A tensão atual NATO-Rússia parte de duas realidades incontroversas e potencialmente conflituantes entre si.
De um lado, está o tropismo ocidental, muito estimulado pelos Estados Unidos e pelos países saídos da tutela soviética, de explorar a fragilidade de Moscovo, no pós-guerra fria, para "ganhar terreno" o mais a Leste possível. As aventuras americanas na Geórgia e até, por algum tempo, na Ásia Central (neste caso, a pretexto da luta contra o terrorismo), são disso flagrante exemplo.
Do outro lado, está a vontade da liderança russa de resgatar o sentido de derrota que, para o seu povo, constituiu o fim da União Soviética e o declínio, como potência, que daí resultou para a Federação Russa. A chefia de Putin, instituindo um regime autoritário que apenas salvaguarda os "mínimos" democráticos, parece ir bem com o sentimento maioritário de um país que se sente humilhado e, de certo modo, permanece sob um temor de "cerco".
Neste cenário de fundo, projeta-se a Ucrânia.
A Ucrânia é um "Estado-charneira", onde convivem (conviviam?) perceções antagónicas, polarizadas pelos dois "mundos" acima referidos. A razoabilidade aconselharia a que os sinais dados a Kiev, por ambos os lados, fossem no sentido de entender a sua especificidade geopolítica, com vista a combinar, com gestos de prudência, a compatibilidade com essas duas realidades.
O ocidente, na continuidade do tropismo liderado pelos EUA, que atrás referi, estimulou a reversão, num golpe de Estado de rua, de um presidente ucraniano que a comunidade internacional sempre considerou ter sido legitimamente eleito, mas que, aparentemente, tinha o "defeito" de ser pró-russo. Contribuiu assim para a implantação em Kiev de um poder político que logo sonhou com a entrada na União Europeia e mesmo na NATO.
Num ambiente de crescente agressividade face às populações russófilas e russófonas do país instituído pelo novo regime, não foi espanto para ninguém que estas reagissem no sentido de salvaguardar os direitos que tinham desde a independência do país. E parece também de falsa inocência a admiração com que se olhou para o facto da Rússia ter avançado em apoio a essas populações.
A essa manobra ocidental despudorada, que legitimou o atropelo dos direitos das populações russas da Ucrânia, correspondeu, entretanto, um avanço oportunista russo, que aproveitou o ensejo da guerra entre os seu aliados russóficos e o novo poder em Kiev para "deitar mão" à península da Crimeia, cuja tutela ucraniana lhe tinha "ficado atravessada" desde o fim da União Soviética.
O ocidente, aturdido, "bombardeou" então a Rússia com declarações fortes, comunicados graves e algumas sanções - um preço barato para uma zona de imensa importância geopolítica. No chamado "acordo de Minsk", que estabelece as bases para o cessar-fogo na guerra breve entre o governo ucraniano e os separatistas pró-russos, a palavra "Crimeia" são surge, o que já representa uma incontestável vitória russa.
Entretanto, o esperado incumprimento do "acordo de Minsk" acabou por suceder. As culpas estarão de ambos os lados, não sendo de excluir que o lado pró-russo, manipulado pelo interesse de Moscovo, seja o mais empenhado em provocar uma confrontação como a que está a ocorrer em torno de Mariupol, cidade dominada pelo exército de Kiev, e cuja tomada pelos separatistas poderia significar, para Moscovo, a concretização do "sonho" de ligação terrestre da Federação Russa à península da Crimeia, até agora uma espécie de "ilha", difícil de manter por via marítima. O aproveitamento do fator climático, isto é, a oportunidade das próximas semanas de tempo razoável para facilitação de ações militares, pode ter aqui algum papel.
Esta tensão localizada, somada a outros incidentes que mostram o que muitos sabiam já há muito - que o "acordo de Kiev" era muito difícil de subsistir -, está a criar uma crescente tensão entre a Rússia e o ocidente, isto é, a NATO, isto é, os Estados Unidos. A União Europeia tem aqui um papel subsidiário, com a Alemanha e França a "fingirem" ser poder, quando, na realidade, estão "mortas" para restabelecerem os seus negócios com Moscovo mas, ao mesmo tempo, não querem desagradar aos Estados do Centro e Leste, sob uma liderança inconstante da Polónia, cuja relação traumática com a Rússia lhes cega a racionalidade.
Estes Estados, dentre os quais os países bálticos alimentam uma linguagem mais belicista, confiam muito pouco na União Europeia e colocam todas as suas cartas na NATO, o que é o mesmo que dizer nos EUA. Porque já perceberam, e bem, que se 'isto der para o torto", só a força militar americana os pode salvar.
O drama essencial nesta conjuntura é, a meu ver, a assimetria nos modelos decisórios.
De um lado está a NATO, sujeita a regras claras, a uma "accountability" democrática, que nunca será facilmente mobilizável por pulsões "jingoístas" de alguns parceiros mais impacientes. Mais do que a sua força militar, que será tanto mais valiosa quanto não tiver de ser usada, a NATO consagra um corpo de compromissos muito fortes. Mas, precisamente porque assim é, a NATO não pode nem deve prestar-se a servir de escudo ao aventureirismo de alguns dos seus Estados, por muito importantes que eles sejam no seu seio. A decisão americana de enviar algumas centenas de pára-quedistas para a Ucrânia representa um desses atos que, sendo um risco americano na essência, configura um risco colateral para toda a Aliança.
Do outro lado está a Rússia. Para além da coreografia constitucional que lhe é própria, a realidade mostra que o poder, em Moscovo, não está sujeito a "checks-and-balances" similares aos do lado ocidental. Ora isso converte a Rússia num poder com contornos muito mais imprevisíveis no seu processo de decisão política, em particular, militar. E, por isso, os riscos potenciais do lado da Rússia são muito mais elevados.
Por tudo isto, o sentido de responsabilidade do lado da NATO torna-se ainda maior. A NATO não deve alimentar uma linguagem confrontacional e deve abster-se de atos de cariz militar, em termos de manobras e outros procedimentos de mobilização de tropas e meios de ação, que possam configurar um modelo de provocação suscetível de ser aproveitado pelo "outro lado". Noutro sentido, a NATO deveria definir no seu seio, de forma muito clara, mas sempre respeitando estritamente o seu estatuto e os mandatos multinacionais aplicáveis, o que entendem ser as "linhas vermelhas" que a Rússia não poderá ultrapassar, sem o que um conflito se tornará inevitável. E fazê-los saber a Moscovo, “alto-e-bom-som”.
A Guerra Fria provou que Moscovo é um leitor atento dos sinais claros que receba por parte de quem está disposto a fazer-lhe frente. O novo poder no Kremlin não é igual ao que existia durante a União Soviética. Por muitos defeitos que tenha, há mesmo que convir que é um pouco melhor.
(Artigo publicado no "Observador")
17 comentários:
Análise lúcida e que os politicos ocidentais deviam partilhar. A não aceitação das evidências aqui inteligentemente descritas tornará o conflito que já tem uma zona quente (leste da Ucrânia) em algo que a Europa pagará muito caro.....mais uma vez.
rodrigo sousa e castro
Excelente análise, Senhor Embaixador, embora eu tivesse utilizado termos mais fortes contra o golpe de Estado de rua, que eu teria qualificado de nazi!
Por outro lado, por lapso, o Senhor Embaixador escreveu : " de um presidente ucraniano que a comunidade internacional sempre considerou ter sido legitimamente eleito, mas que, aparentemente, tinha o "defeito" de ser pró-russo", é na realidade pro NATO e UE.
Também, na frase : "No chamado "acordo de Minsk.... a palavra "Crimeia" são surge, o que já representa uma incontestável vitória russa." Queria certamente dizer "não surge".
O ano passado, Moscovo esperava manter a Ucrânia inteiramente na sua esfera de influência, enquanto que a UE e os EUA esperavam atrair o país inteiro no campo ocidental. Se os dois campos admitem que nem um nem outro é possível, talvez se possa considerar este resultado como um progresso.
Pensei noutra solução: A Rússia deverá fazer um bloqueio total à Ucrânia,por terra,mar e ar,obrigando esta a subsistir com o que puder encontrar,dado que a proximidade da Ucrânia à Rússia é muito preocupante em termos de segurança. Há quem, na NATO, tenha experiência cabal de situação semelhante,a tenha, férreamente, aguentado durante cinquenta e muitos anos,e agora a vá,lentamente, aliviando,dando-se ares de grande democrata!
ola Francisco
gostei muito deste seu artigo e os meus modestos elogios terminariam todos em issimos
um abraço
Alain
Parece-me um jogo de xadrez de estrategas com obsessões compulsivas para jogos de guerra que ignoram ou são insensíveis ás ligações com a vida das pessoas, com medos de perder o protagonismo e o poder megalomano de endeusamento, alguns não passam de robots de si próprios e da sua cegueira, em bom português pobre de quem os atura, têm a chave da paz na mão e não abrem a porta por puro egocentrismo de não saber o que fazer com ela e terror de passarem ao anonimato operativo de Ghandi...
Um excelente texto (diria mesmo uma pérola para o Observador - tenho opinião sobre o Observador!) . Apanhando o "barco" recomendo vivamente a leitura de um texto de 1920 do "souverainiste à la russie" Alexandre Volkonski agora reeditado. Comprei-o ontem a meio da tarde na GJ (occasion 8,40 €) e quando aterrei à noite em Lisboa já o tinha quase todo lido.
http://www.editions-syrtes.fr/fr/02-Catalogue/Titres/173-Ukraine-la-verite-historique/
Raramente venho "a terreno" comentar os seus textos, com os quais, umas vezes concordo, outras, discordo...
Mas este,para mim, expressa tão bem o que também penso sobre o assunto, que me apetece dizer-lhe o quanto fez bem em o publicar, sobretudo, no "Observador"!
Só uma nota - o Ocidente clama sempre por eleições democratas, mas o modo como o mesmo Ocidente provocou a queda do anterior "legitimo e legal" Presidente da Ucrânia - com ministros franceses e polacos em plena rua a incitar a população...foi vergonhoso!
Senhor Embaixador: Reli o meu comentário, segundo parágrafo. Confundi o sentido da sua frase , pensando naquele que se "auto nomeou"."Autant pour moi", como se diz por cá. Retiro-a, claro está. Apresento as minhas desculpas.
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~ Estranho a introdução sintetizada no primeiro parágrafo!
~ Desde quando as relações entre NATO e Rússia não foram
controversas e conflituosas?!
~ A aversão soviética à Nato pode ter estado afastada dos
focos dos media, mas nunca adormecida!
~ A NATO sempre será tratada com desprezo, não apenas por
russos, como por todos os comunistas a nível mundial e ainda
por larga faixa de alemães.
~ Por mais lavagens de imagem que fizer!
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"- com ministros franceses e polacos em plena rua a incitar a população...foi vergonhoso!"
, escreve o Senhor MGP MENDES , e tem razão.
Para mim, homem de esquerda, data dessa interferência na Ucrânia, a lenta erosão do Partido Socialista, sob a direcção de François Hollande, que continuou depois com a Grécia.
O "serviço" do governo francês foi desonrante e impensável. Faz-me pensar no triunvirato dos Açores.
E ainda por cima alienou os interesses da França, aliando-se às sanções contra a Rússia, que custam imenso à indústria agro alimentar francesa , que saiu para a rua nestas últimas semanas, porque a perda do mercado russo não é facilmente compensável .
Acrescenta-se a perda de 2 000 milhões de euros do fornecimento dos dois navios de guerra Mistral, que jazem no porto de Brest, cuja "limpeza" dos equipamentos previstos para os Russos, custa 800 milhões de euros, e que agora procura revender à Arábia Saudita.
Em 2017, a Ucrânia e a Grécia podem custar o poder à esquerda francesa. Eis o custo da submissao aos EUA e à UE.Merci Hollande.
A Nato, deveria era estar preocupada em exterminar no sentido mais literal da palavra o Estado Islâmico. Andam a destruir património histórico e cultural de toda a Humanidade, para além disso eu como Ateu assumido que sou não posso conceber que estes fanáticos agora matem bloggers apenas por não acreditarem em ilusões(Deus). A Russia é um País orgulhoso como tal não tentem humilhar quem ter orgulho, pois dai por certo terão uma resposta bem á altura.
Na mouche
Fernando Neves
Desculpas não se apresentam. Pedem-se!
Muito bem.
Sem duvida, só não se percebe muito bem qual a intencao dos EUA de continuarem a provocar a Rússia junto as suas fronteiras. Uma guerra ali será sempre uma guerra perdida, a avaliar pelo que aconteceu na Geórgia e agora na Ucrânia. Se o poder em Washington estivesse nas mãos de um Republicano, eu ainda entenderia, mas Obama tem-se revelado bastante comedido no uso que faz da forca militar (em larga escala, pelo menos). E de qualquer forma, a relação do Ocidente com a Rússia e bem mais importante que os estados de alma dos Países da Europa de Leste. Basta ver a participação da Rússia no recente acordo com o Irão, para alem da importância económica das relações comerciais. Como o Senhor Embaixador diz, o que e preciso e deixar claro a Rússia quais os limites que não deve ultrapassar, providenciando-lhe igualmente garantias de que os direitos dos russos que vivem em Países da antiga URSS serão respeitados. Sera isso tão difícil?
" Desculpas não se apresentam. Pedem-se. ! " Fui ver ao dicionário : tem razão.
Quando o anónimo corajoso das 11:56 viver 50 anos sem falar nem escrever a sua língua, verá que no dia em que procurar recuperar a língua materna, é difícil de respeitar todas as regras esquecidas.
Pena é que alguém que é assim tão instruído, de facto seja incapaz de escrever. Leia bem o que escreveu em seis meses : nada. Excepto diatribes e inépcias . Mas ninguém é obrigado àquilo que não pode.
Quanto a mim, continuarei a escrever como sei.
Para o anónimo das 11:56: Para o ajudar a compreender porque é que alguém que fala desde há cinquenta anos uma língua na qual as desculpas se "apresentam" e não" se pedem":
Des excuses correctes contiennent trois éléments principaux : l'expression d'un regret, la reconnaissance d'une responsabilité et le remède .Vous pouvez avoir du mal à présenter vos excuses pour une erreur que vous avez commise, mais sachez que cette action vous aidera à réparer le mal que vous avez fait et à améliorer vos relations avec autrui.
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