição, Foot ainda tentou o compromisso impossível com as "Unions" e, também desajudado pela guerra das Falkland, acabou por contribuir para que a "dama de ferro" se prolongasse em Downing Street.

Kinnock, que o substituiu, iniciou então a árdua tarefa de libertar o "Labour" do "block vote", "modernizou" o programa, mas nem sequer foi capaz de derrotar John Major, o que constituiu uma imensa "proeza" política. Seria sucedido, brevemente, por John Smith, cuja morte súbita abriu o caminho a Tony Blair. Com Blair e o seu "new Labour", o trabalhismo chegou ao "grau zero", ajudando fortemente a uma descaraterização ideológica que varreu toda a esquerda europeia, a que nem Portugal escapou. Com uma esquerda que "fazia de direita", os conservadores foram forçados a atravessar um deserto que só terminaria quando Blair, apanhado pelo descrédito e pelas mentiras do Iraque, passou a pasta a um Gordon Brown que, em tempo de crise económica, perdeu a estafeta para uma rara aliança entre conservadores e liberais-democratas. Foram depois os anos "shadow" de Ed Miliband, cuja manifesta inabilidade levou à reeleição reforçada de David Cameron.

Com esta forte derrota, os trabalhistas entraram num novo ciclo sucessório. A crer nas sondagens, a nova liderança poderá vir a ser chefiada por Jeremy Corbyn, uma figura da ala esquerda do partido que, em Portugal, andou já por iniciativas do Bloco, o que é muito significativo. A ser esta a escolha, que alguns já olham como um novo erro de "casting", o "Labour" pode vir a fazer um dos maiores erros táticos da sua história, afastando-se do "mainstream" do poder ou, para utilizar uma expressão que a nossa "esquerda da esquerda" detesta, deixando-o longe do "arco da governação" por muitos e bons anos. Tony Blair disse isso mesmo, há dias. Nem o facto de isso ter sido dito por ele transforma, necessariamente, o que é uma evidência num prognóstico errado.

Paris, Texas



Chama-se Harry Dean Stanton, é um excelente ator americano, que está a fazer um papel secundário num filme menor, que passa neste momento na RTP1.

Foi há mais de trinta anos que, ao lado de uma inesquecível Nastassja Kinski fez esse objeto de culto, realizado por Wim Wenders, que tem o nome de "Paris, Texas". 

Santon tem hoje 89 anos. Sei lá a idade da Nastassja! Para mim, ela terá, para sempre, aqueles 23 anos...

terça-feira, agosto 18, 2015

As guerras do turismo

O atentado de ontem em Bangkok veio chamar uma vez mais a atenção para a imensa fragilidade que sofrem, nos dias de hoje, as economias que têm uma forte dependência das receitas do turismo. Aos movimentos e forças políticas, internas ou externas, que pretendem instabilizar esses países basta-lhes "plantarem" uma bomba ou organizarem um atentado, que terão uma expressão mediática global, para induzirem nos potenciais visitantes um automático receio, que os levará à escolha de destinos alternativos. As férias são um tempo de lazer, normalmente com famílias, nas quais se procura precisamente a calma, o sossego e a segurança. Ao mais leve sinal de distúrbio num destino turístico que alguém estiver a considerar, é óbvio que o viajante irá procurar outras paragens.

Não vale a pena iludir que Portugal, e Lisboa em particular, está a beneficiar muito da instabilidade que afeta outros destinos turísticos tradicionalmente interessantes para os europeus. O que se passa no norte de África e até o ambiente social na Grécia acabaram por colocar Portugal na rota de muita gente que nunca nos tinha no mapa das suas preferências para férias. O surto de construção de hotéis e de instalação de hostels deve-se muito a este movimento, o qual, contudo, não nos deve iludir em definitivo.

Portugal tem condições excecionais para o turismo, desde o clima à gastronomia, da capacidade acolhedora das pessoas aos preços baixos, do golfe a destino para seniores. Mas é bom que se entenda que não somos, nem seremos nunca, um destino turístico com uma identidade própria muito forte, como é Paris ou Londres, como Nova Iorque ou Roma, que sempre serão polos de atração mundial, aconteça o que acontecer por lá. Também não temos pirâmides como o Egito, não temos Machu Pichu como o Perú, não temos Petra como a Jordânia, não temos Angkhor como o Cambodja. Assim, em caso de por cá vir a acontecer - lagarto! lagarto! - uma desgraça securitária, a nossa capacidade de recuperação, como destino turístico de massas, será muito mais difícil do que em qualquer daqueles outros destinos, à partida privilegiados por condições de atração únicas.

O que quis dizer com isto? Duas coisas: que a preservação da segurança deve, cada vez mais, estar na nossa agenda pública de preocupações e que é importante não nos deixarmos iludir muito pelo papel que o turismo pode continuar a ter na nossa economia. 

Aproveitar esta "onda" turística, explorá-la inteligentemente para melhorar e qualificar as nossas estruturas, materiais e humanas, de acolhimento é um imperativo. Mas, em matéria de planificação dos caminhos de futuro para a nossa economia, nunca devemos perder de vista que o turismo é uma atividade que depende muito da vontade dos outros, tem o caráter de um produto supletivo e não essencial e é passível de fortes variações conjunturais. Não ter isto em permanente conta pode acabar por conduzir o país a uma imensa ilusão.

A TV mínima

Já me não recordava bem do que era o Portugal dos quatro canais. Este Verão, em férias, tive o imenso privilégio de apenas dispor da RTP 1 e 2, da SIC e da TVI. Acresce o facto de uma tal TDT, que por aqui fornece estes canais, ter frequentes interrupções, com a emissão sonora a tornar-se gaguejante e as imagens a apresentarem regulares variações de abstracionismo furta-cores, qual fundo de caleidoscópio. Como não vejo telenovelas - creio que a última deve ter sido "O Astro", a sério! - nem acompanho regularmente nenhuma série (as que me interessam vejo-as em video, mais tarde), e dado que a televisão em minha casa não está nunca aberta às horas das refeições, o que me inibe de ver noticiários em direto, o meu Verão televisivo limitou-se este ano a uns documentários sobre peixinhos, a dois filmes e a algumas perguntas do "milionário" Malato (*). No essencial, a apreciar a excelente qualidade da RTP2, esse segredo bem guardado do nosso panorama televisivo.

Só nestas férias é que verdadeiramente tive consciência de que praticamente me desabituei de ver televisão em tempo real. Isto é, no resto do ano, habituei-me de tal modo ao sistema do cabo que, quase sempre, faço um "compacto" com zapping retrospetivo: consigo ver os telejornais de hora e meia em cerca de dez minutos, ouço apenas os comentadores políticos que me interessam, "passando à frente" os restantes (tal como a maioria das figuras políticas), recuso a 100% a menor conversa sobre futebol (em minha casa, não se ouvem comentadores, treinadores, dirigentes, jogadores, vendo os jogos sempre sem som, com música a acompanhar) e olho os filmes apenas quando tenho tempo para isso. Tornei-me, de facto, dependente do "puxa-à-frente-e-atrás" das gravações.

Mas, em férias, nem mesmo isso me fez falta. Está a ser muito saudável passar algumas semanas com "mínimos" em matéria de televisão. Há mais tempo para jornais, livros e conversa. Ah! E muita internet, claro.

Adenda em tempo: vi também um excelente concerto de Verão em Schonbrunn, na RTP2, claro.

segunda-feira, agosto 17, 2015

A cor do protesto

A maioria da população do Brasil é negra ou "parda" (é este o nome oficial dos mulatos no Brasil). Essas "cores" são também as mais pobres e excluídas na sociedade brasileira.

Por que será que, ao que reporta a imprensa brasileira, praticamente não se vislumbram negros nas manifestações anti-Dilma?

Conversas no Pereira (8)

 - Há alguns índices positivos sobre a situação económica portuguesa que são incontestáveis.

- É verdade.

- De certo modo, isso acaba por tornar mais difícil a vida do Partido Socialista...

- Essa agora! Não sei porquê?

- Não sabes porquê? Porque isso pode ser posto a crédito do governo, por parte dos eleitores.

- Mas há uma explicação muito fácil para esse ambiente de crescente confiança na nossa economia. E o governo pouco tem a ver com isso, antes pelo contrário.

- Não me vais falar da melhoria da situação económica internacional, do efeito do "quantitative easing" do Dragui, do interesse da Europa em edulcorar o nosso ajustamento para não perder razão no caso grego, do rácio favorável euro-dólar, da queda do petróleo, dos sinais claros da retoma em Espanha...

- Também podia falar de tudo disso e de muito mais - como o aliviar da pressão social pela emigração, pelos bons resultados dos esforços dos empresários na exportação, por um surto de turismo que nos "cai no colo", sem a menor influência do governo, em especial pela depressão securitária de outros mercados. Mas há um outro fator bem mais importante, que ajuda a explicar o "bom humor" dos mercados face a Portugal.

- Qual é?

- Então não é evidente! São os mercados a antecipar já a chegada de António Costa a primeiro-ministro, a perspetiva do "recolher a penates" desta rapaziada da austeridade e a forte confiança já induzida externamente por uma próxima vitória retumbante do PS...

- ...

domingo, agosto 16, 2015

António de Almeida


- Nunca nos tinha chegado um convidado saído diretamente do túnel! 

Foi esta a exclamação risonha com que António de Almeida me recebeu, com a meia hora de atraso com que cheguei àquele jantar num restaurante de Regent Street, em Londres, nos idos de 1998. Eu vinha de Bruxelas, para onde regressaria no dia seguinte, apenas para palestrar durante o repasto, a convite do CPE, a que António de Almeida presidia. A minha hora de chegada, sem tempo para colocar a bagagem no Brown's, devera-se a uma inesperada (e muito pouco confortável, diga-se) paragem do comboio no meio do túnel que atravessa o canal da Mancha. 

Nessa noite, conheci pessoalmente o António de Almeida. De nome, sabia-lhe o percurso político e empresarial. Então, fui confrontado com a sua muito particular ironia, pelo humor criativo com que comentou aquilo que eu disse aos circunstantes - as coisas da Europa e do lugar português nela que, por esse tempo, me ocupavam os dias. Estabelecemos, a partir de então, um excelente relacionamento pessoal, que durou até hoje. Mais precisamente, até ontem, quando o António de Almeida morreu.

Recordo-me de o ter encontrado há escassas semanas, algures em Lisboa, de lhe perguntar pela saúde, que eu sabia abalada, de ele me ter falado de um internamento próximo. Era um homem grande, com um sorriso simpático, uma presença imponente. Tinha uma reconhecida qualidade, que eu sempre considero muito: a frontalidade e o desassombro. Guardo para sempre um momento, em S. Paulo, no Brasil, em que ambos "perdemos a cabeça", quase publicamente, perante a falta de sentido de Estado de um alegado governante, cujo nome já esqueci, cujo comportamento poderia ter sido lesivo dos interesses do país. O António e eu, em escassos minutos, colecionámos sobre aquela figura uma bela" palete" de adjetivos qualificativos. Há um ano ou dois, numa livraria de Lisboa, rimo-nos a evocar essa nossa (patriótica) fúria.

Deixo aqui uma palavra sentida à memória de António de Almeida.

Dedicatórias


Há dois dias, alguém referia o facto do Miguel Torga não fazer dedicatórias nos seus livros. De facto, parece que praticamente ninguém se pode gabar de ter um volume em casa com a assinatura do dr. Adolfo Rocha - como Miguel Torga de facto se chamava. 

A mim, isso nunca me preocuparia. Por duas razões. 

Porque, embora transmontano e reconhecendo sem dificuldade a genialidade de Torga, nunca fui um grande apreciador da sua escrita e, devo confessar, também me irritou sempre muito aquele constante ar "trombudo" do médico coimbrão nascido em São Marinho d'Anta, que tinha, contudo, o grande e não despiciendo mérito de muito irritar a ditadura.

A segunda razão é muito pessoal. Por uma qualquer razão, nunca me interessei muito em ter nos meus livros dedicatórias dos autores, embora fique muito grato quando o fazem. Ultimamente, tenho-me confrontado com o embaraço de ver reproduzidas no site da Biblioteca de Vila Real, a quem estou a dar progressivamente todos os meus livros, algumas dedicatórias insertas nas suas primeiras páginas. Nunca percebi se é ou não delicado depositar numa biblioteca livros que nos foram oferecidos pelos respetivos autores, com notas pessoais manuscritas.

Mas, falando em delicadeza, vou revelar um episódio de uma (não) dedicatória de um livro que me ficou "atravessado".

Gosto da escrita de Francisco José Viegas, de quem li praticamente tudo quanto publicou, mas que só vim a conhecer pessolmente há cerca de uma década. Bem antes disso, numa Feira do Livro de Lisboa, na barraca de uma editora que o publicava, pedi dois livros dele que então me faltavam. Depois de pagar, o vendedor voltou-se para mim e disse, apontando para o Francisco, que estava junto ao balcão: "Está aqui o escritor. Quer que ele lhe faça uma dedicatória?".

Eu fui apanhado de surpresa. Conhecia de fotografia Francisco José Viegas, mas nunca o tinha visto em pessoa. A minha reação foi a mais bizarra possível: "Muito obrigado, mas não é necessário". Não sei por que reagi assim - não sendo fã de dedicatórias nada tenho contra elas - pelo que o meu gesto foi de uma imensa indelicadeza. Recordo-me que o Francisco sorriu e eu saí dali, de imediato arrependido com a minha insólita atitude, a todos os títulos deselegante. 

Caro Francisco, se acaso ler esta nota, que ela sirva como pedido muito atrasado de desculpas (creio que nunca lhe referi isto pessoalmente). E, já agora, vamos então marcar aquela nossa conversa que está atrasada desde o ano passado.

sábado, agosto 15, 2015

Conversas no Pereira (7)

- É fantástico que, depois de tantos anos, tenha sido possível hastear a bandeira americana em Cuba. Como diplomata, deves estar orgulhoso...

- Estou e não estou. Há bandeiras e bandeiras. Por exemplo, há uma bandeira americana que eu bem gostava que saísse de Cuba...

- Não estou a perceber!

- É a bandeira que está em Guantanamo.

Há 40 anos


Foi há 40 anos, quase dia por dia. Éramos 23 os novos "adidos de embaixada" que nesse dia 11 de agosto de 1975 entraram no Ministério dos Negócios Estrangeiros. O primeiro grupo de diplomatas admitido após a Revolução. Eram 18 homens e cinco mulheres - as primeiras que, na história portuguesa, tiveram acesso à carreira diplomática. Até então, essa era uma carreira não aberta às mulheres. Para que conste: foi o ministro dos Negócios Estrangeiros, Mário Soares, quem alterou a legislação.

O concurso abrira em novembro de 1974. Eu decidira concorrer por um mero "desafio" a mim mesmo, mais de natureza lúdica do que de especial interesse pela carreira, embora as questões internacionais me interessassem. (Datavam de 1967 os primeiros artigos que escrevera, em "A Voz de Trás-os-Montes, sobre o tema). Estava então no serviço militar e, terminado este, regressaria à Caixa Geral de Depósitos, que remunerava bem melhor que o MNE. Mas achei graça tentar perceber se a diplomacia me aceitaria. (Por muito tempo, pensei seriamente que, feito o concurso, dar-me-ia "ao luxo" de não tomar posse).

Ao longo de todo o primeiro semestre de 1975, comigo envolvido profundamente nos dias agitados da Revolução, sucederam-se as provas: francês, inglês, correspondência diplomática, prova escrita de conhecimentos (lembro-me que, durante cerca de quatro horas, nos "calhou" escrever sobre o tema das relações internacionais da China, desde a criação da República Popular até à entrada para a ONU), duas provas orais (duas matérias sorteadas para cada um, entre 99 temas de Direito Internacional, História Diplomática, Relações Económicas internacionais) e, finalmente, a prova "de apresentação" (uma conversa eliminatória com três diplomatas séniores, um dos quais o chefe da carreira, secretário-geral do MNE). Na prova oral, "saiu-me" como arguente um professor do ISE que, se bem me lembro, se chamava Aníbal Cavaco Silva. Foi uma hora (medida com ampulheta) nada fácil. Mas "fair"... Quase tão complicada seria a segunda prova oral, horas mais tarde, ainda no mesmo dia.

Acabadas as provas, dentre as largas centenas de candidatos, fui admitido. Fiquei a meio da tabela. Continuei por algum tempo a hesitar em aproveitar o ensejo. Não tinha o menor interesse em ir viver para o estrangeiro. Seria possível ser diplomata ficando a viver sempre em Lisboa? Por mais incrível que isto hoje pareça, convenci-me que sim. E lá fui tomar posse.

Embora estivesse no serviço militar, e de acordo com "l'air du temps", eu tinha então um cabelame pouco de acordo com as NEP's, coroado por um imponente bigode. (Imagino que deva ter feito uma "linda" impressão!). Recordo ter sido um dia muito quente. Entrámos no adamascado gabinete do secretário-geral, onde assinámos, um a um, o ato de posse. Um dos colegas levava mesmo o pai para assistir... Todos colegas ingressaram, de imediato, nos vários serviços por onde foram distribuídos. Eu regressei ao serviço militar, do qual ainda não estava dispensado. E tinha ainda de me demitir da Caixa Geral de Depósitos, onde ingressara, também por concurso, quatro anos antes.

Três dias antes da nossa posse, iniciara funções o V Governo Provisório, o executivo mais à esquerda que Portugal alguma vez teve, presidido por Vasco Gonçalves. Sabia-se que era um governo "de transição", como o presidente Costa Gomes o qualificara no respetivo ato de posse. Durou pouco mais de um mês. 

Era ministro dos Negócios Estrangeiros esse homem notável que se chama Mário Ruivo. Tinha como chefe de gabinete Manuel Braga da Cruz, então meu "camarada" do MES (mas que eu não conhecia) e que viria mais tarde a ser reitor da Universidade Católica Portuguesa. Na véspera da minha posse, o Agostinho Roseta, um saudoso amigo que, à época, também fazia serviço militar, disse-me que o ministério informara o ministro Mário Ruivo de que nenhum diplomata se mostrara disponível para integrar o seu gabinete, por medo de futuras represálias em termos de carreira. Vinha assim sondar-me, em nome do ministro, para oo lugar de "secretário do ministro", como então se designavam os adjuntos do gabinete. Coerentemente com a minha posição política de então, disse ao Agostinho que era óbvio que Mário Ruivo podia contar comigo. (Para a cultura dominante no MNE, eu começava "bem"!). A minha única limitação era o facto de ter de terminar o meu serviço militar, pelo que não poderia entrar em funções antes de 10 de setembro. Quando, finalmente, ingressei no MNE, o governo estava já no seu extertor. Vasco Gonçalves seria substituído por Pinheiro de Azevedo em 19 de setembro. Não cheguei a fazer parte da equipa de Mário Ruivo mas, nem por isso, a disponibilidade que demonstrara para o gabinete "maldito" deixaria de me ser lembrada, anos mais tarde, por um secretário-geral da casa, o mesmo que, sem o menor sucesso, tentou um dia que eu retirasse do meu currículo publicado no Anuário do MNE a menção de ter sido assessor da Junta de Salvação Nacional, um ano antes. Feitios...

Passados estes 40 anos, onde estamos? Na grande maioria dos casos, estamos reformados. Alguns, poucos, porque mais novos, ainda estão ao serviço, quatro dos quais no estrangeiro. Um morreu, outro desapareceu, dois saíram cedo da carreira, outro ainda enveredou por outras funções internacionais. Dentro de dias, vou ter o gosto de organizar o nosso reencontro possível, numa jantarada para recordar esses tempos. Já havíamos feito o mesmo há 20 anos. Há coisas na vida que sentimos que devem ser comemoradas. Esta é, sem a menor dúvida, uma delas.

sexta-feira, agosto 14, 2015

As mulheres e a diplomacia

O jornal "O Sol" tem hoje um artigo com uma nota de estranheza pelo facto muitas das mulheres que concorrem ao exame em curso de acesso à diplomacia terem, de forma esmagadora, sido eliminadas na prova de cultura geral. Para além das habituais teorias (estúpidas!) da conspiração, importaria, de facto, tentar perceber a razão objetiva deste resultado. Serão as mulheres, em geral, menos conhecedoras das coisas da cultura comum do que os homens? Não sei responder e disse isso mesmo ao jornal.

A diplomacia abriu-se às mulheres, pela primeira vez, em 1975, no concurso em que eu próprio entrei para a carreira. Depois disso, o êxito masculino nos diversos concursos, foi quase sempre predominante. Curiosamente, num júri de que fiz parte, 20 anos mais tarde, em 1995, foram admitidas mais mulheres do que homens. E, neste ano de 2015, mais 20 anos decorridos, estou a coordenar um curso de preparação para o concurso. Dentre os alunos que foram selecionados até agora, as mulheres estão em grande maioria...

O artigo de "O Sol" tem uma falha importante. O título é "Elas não servem para diplomatas?" Talvez valesse a pena lembrar que a Secretária-Geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros, uma embaixadora que é a figura mais elevada da hierarquia da carreira, é uma mulher... O artigo ficaria mais equilibrado se lembrasse isso, não acham?

Triste país!

Muito pobre é um país onde, perante a disponibilidade de cidadãos para o exercício de um cargo público, se soltam, de imediato, reflexos sectários que levam a que um seja considerado um "esquerdista" irresponsável, com um projeto contra o sistema, apoiado por poderes ocultos, e a outra uma "beata" a soldo de interesses inconfessáveis, com uma agenda partidária revanchista. Com este tipo de balcanização preconceituosa, que se decide antes de parar um instante para ouvir o que um e o outro têm para dizer, não vamos lá!

As presidenciais socialistas


Não vale a pena esconder que o Partido Socialista tem um problema com as eleições presidenciais. Esse problema existe há muito, emergiu noutros sufrágios e inscreve-se na matriz daquele que é o partido central da democracia portuguesa.

Cavaco Silva foi o único presidente eleito no atual regime que não contou com o apoio socialista. Num país sociologicamente com uma maioria eleitoral de esquerda, foi mais uma vez a dificuldade decisória dentro do PS que facilitou a sua eleição. Em 2016, isso pode repetir-se.

À parte o caso muito particular de Soares em 1986, onde verdadeiramente se jogou, pela última vez, a trincheira esquerda-direita, numa eleição que ajudou a fixar o perfil essencial do regime, apenas Sampaio correspondeu, com rara precisão, ao “candidato ideal” do PS: sem particulares anti-corpos à esquerda e com um forte potencial de entrada no eleitorado político do centro, e até de alguma direita urbana.

De certo modo, embora bastante menos afirmado à esquerda, Guterres aproximar-se-ia agora desse perfil. A sua ausência da contenda volta a soltar no PS os “demónios” da divisão.

Sampaio da Nóvoa é um candidato que emergiu na indignação anti-troika. Cavalgou com inteligência essa onda justa e, com o tempo, foi elaborando sobre ela um discurso culto. Em seu torno, desenhou-se entretanto uma espécie de “neo-pintasilguismo”, o que, simultaneamente, seduz uma certa esquerda mas irrita outras áreas socialistas, que o associam, creio que injustamente, a um projeto intervencionista anti-sistema, onde ressoam memórias do PRD. Os militares e os ritos organizados que andam à sua volta ajudam muito a essa suspeita. Para a direita, é uma “bête noire”, o que, devendo ser tomado à conta de um forte elogio, reduz o seu proselitismo no centro político e não facilita a eleição.

Maria de Belém é o Guterres possível. Mulher, incomparavelmente mais carismática do que seria o excelente e mais denso Oliveira Martins, tem uma certa fragilidade, que é tocante mas não deixa de ser uma fragilidade. O seu perfil atrai o pessoal dos altares, tem uma simpatia natural capaz de vir a gerar um certo “appeal” popular, mesmo em setores da direita, à qual não assusta. Com o tempo, perceber-se-á também que tem uma leitura muito bem sistematizada do país. Há, porém, quem ache que pode ser “pêra fácil” nos debates com Marcelo ou que verá a sua assessoria no grupo Espírito Santo ser explorada pelo justicialismo de Rio. Dentro de algum PS, a sua candidatura é vista como uma espécie desforra do “segurismo”, o que muito limitará a mobilização da máquina dominante.

Como se diz na minha terra, o PS, em matéria presidencial, volta a estar metido num “lindo molho de brócolos”.

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

quinta-feira, agosto 13, 2015

Conversas no Pereira (6)

- Então tu achas mesmo que o PS corre o risco de se dividir no caminho para as eleições presidenciais...

- Claro que sim, "pelo andar da carruagem"...

- Mas há ainda alguma esperança de que as coisas se componham?

- Claro que há!

- Ainda bem que te vejo otimista com o PS.

- Com o PS não estou nada otimista.

- Já não estou a perceber nada!

- É que eu espero ainda que a direita se "ensarilhe" da mesma forma. Isso é que pode "empatar" tudo!

Guiné-Bissau

Há dias, falei por aqui do insuperável tropismo do "colono" de "mandar bitaites" sobre a vida política interna das antigas colónias. Contrariamente ao que alguns pensaram, não me estava a referir a Angola, tendo precisamente em mente a Guiné-Bissau, cuja crise política estava já iminente. Nas horas que se seguirão, vamos ter oportunidade de observar esse vício em todo o seu esplendor.

"Ipanema meisje"


Foi em 2008, durante a visita oficial ao Brasil do presidente da República, Cavaco Silva, por ocasião das comemorações dos 200 anos da ida da corte portuguesa para aquela então colónia tropical.

Numa das noites, Portugal ofereceu no Rio de Janeiro um espetáculo musical no celebrado Teatro Municipal. Creio que no intervalo do espetáculo, alguns dos espetadores aproximaram-se do chefe de Estado português, para o cumprimentar. Por ali estavam também membros da delegação e alguns jornalistas.

A certo ponto, um jovem brasileiro dirigiu-se a Cavaco Silva. Tinha aí uns 17 ou 18 anos. Disse ao presidente que gostava de Portugal mas que, como brasileiro, não podia deixar de lamentar que o seu país tivesse sido colonizado por um país como Portugal. E acrescentou que teria sido bem melhor para o Brasil se a Holanda tivesse acabado por ganhar a guerra contra Portugal, nos séculos XVI e XVII, e que, a partir daí, a sua cultura se tivesse imposto. O país seria, com toda a certeza mais próspero e desenvolvido.

A tirada do jovem não tinha nada de inédito. Faz parte de um reflexo cultural muito comum em certos setores da sociedade brasileira, de que a área universitária é um regular exemplo, a queixa de que a colonização portuguesa é ainda culpada por muitos dos defeitos do Brasil contemporâneo, seja na corrupção, seja na burocracia. É algo que alimenta uma certa lusofobia e que também se apoia na inferência de que os Estados Unidos, colonizados pelos britânicos, tiveram um destino bem diferente. Ouvi este argumentário frequentemente, com a ideia da colonização holandesa a vir à conversa. Às vezes, brincava com os meus amigos brasileiros que talvez os tivessemos poupado ao destino de serem "um grande Suriname" - a antiga colónia holandesa, hoje um pouco atrativo país no nordeste da América do Sul.  

Já não me recordo o que o presidente retorquiu ao rapaz e, confesso, só vim a lembrar-me do que eu próprio disse porque, no dia seguinte, li meu comentário irónico publicado com destaque num jornal diário de grande expansão: "Gostava de ouvir a "Garota de Ipanema" cantada em holandês". A minha frase foi retomada depois por alguma imprensa pró-portuguesa e aí foi glosada, por algum tempo.

Dias depois, num email recebido na Embaixada e que me era dirigido recebi a letra da "Garota de Ipanema", o poema de Vinicius de Moraes, traduzida em ... holandês.     

quarta-feira, agosto 12, 2015

Uma coerência bem patente

O presidente da República acaba de promulgar o acordo sobre o Tribunal de Patentes, assinado por este governo em 2013 e recentemente aprovado por esta maioria, com votos contra do PCP, do BE, dos Verdes e do deputado José Ribeiro e Castro, com a abstenção do PS. 

Ribeiro e Castro opôs-se sempre a que Portugal se juntasse a este acordo, pelo facto dele consagrar o que considerou ser "um regime profundamente discriminatório entre europeus no quadro do mercado interno e do seu funcionamento, através da imposição, em matéria de patentes, de uma troika linguística: alemão, francês e inglês". No dizer do deputado que o CDS afastou agora das listas de deputados, "o Português, quarta língua mais falada no mundo, terceira língua europeia global, a língua mais falada do hemisfério Sul, terceira língua do Ocidente, língua em afirmação e procura crescente, segunda língua do petróleo e do gás, é, assim, baixada - ou melhor, rebaixada - ao estatuto da terceira divisão das línguas europeias."

Esta promulgação por parte do presidente Cavaco Silva não é, contudo, surpreendente. Aproveito para recordar um facto que, aparentemente, está esquecido: o primeiro-ministro Cavaco Silva, em 1994, deu o seu acordo, em nome de Portugal ao estatuto do Instituto de Harmonização no Mercado Interno da União Europeia, com sede em Alicante (Espanha), que consagrou um regime linguístico ainda mais humilhante para Portugal no contexto europeu: inglês, francês, alemão, espanhol e italiano. 

Ficou patente a coerência de Cavaco Silva.

terça-feira, agosto 11, 2015

Áfricas

O estabelecimento de um ambiente de plena normalidade diplomática com os países saídos da colonização portuguesa, em especial depois das longas guerras mantidas com três dentre eles, representa um dos aspetos mais positivos do nosso quadro de relações externas em democracia. O posterior estabelecimento da CPLP veio consagrar a plena maturidade desse entendimento, que tem a língua portuguesa como cimento, permitindo desenhar, ao longo da última década, um modelo de cooperação que, não obstante as suas limitações, fez já um caminho interessante e promissor.

Não tem sentido tentar esconder, por detrás de um qualquer discurso congratulatório, a subsistência de naturais diferenças, na abordagem de certas temáticas, nomeadamente as que se prendem com questões de democracia, de Direitos humanos e do funcionamento do Estado de direito. Se algum exemplo mais concreto fosse necessário, aí estaria o recente caso do acesso da Guiné-Equatorial à CPLP como prova de que nem sempre as perspetivas coincidem. Mas isso faz parte da natureza de Estados que nascem e evoluem em contextos diferentes, com histórias e processos internos muito díspares. A sabedoria de uma diplomacia madura reside, precisamente, na capacidade de sublinhar os fatores de identidade e de potencial aproximação, não deixando que a magnificação das diferenças prejudique aquilo que é essencial.

Ao longo das quatro décadas que passaram desde a independência das colónias africanas, não raramente o, também variado, olhar de Lisboa divergiu do dos governos desses novos Estados, quer na avaliação dos esforços para a sua reconciliação interna, quer no modo como alguns valores comummente aceites pela comunidade internacional, em matéria político-institucional, neles mereceram observância. Curiosamente, e em tempo mais recente, vimos também emergirem, da parte desses Estados, críticas a determinados aspetos do sistema institucional português.

Às vezes, o tom de algumas dessas apreciações ultrapassa o razoável, roça a ingerência, pode ser lido como desrespeitoso das ordens jurídico-políticas. A linha é muito fina entre aquilo que pode configurar uma legítima observação sobre certas disfunções dos sistemas e um tom crítico que pressupõe a não aceitação dos fundamento da ordem de valores em que eles se apoiam.

Compete aos agentes políticos manter a serenidade e ver um pouco para além da espuma polémica de alguns dias, de algumas vozes mais excitadas e de alguns títulos de jornais. Cabe às diplomacias, sob a sua orientação, preservar e desenvolver o tecido comum de relações e olhar para ele na perspectiva da História e dos interesses comuns de que se alimenta.

(artigo que hoje publico no "Acção Socialista")

Europa em movimento

Há dois movimentos na Europa que legitimam uma inferência.

O primeiro movimento prende-se com a proposta britânica de negociar uma "repatriação" de competências comunitárias para a esfera dos governos nacionais, num sentido desintegrador.

O segundo, impulsionado pela crise grega e ilustrado pela inopinada proposta francesa, configura um possível regresso a um "core" da UE, num sentido integrador.

Curiosamente, ambos os movimentos, na sua aparente contradição, podem acabar por conjugar-se. E a forma de ultrapassar o "espartilho" que, no entender de alguns, a atual diversidade de perspetivas e vontades induz à evolução do projeto europeu poderia assentar na retoma do debate sobre a flexibilidade / integração diferenciada / cooperações reforçadas. Um debate da maior delicadeza, como a experiência portuguesa nas "conferências intergovernamentais" que trataram o tema bem registou.

De qualquer forma, uma inferência parece-me óbvia: terá de haver uma nova revisão dos tratados, porque, conhecendo estes, tenho por seguro que atualmente não existe neles margem para poderem ser utilizados nesse sentido. Portugal deveria, assim, preparar-se desde já para essa reforma institucional. 

Um destino europeu


Para o bem e para o mal, a Europa é o nosso destino. O Atlântico pode ser a vocação de há muito incumprida, as Áfricas podem apontar-se como eterna promessa de um clube, feito de língua e algum afeto, a abrir-nos as portas internacionais, mas a Europa é o que aí está, no imediato e na realidade, como uma inevitabilidade – geográfica, económica, cultural. E porque assim é, manda a racionalidade que seja nela que devamos concentrar muita da nossa política para o mundo, sem prejuízo de procurarmos manter vivas todas as nossas restantes dimensões de afirmação externa. Até porque essas mesmas dimensões são também, elas próprias, constitutivas do nosso poder dentro da Europa.

A Europa revelou, em anos recentes, insuspeitadas debilidades. Como projeto com múltiplos atores, não necessariamente consonantes entre si sobre os caminhos do futuro, na expressão simultânea das suas vontades, a Europa comunitária provou, à saciedade, que é de uma grande e exasperante lentidão na resposta aos factos, que navega quase sempre à vista, que é arrastada pelos acontecimentos, em lugar de os conduzir. Isto não é uma crítica, é uma mera constatação. Provavelmente não poderá ser de outra forma. Conglomerado de vontades democráticas, mobilizadas por agendas nacionais diversas e frequentemente divergentes, a Europa, no seu processo decisório, tem de “ficar à espera” de todos e de cada um, sem o que arrisca a ilegitimidade nos procedimentos, por muito que um juízo de eficácia justificasse o contrário.

No passado, no processo europeu, o sentido da urgência era bem menor. Em causa estava, à época, avançar-se mais ou menos rapidamente no completamento ou criação de certas políticas, que iam conferindo uma coerência progressiva ao projeto. O tempo da maturação democrática era respeitado, a identidade dos interesses comuns era mais evidente, a comunidade era então menos extensa e mais coesa.

Foi a ambição que trouxe a nova urgência. Foi a “entrada” da Europa em domínio que antes era do múnus exclusivo da soberania dos Estados – como a moeda, a política exterior comum ou a gestão das fronteiras – que lhe criou a necessidade de uma capacidade de resposta idêntica à que cada país tradicionalmente tinha na gestão desses domínios. Perante esse desafio, a Europa mostrou a sua escassa agilidade, uma lentidão paquidérmica. Vê-se isso na crise da moeda e no caso grego, viu-se na caótica gestão do processo ucraniano e na falta de soluções para uma afirmação coletiva face ao Estado Islâmico, constata-se, à evidência, na patética reação face às vagas migratórias mediterrânicas ou às hesitações sobre o que fazer no buraco do túnel para o oásis britânico.

A crescente constatação de que o “timing” é vital para a sua eficácia está a levar a Europa a concentrar as suas decisões, a colocar de lado o “método comunitário”, que se havia revelado confortável para as democracias constitutivas do projeto coletivo. A preeminência do Conselho – isto é, dos Estados – sobre a Comissão Europeia, a expressão de poder de instâncias como o “eurogrupo”, tudo isso configura uma significativa mudança de natureza no projeto.

Contrariamente a muitos, entendo que não compensa ser nostálgico de outros tempos. Como nas regatas, há que ser hábil e saber navegar com os ventos que estão, desde que se tenha uma estratégia, se proceda a uma reflexão contínua, assente num amplo consenso político, sobre o modo como atingir o nosso objetivo. Ter uma política europeia por omissão, como tem sido o caso nestes últimos anos, é uma não-solução. E um imenso risco para o país.

(Artigo que hoje publico no "Diário Económico")

segunda-feira, agosto 10, 2015

Rivais


Num final de tarde de 2007, aterrei no aeroporto de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Durante a viagem no taxi que me conduzia ao hotel, vi passar carros com bandeiras, no que me pareceu ser o prelúdio de um qualquer evento desportivo. Perguntei ao motorista de que se tratava. O homem olhou para mim com cara de poucos amigos e, claramente, com algum desprezo justificado pelo meu desconhecimento: "Hoje o Grêmio joga com o Inter".

Foi então que me veio à memória que, em Porto Alegre, existe uma das maiores rivalidades que opõem clubes na América Latina. O Grêmio de Porto Alegre e o Internacional de Porto Alegre são, desde há anos imemoriais, adversários ferrenhos, numa conflitualidade que já produziu mortos e que transforma o clássico Fla-Flu (Flamengo-Fluminense) carioca numa rixa de infantário. Quando um desses clubes gaúchos joga com uma equipa da Argentina, um país ali ao lado pelo qual nenhum brasileiro morre de amores, metade de Porto Alegre "vira", por 90 minutos, argentina...

Não estimulado pela má catadura do meu condutor, hesitei uns segundos antes de colocar a pergunta: "E o meu amigo de que clube é?" O sentimento de pena do homem para comigo acentuou-se ao ter de revelar o que sentia dever ser óbvio: "Sou do Grêmio. Só pode, não é?!".

Já não me recordo do correr da conversa, mas fixei para sempre as palavras de quase ódio com que, a certo ponto da verborreia anti-Inter por que enveredou, me falou de um filho que se tinha convertido em adepto do Inter, por via do namoro com uma jovem de uma família que era adepta do rival. "Mandei ele sair de casa na noite em que soube que ele se dava com gente dessa! Com roupa e tudo. Foi há quatro anos, vive noutra zona da cidade. Não quero saber dele. Nunca mais."

Chegámos ao hotel. Paguei, não lhe desejei felicidades para o jogo. À noite, na televisão, vi que o Grêmio tinha perdido. Ontem, ganhou por uns rotundos 5-0 ao Inter. Se ainda é vivo, o meu motorista deve ter apanhado um "porre" de caixão à cova!

domingo, agosto 09, 2015

Retificar

A demissão do diretor de campanha de António Costa é um ato de responsabilidade. Consciente de que algumas falhas estavam a prejudicar o desenrolar da campanha por que era responsável, Ascenso Simões não quis que a culpa morresse solteira. E, com dignidade, abriu espaço para que quem lhe suceda possa vir a fazer melhor.

O PS mostrou que sabe aprender com erros. Só lhe fica bem. Convém, agora, que não perca tempo.

A bandalheira liberal

Desde há muito, as unidades hoteleiras são classificadas segundo escalões de qualidade da oferta, vulgarmente designadas por uma a cinco "estrelas". Esta classificação era estabelecida pelo Estado, como entidade licenciadora, com base em critérios objetivos, testados ao longo dos anos. Assim se protegia o consumidor: ao ver um determinado hotel classificado com um certo número de estrelas, o potencial cliente sabia com o que podia contar, quer em termos de equipamento, quer no tocante ao preço que lhe podia ser exigido.

Com a multiplicação recente das unidades hoteleiras no país, com o surgimento de sítios informáticos em que a manipulação das imagens cria frequentemente uma perceção distorcida e edulcorada daquilo que é oferecido, com a onda de ofertas publicitárias auto-elogiosas, com a divulgação jornalística falsamente independente, que todos os dias dá conta de novas unidades, adjetivadas numa apreciação arbitrária "à vontade do freguês" e na realidade paga por quem seduz o "jornalista", entrou-se numa selva de mercado em que o cidadão-consumidor está cada vez mais desprotegido, sentido-se confuso face à diversidade das ofertas - que vão dos hotéis e pousadas ao turismo de habitação e rural, a que se somam os novos hostels.

Perante esta crescente diversidade da oferta, o dever primeiro do Estado, como garante do interesse comum, deveria ser o de proteger o cidadão, o de garantir, através do reforço do normativo, que ele não "compra gato por lebre". Pois vai acontecer exatamente o contrário: é precisamente neste contexto que anuncia a "liberalização" da utilização das "estrelas", que se deixa ao arbítrio dos proprietários das unidades hoteleiras, cujo objetivo natural é o maximizar dos lucros, a decisão sobre a utilização daquelas classificações. Entramos assim na desbragada promoção da "selva hoteleira", por decisão oficial. Um decisão tomada nas últimas semanas de exercício do governo. Já assim aconteceu com os sobreiros, lembram-se?

sábado, agosto 08, 2015

Conversas no Pereira (5)

- Já viste o novo cartaz do PS, com uma boa fotografia do Costa, a falar de "confiança"? Finalmente, um excelente cartaz!

- Espero que assim tenhas percebido a razão de ser dos anteriores cartazes!

- A "razão de ser"?! Essa agora! Eram uns cartazes sem sentido nenhum...

- Ora aí está! Isto é que é uma campanha genial! Porque é que reagiste de forma tão positiva ao novo cartaz? Precisamente porque o comparas com os anteriores, o que te permite destacar este. Se não tivesse havido maus cartazes, se calhar não terias notado a ótima qualidade deste... O PS não brinca em serviço!

Berlin Ball Index


Hoje, no "Expresso", é sugerido o recurso ao prestigiado "Berlin Ball Index" como indicador fiável da inflação. Só posso concordar com esta sugestão.

Na praia por onde ando, as bolas de Berlim - apresentadas com o pregão "Não engorda!, só alarga!" - são este ano vendidas a 1,50 euros.

Assim, na ausência de um leilão independente gerido pela DECO, vejo-me por aqui esmagado por um escandaloso monopólio, em que a minha fonte calórica vespertina me chega a este absurdo e especulativo preço. Ora eu sei que, em praias mais populares e modestas, como a Quinta do Lago ou o Ancão, o preço pedido é 1,10 euros. Pobres, mas com muita sorte...

Ah! A culpa é das gentes de Berlim, como não podia deixar de ser! 

Corregedor ou Poulidor?

Durante anos, a APU e depois a CDU - compostas pelo PCP, pelos Verdes e pela Intervenção Democrática - concorreram às eleições legislativas em listas conjuntas. Nesse tempo, nunca a ninguém passou pela cabeça que Corregedor da Fonseca, um simpático cidadão de que a maioria dos leitores nunca ouviu falar e que era o líder aparente da Intervenção Democrática, tivesse um tratamento televisivo próprio, isto é, que fosse chamado aos debates em pé de igualdade com António Guterres ou Marcelo Rebelo de Sousa.

Esse é o preço das coligações pré-eleitorais: quem procura ganhar sinergia com listas conjuntas, colocando-se sob a tutela de uma "chapa" única, concede à liderança dessa mesma coligação a titularidade para a representar. E isso começa logo pelos debates televisivos.

O dr. Paulo Portas, não obstante as qualidades mediáticas que o convertem num "must" televisivo, como mestre de "soundbites", onde quer que vá falar da "lavoura" e de outros temas magnos de interesse pátrio, converteu-se hoje, goste ou não, numa espécie de novo Corregedor da Fonseca. 

Por isso, não se queixe. Foi o dr. Portas quem atribuiu a si mesmo - e isso começou no dia em que abandonou a JSD e deixou de ser o diretor dessa esplêndida folha informativa que dava pelo nome de "Pelo Socialismo" - o destino eterno de Poulidor da política portuguesa. 

"Poupou" também era muito popular entre os franceses, que lhe achavam imensa graça, durante a Volta à França. Só que nunca ganhou nenhuma! Ficou várias vezes em segundo, lugar que, numa competição, acaba por ser o mais parecido com o último. E Paulo Portas já terá entendido que ser o "second best" da direita é, para todo o sempre, a sua triste sina.

sexta-feira, agosto 07, 2015

Neocolonialismo

Habituámo-nos e já nem nos apercebemos deste tropismo vulgar que é o facto de nos permitirmos, com regularidade, dar opiniões sobre a vida política interna das colónias que já foram portuguesas. Não há partido político nacional que, de quando em vez, contra ou a favor, se não permita dar “bitaites” sobre eleições ou conflitos políticos nos Palop. Há figuras nacionais que têm o hábito de tomar partido sobre o que se passa nas “nossas” Áfricas ou em Timor-Leste, com uma naturalidade que se torna chocante, sendo legítimo perguntar por que diabo o não fazem, com a mesma regularidade, sobre as eleições no Vanuatu ou na Gâmbia. Por cá tivemos, por muito tempo, apoiantes da Unita contra do MPLA, da Renamo conta a Frelimo, e vice - versa. Já assistimos mesmo ao espetáculo triste de ver parlamentares nacionais presentes num escrutínio num desses países, ao lado de candidatos. 

Aqueles territórios foram colónias portuguesas, autodeterminaram-se, tornaram-se independentes. Desde logo, de nós. Se têm problemas e, às vezes, pedem a nossa ajuda, isso não nos dá o menor direito de nos imiscuirmos na sua vida política, tomando partido entre uns e outros. Os políticos portugueses, que têm tantas e importantes questões internas que não conseguem resolver, fariam bem melhor se se dedicassem mais à sua “paróquia” e deixassem de se meter na vida política dos outros. Particularmente dos Estados que foram suas colónias. Isso tem um nome. Neocolonialismo.

O outro 25

Se a manifestação dos 50 anos do 25 de Abril foi o que foi, nem quero pensar o que vai ser a enchente na Avenida da Liberdade no 25 de novem...