sábado, maio 09, 2020

Uma “palavra” a Franco


Nestes 75 anos da vitória aliada na 2ª Guerra Mundial, convirá recordar que se deve à obstinação do ditador espanhol Francisco Franco, que, na reunião de Hendaye, terá convencido Hitler a não avançar até Gibraltar, o facto da Península ter sido poupada às consequências diretas do conflito.

Como é óbvio, se os alemães tivessem entrado em Espanha, nenhuma diplomacia “pelo meio dos pingos da chuva”, também chamada cinicamente “neutralidade colaborante”, teria evitado o envolvimento português na guerra ao lado do Eixo.

Por essa razão, que é puramente geopolítica, não tem o menor sentido o argumento de que “Salazar poupou os portugueses da guerra”, que alguns saudosistas procuram avançar, em tom atenuante, quando alguém fala, com razão, das décadas de malfeitorias do homem de Santa Comba. O qual, diga-se, anos depois, pela sua cegueira histórica, iria envolver o país em três guerras coloniais, convém já agora recordar.

O preço da vitória

Vale a pena lembrar, nestes 75 anos da vitória aliada na Segunda Guerra mundial, o preço que cada país pagou, em vidas humanas.

O dia da vitória


Estou a ver, ali adiante, a casa onde hoje vivo. Esta imagem é tirada de uma das varandas do edifício onde funcionava a embaixada britânica em Lisboa. Há três bandeiras, de três dos Aliados vitoriosos, nesse magnífico dia de 1945: Reino Unido, Estados Unidos da América e França. E houve também, como os relatos daquele dia o notam, pessoas que tinham na mão apenas um pau de bandeira, sem qualquer bandeira. Queriam simbolizar o outro vencedor da guerra, a União Soviética.

sexta-feira, maio 08, 2020

8 de maio, dia da Vitória


Onde é que eu estava a 8 de maio?
  • Hoje, estou confinado...
  • Há cinco anos, estava, precisamente a esta hora, a dar uma aula em Lisboa! 
  • Há 10 anos, estava a trabalhar em Paris.
  • Há 15 anos, estava a trabalhar em Brasília.
  • Há 20 anos, estava a começar uma visita de trabalho à Turquia.
  • Há 25 anos, estava a regressar de uma deslocação em trabalho a Itália.
  • Há 30 anos, tinha acabado de chegar a Lisboa, há pouco, depois de ter dado uma volta completa ao mundo (mesmo!), juntando trabalho e férias.
  • Há 35 anos, estava trabalhar em Luanda.
  • Há 40 anos, estava a trabalhar em Oslo.
  • Há 45 anos, estava na tropa, em Lisboa, no início do “Verão quente”, a fazer provas para entrar no MNE.
  • Há 50 anos, andava a tentar estudar Ciências Sociais, em Lisboa.
  • Há 55 anos, andava a fingir que estudava Engenharia, no Porto.
  • Há 60 anos, andava, garbosamente, no 3° ano do liceu, em Vila Real.
  • Há 65 anos, andava no escola primária “do Trem”, com o professor Pena.
  • Há 70 anos, brincava na casa onde então vivia, na rua Avelino Patena, desconhecendo que aí, onde tinha nascido, haviam reunido, faz no próximo dia 5 de outubro 110 anos, os conspiradores que implantaram a República em Vila Real (já lá está a placa).
  • Há 75 anos, dia da Vitória aliada na 2ª Guerra Mundial, ainda não andava por cá.

A China vai dominar o mundo?


No mundo antes do surgimento do novo vírus, a afirmação geopolítica da China vinha, desde há muito, a suscitar uma forte preocupação americana, desde logo pela perceção de que isso representava uma crescente ameaça direta à sua preeminência à escala económica global. Ao contrário de Obama (e do que poderia ter sido uma administração Clinton), que tinha apostado num “cerco” de parcerias económicas, envolvendo os seus aliados vizinhos da China, a linha de Trump apontou para um diálogo bilateral tenso, apostando em como Beijing não se arriscaria a um confronto económico-financeiro no qual teria muito a perder.

No imediato, a China contemporizou, Trump ganhou tempo e procurou levar os europeus para uma frente comum contra o perigo chinês. A Europa, que começa a encarar a China como um poder adversarial, não parece assumir ainda uma linha comum que permita uma sua antagonização aberta. Porém, o modo como aliados europeus dos EUA aceitaram incluir uma inédita referência à questão chinesa no comunicado da última cimeira da NATO prova que a porta, para um futuro entendimento entre americanos e europeus, não está totalmente fechada. A acontecer, isso só poderia ser feito desde que Washington optasse por uma postura de razoabilidade, pouco provável com a administração atual.

A preocupação europeia pela tomada de posições do capital chinês em ativos seus já não é de hoje, mas a verdade é que, num mercado aberto, quem tem meios disponíveis para aproveitar as oportunidades dificilmente pode ser travado por procedimentos administrativos. A Europa queixa-se de que países como Portugal alienaram ativos para mãos chinesas? E alguém dessa Europa se “chegou à frente”, no momento certo, para o evitar? Além de que convém notar que o nosso país, ao contrário do que alguns pensam, está muito longe de ser o maior hospedeiro europeu de capitais chineses.

A pandemia trouxe novos dados a esta equação. De um dia para o outro, a Europa parece ter acordado para a imensa dependência que, ao longo de décadas, criou face à China. E logo teve um reflexo “nacionalista”, protecionista, a que até o nosso primeiro-ministro foi sensível no seu discurso europeu. Há aqui, porém, um forte equívoco: o “made in Europe” não dá garantia estratégica absoluta a ninguém, como os italianos bem perceberam no auge do seu estado de necessidade. Além de que a China, passada a pandemia, vai regressar como um mercado essencial para a recuperação da indústria europeia, por muitas preocupações geopolíticas que Bruxelas possa suscitar.

Já se percebeu que os EUA optarão por alimentar cada vez mais teorias conspiratórias contra a China, que dêem a Trump a um inimigo externo que o ajude a renovar o seu poder interno. Não parece, contudo, que esse caminho possa vir a ter muitos seguidores, num mundo ansioso por capitais que o, embora limitado, crescimento chinês proporcionará. O futuro económico global não é muito risonho, mas nada indica que nele a China não possa continuar a sorrir.

(Artigo publicado a convite da revista “Visão”)

A oportunidade

A direita portuguesa, aquela que é democrática e quer continuar a ser decente, tem uma oportunidade de ouro para se demarcar do Chega. É que, se o não fizer, dá um bom argumento a quantos acham que, lá no fundo, ela tem a tentação eleitoral de ir colher votos racistas e xenófobos.

Gostos não se discutem



O Portugal de que gosto


Não alimento juízos definitivos de valor sobre o modo como os povos se relacionam uns com os outros, em termos de maior ou menor abertura para conviverem com as respetivas diferenças. Não entro na polémica, que alguns procuram trazer para a praça pública, sobre se Portugal é ou não um país racista ou xenófobo. Não faço parte de quantos acham que é útil fazer uma “sindicância” sobre o nosso passado colonial, lançando um debate auto-flagelatório sobre a nossa História. Já percebi que essa agenda anda por aí e, sobre ela, tenho a mesma teoria que as pessoas prudentes das aldeias têm sobre as queimadas: feitas sem ter em conta a força dos ventos podem dar origem a grandes incêndios.

Ao contrário do que acontece com muitos com o avançar da idade, sinto que tenho cada vez menos ideias gerais. Aprendi que as coisas são, em geral, muito mais complexas do que aquilo que uma abordagem impressionista parece indiciar. Talvez por isso, não alimento conversas de café sobre estados de alma nacionais. Vivi o suficiente para ter aprendido que se pode dizer uma coisa e o seu contrário e, no entanto, continuar a estar certo - porque a perspetiva é a do ponto a partir do qual se olha e não daquilo que está à vista.

Na vida que levei por algum mundo, representando Portugal, nunca ninguém me ouviu dizer que “os portugueses não são racistas” ou que a nossa colonização (e, já agora, a nossa descolonização) foi “exemplar”. Não é por Gilberto Freyre ser oriundo de uma antiga colónia que o “luso-tropicalismo” passou a ser uma categoria elogiosa, nem a nossa relação colonial ganhou uma suposta “bondade” graças a uma certa forma portuguesa de estar no mundo.

Somos hoje o que somos, como país. Mas de uma coisa tenho a certeza: seremos sempre um pouco mais se o nosso discurso assentar numa linha humanista e, em especial, numa firme vontade de fazer coincidir aquilo que fazemos com aquilo que, nesse domínio, defendemos.

Foi-me sempre agradável, como diplomata e como português, ver reconhecido nos fóruns internacionais, e no que os outros dizem sobre nós, a generosidade da nossa cultura de acolhimento dos estrangeiros que nos procuram, seja para melhorarem as suas condições económicas de vida, seja para se acolherem, para se refugiarem, quando perseguidos ou vítimas de situações de conflito.

Gosto muito de ver Portugal na vanguarda das atitudes internacionais em matéria de ações solidárias face aos migrantes e refugiados – da mesma forma que me envergonho ao ver certas forças políticas nacionais, com fortes responsabilidades democráticas, serem cúmplices pelo silêncio face aos comportamento miserável de alguns Estados europeus, só porque são dirigidos por partidos que pertencem à sua “família” política. Há famílias que não se recomendam!

Nesta crise da pandemia, senti um grande orgulho em ser português ao assistir ao gesto nobre, unilateral, do governo do meu país de legalizar todos os indocumentados estrangeiros. É deste Portugal que eu gosto.

quinta-feira, maio 07, 2020

Entrevista

Nenhuma questão importante deixou de ser colocada ao ministro das Finanças por Vitor Gonçalves, na Grande Entrevista que a RTP lhe fez esta noite. Será muito difícil fazer outras entrevistas assim?

Em defesa da liberdade de expressão

No debate que por aí anda sobre os comentários racistas, surgiram certas vozes a defender que, simplesmente, se deve calar à força quem disser enormidades daquele quilate. Cuidado! Não brinquemos com a democracia! Só o incumprimento da lei deve ser limite à liberdade de expressão

A câmara baixa

Há quem ache pouco prudente centrar um debate parlamentar num tema tão nojento como o que foi introduzido por um dos deputados da direita radical. Interrogo-me sobre se, afinal, não pode ser bem pedagógico ver a casa da democracia reagir, com voz dura, àquelas isoladas baixezas.

Honra e desonra

A TSF tem um lugar de honra na história da rádio em Portugal. Quando surgiu, cumpriu um papel de vanguardismo mediático idêntico àquele que tiveram o Expresso e o Público. Hoje, ao abrir o seu Fórum a uma temática como a que escolheu, a TSF arrisca-se a que alguém possa dizer que está a caminhar para um quadro de desonra. Não é esse o lugar da TSF.

As esquinas de Lisboa

Ontem, atravessando Lisboa de carro, cruzei-me com grupos de pessoas, sem máscara, conversando em esquinas, em registo de “business as usual”, com idade não só de terem juízo como de deverem ter cuidados acrescidos, por virtude dessa mesma idade. Fiquei com um mau pressentimento.

O mito das máscaras

Parece instalado na sociedade portuguesa o mito de que, usando uma máscara comum, se pode deixar de manter a distanciação física em relação aos outros. Não sou especialista, mas é por demais evidente que a máscara apenas limita parcialmente o risco de emissão e escassamente o de inalação.

quarta-feira, maio 06, 2020

Amanhã, na “Visão”


Munchau

Se eu estivesse no lugar de António Costa ou de Mário Centeno, este tweet de Wolfgang Munchau, que não é um produtor de “bocas”, mas é um observador muito atento de sinais (vitais), far-me-ia perder uns minutos de sono: “Other real bullet is the German court's explicit accusation that ECJ transgressed its competences, and is therefore to be ignored. Will open floodgates. This is the German version of Brexit.”

Igreja

Esteve muito bem o Cardeal Patriarca na questão das celebrações. Esteve presente na Assembleia da República e adotou uma atitude de sensatez quanto ao evento em Fátima.

Ai CDS...

É patético ver um partido com as credenciais históricas do CSD não se retratar abertamente, com a dignidade que deve ser a das instituições sérias, depois de ter embarcado numa acusação, que está já mais do que provada como infundada, que envolveu o historiador Rui Tavares.

Espirro

Dei um espirro (com máscara) num supermercado. Guardarei até ao final dos dias os olhares que vi à minha volta...

Pelo sim, pelo não...

Fui ao barbeiro. Coitados! Nem nos cuidados intensivos de um hospital se vive assim...

Mascarilhas

Antigamente, os homens tiravam o chapéu para cumprimentar os outros. Hoje, tiram a máscara para que os outros os reconheçam. Que raio de mundo em que estamos...

Regresso à escola

Mário Nogueira fala das condições “absurdas” para o início da aulas. Alguém que o informe que, no caso dele, pode continuar a não as dar...

Parabéns, “Observador”!

Se bem percebi, o “Observador” propõe que o governo não dê subsídios, mas que estimule que sejam feitos empréstimos às empresas de comunicação social, baseados no número de trabalhadores que esses órgãos tinham antes da crise e que não dispensaram.

Se assim é, parece uma ideia muito sensata.

... e a China aqui tão perto!

Fui a uma mercearia de bairro. À porta, um letreiro dizia que eram necessárias máscara e luvas. Eu ia de máscara. Da porta, perguntei: “são mesmo necessárias luvas?”. Lá de dentro, a resposta, sorridente, da chinesa, foi: “Nós vendemos luvas!”. Serviço completo!

A grande trivela de Quaresma


O “Público”


O “Público” traz hoje (Aleluia!) uma “carta ao diretor” recomendando que o jornal adote o Acordo Ortográfico.

Se assim o fizesse, textos de um excelente jornal como é o “Público” poderiam, finalmente, passar a ser recomendados pelos professores para leitura dos seus alunos.

A vigarice mediática

Continua, nas edições on-line da comunicação social portuguesa, mesmo em alguma com prestígio profissional que a obrigaria a uma atitude de maior responsabilidade, a prática desonesta de colocar títulos sobre temas chocantes, sem identificar a origem dos factos, apenas para provocar o “clickbait”, isto é, suscitar a abertura do ”link” pelo leitor enganado, como forma de contabilizar visitantes e assim vigarizar os seus anunciantes.

É para sustentar esta imprensa sem ética que é pedida ajuda através dos nossos impostos?

Os portugueses e o medo


Julgo que o comportamento dos portugueses, sob pressão desta pandemia, quer no modo como auto-regularam de imediato o seu quotidiano, quer na sua posterior interação com as determinações saídas do poder político, é talvez, a grande distância, o melhor retrato coletivo que o país deu de si mesmo, desde há muitos anos. Posso imaginar a “mina” que isto pode vir a ser para os nossos cientistas sociais.

Muitos de nós temos relutância em aceitar, sem a questionar, a ideia generalizadora de que “os portugueses” são “ assim” ou “assado”, embora também não resistamos, de quando em vez, a cair nessa caricatura, em especial por contraponto a outras nacionalidades - e os espanhóis são os que estão, quase sempre, mais à mão para essa comparação. Esse escrúpulo em fugir à generalização baseia-se na constatação de que essa imagem assenta bastante em preconceitos, o que os franceses qualificam com a bela fórmula de “ideias recebidas”.

Essa leitura estática do modo de “ser português” não beneficia, por exemplo, da influência das novas gerações, sujeitas a uma exposição sem precedentes às ideias exteriores, a referenciais e modelos cada vez mais comuns, através de um mundo digital que entra por todos os poros da sociedade. Teoricamente, essa influência, porque é transportada por uma linguagem idêntica, assente nas mesmas plataformas de informação, deveria tender a ser uniformizadora e a conduzir a formas de reação basicamente similares, independentemente das fronteiras, em especial em sociedades marcadas por padrões civilizacionais com grande aproximação.

Ora não foi isso que aconteceu. Nesta crise, cada país reagiu de forma diferente, as suas estruturas políticas tiveram atitudes e hesitações muito variadas, o mundo mostrou que, por muito que a sociedade global tenha hoje uma grande força, o modo de agir nacional continua ainda a ser, no final de contas, o referente essencial para o comportamento dos povos, em especial quando expostos a medos existenciais.

Entre nós, esta pandemia, mesmo que tenha carreado para o dia a dia atitudes em alguns casos contrastantes, desde um tropismo para a submissão temerosa até a atos de rebeldia libertária, projetou, no entanto, um modelo comportamental maioritário muito claro, do qual - aí sim! - podem extrair-se, com inteligência e métodos sociológicos apurados, conclusões muito interessantes sobre o que são, afinal “os portugueses”.

Será que é sob a influência dos medos coletivos que acabamos por nos conhecer melhor?

Os livros da vida (10)


Depois da sua implosão, a União Soviética deu origem a 15 diferentes Estados. Por motivos profissionais, tive o privilégio de visitar quase todo esse mundo que, nos dias de hoje, tem com Moscovo relações muito diversas - de algum amor a um imenso, e até crescente, ódio. Dos Bálticos aos Cáucasos e à Ásia Central, a antiga URSS deixou um mar de nacionalidades díspares. Um dia, sabendo do meu grande interesse por esta área do mundo, alguém me falou deste livro de uma autora bielorrussa, que havia sido, em 2015, Prémio Nobel da Literatura. O livro foi, para mim, um verdadeiro “murro no estômago”. É difícil classificá-lo. Nele se cruzam conversas com vítimas e nostálgicos da União Soviética, trazendo-nos a memória (ia escrever “sofrida”, mas a palavra não chega) dos tempos de Stalin, da 2ª Guerra Mundial, da invasão nazi, dos horrores, das fomes, das humilhações, mas também das grandes e pequenas alegrias de um povo muitas vezes mártir, outras vezes bárbaro, hoje “apátridas” de um passado, ao mesmo tempo glorioso e trágico, que o fim da Guerra Fria transformou num magma de frustrações e num palco de oportunismos. Fica a perceber-se melhor, acabada a leitura, a razão pela qual a Rússia é hoje dirigida por Putin. Saí deste livro, que me marcou imenso, com um respeito muito grande pela tragédia de quem passou pelo inimaginável. Lê-lo foi uma experiência única. E não digo isto de muitos livros.

terça-feira, maio 05, 2020

Os livros da vida (9)


Tenho uma memória “canina” àcerca dos locais onde compro os meus livros. Havia uma pequena livraria francesa, que parece já ter desaparecido, junto do Rockfeller Center, em Nova Iorque, onde, numa hora de almoço, em 2001 ou 2002, vi à venda este “L’écriture et la vie”, com a bela capa clássica da Gallimard. Enfarpelado de embaixador, com uma sanduíche e um Coca-Cola, sentado num murete, passei uma boa hora a ler, na cidade mais livre do mundo, o relato trágico da saída de um prisioneiro do inferno nazi de Buchenwald. Conhecia várias coisas de Semprún, mesmo bastantes (descubro agora que me falta ainda imensa coisa!), começando pelas que referenciaram o seu afastamento do comunismo espanhol. O livro que hoje refiro é dos que mais me tocou, pelo seu humanismo e pela solidez e maturidade da escrita, que voltamos a recuperar no “Adieu, vive clarté”, que aliás trata de um tempo cronologicamente anterior. Um livro “menor” de Semprún, de onde transparece o seu imenso desprezo por Alfonso Guerra, é o que relata a sua frustrante experiência como ministro da Cultura de Gonzalez, “Federico Sanchez se despide de ustedes”, uma das poucas obras de Samprún escritas originalmente em espanhol. Mas é um bom retrato da Espanha pós-franquista. Tenho muita pena de não ter conhecido Semprún, quando vivi em Paris. Mas, quem o conheceu, diz-me que nem sempre era uma figura agradável. Mas as figuras geniais, ao que parece, raramente o são.

segunda-feira, maio 04, 2020

Bolsonaro e Moro

Bolsonaro é o que é - não gastemos adjetivos. Em parte, é presidente graças ao ambiente político criado pela gestão habilidosa do Lava-Jato feita por Moro. Mas um ministro sair de um governo e começar a contar segredos do serralho define um caráter. Estão bem um para o outro!

Brasis

No Brasil há sinais de que pode ocorrer uma rutura formal da ordem constitucional, com o executivo a recusar-se, com eventual respaldo militar, a cumprir determinações do poder judicial. Se tal acontecer, estará em causa o Estado de direito democrático. E isso tem um nome.

As nossas “Mayas”

Acho fantástico como os comentadores portugueses olham para a realidade política. Será que o que se passou nos últimos anos, dos incêndios à pandemia, não os ensinou a ver que as coisas podem variar radicalmente em curto espaço de meses?

Os livros da vida (8)


Um dia, recém-colocado em Londres, adquiri um dos poucos “audio-livros” que tive em toda a minha vida: foi “Tinker, Tailor, Soldier Spy”. Num passeio pelo sul de Inglaterra, ouvi essas “cassettes” (julgo que eram ainda cassettes). Porquê? Porque, durante algum tempo, confesso que tive alguma dificuldade em conseguir ler, no original, as obras de Le Carré. “Ouvir” o livro ajudou-me assim a “entrar” na narrativa do autor, de quem julgo conhecer hoje praticamente toda a obra - e não é pequena. (Já tenho saudades de quando lia muita ficção, coisa que hoje não acontece). Le Carré é, a meu ver, o mais notável cultor de um estilo de romance de espionagem que assenta, precisamente, naqueles serviços secretos que sempre me interessaram mais: a “intelligence” britânica, que continua a ser para mim o mais fascinante desses mundos de “sombras”, a que o fim da Guerra Fria colocou um (apenas relativo) ponto final. O “Tinker, Tailor, Soldier, Spy” é, a meu ver, o romance mais bem construído da chamada “trilogia de Karla”, dentro de uma série bem mais longa, em que surge a extraordinária figura de George Smiley. Voltar a obras já lidas de John Le Carré é algo que tento fazer com regularidade e, como me acontece com outros bons romances, não é que continuo a descobrir por ali coisas que antes me tinham escapado? 

domingo, maio 03, 2020

Jornalismo

Tempos houve em que fazer jornalismo consistia em apresentar factos, com rigor, precisão e sem o menor viés opinativo por parte de quem redigia o texto. Os leitores, com base nessa informação, formavam então a sua própria opinião.

Era mesmo assim, acreditem ou não. Ainda alguém se lembra?

Silêncios


Este não é um silêncio “são”. Eu sei. Mas está-me a saber muito bem este silêncio de fim de tarde lisboeta, com alguma passarada em fundo.

Os interruptores


Imagem genérica dos entrevistadores televisivos que encavalitam perguntas ou não deixam acabar as respostas dos entrevistados, com o argumento de que não “temos” muito tempo.

Das mães



Há bastantes anos, telefonei a um amigo para lhe dar um abraço de pesar pela morte da sua mãe. Recordo-me de ele me ter dito que uma das coisas de que mais se arrependia era do facto de não ter conversado com ela, até ao fim, tanto quanto deveria ter feito. Fiquei com isto na cabeça e prometi a mim mesmo vir a ter isso em atenção, no futuro. Não tive. A minha mãe morreu há quase vinte anos. Até hoje, penitencio-me regularmente por não ter falado com ela tudo aquilo que deveria ter feito, o que sempre ponho à conta da vida algo errante (e, quando o não era, muito ocupada) que fui tendo. Mas, pensando melhor, esta é talvez uma ideia sem sentido: falamos com as pessoas, antes delas partirem de nós, exatamente aquilo que teria de ser. Alterar isso, forçar conversas só para as ter, seria artificializar o que, afinal, é apenas a coisa mais natural das nossas vidas.

Há uns meses, associei-me a uma iniciativa pública onde cada pessoa lia um poema sobre mulheres. Na altura, escolhi um texto de Eugénio de Andrade, chamado “Pequena Elegia de Setembro”, que aqui publiquei.

Repito-o, lembrando-me bastante, neste dia (embora, para mim, o dia da Mãe continue a ser o 8 de dezembro), da minha mãe: 


Não sei como vieste,

mas deve haver um caminho

para regressar da morte.



Estás sentada no jardim,

as mãos no regaço cheias de doçura,

os olhos pousados nas últimas rosas

dos grandes e calmos dias de setembro.



Que música escutas tão atentamente

que não dás por mim?

Que bosque, ou rio, ou mar?

Ou é dentro de ti

que tudo canta ainda?



Queria falar contigo,

Dizer-te apenas que estou aqui,

mas tenho medo,

medo que toda a música cesse

e tu não possas mais olhar as rosas.

Medo de quebrar o fio

com que teces os dias sem memória.



Com que palavras

ou beijos ou lágrimas

se acordam os mortos sem os ferir,

sem os trazer a esta espuma negra

onde corpos e corpos se repetem,

parcimoniosamente, no meio de sombras?



Deixa-te estar assim,

ó cheia de doçura,

sentada, olhando as rosas,

e tão alheia

que nem dás por mim.

Os livros da vida (7)

Foi naturalmente a carreira diplomática o motivo pelo qual alguém, um dia, me recomendou que lesse o “Les Ambassades”, de Roger Peyrefitte. O romance tinha ligação com um anterior, que só vim a conhecer mais tarde, “Les Amitiés Particulières”, uma obra de muito melhor qualidade literária. Peyrefitte escrevia primorosamente, embora muitas suas obras posteriores (como “Les Clés de Saint Pierre”, “Les Juifs”, “Les Fils de la Lumière” e, em especial, “Les Américains”, dentre os poucos mais que dele li) acabassem por fazer cedências a um modelo deliberadamente escandaloso, que o transformaram num “escritor maldito”, que a sua assumida pederastia bem justificava. O “Les Ambassades” é um romance divertidíssimo. Passado na Atenas pré-Segunda Guerra, ali se caricatura, com ironia e maestria, o microcosmos da embaixada de França, com os conflitos internos entre os titulares das várias funções internas. Quando entrei para a diplomacia, e por bastantes anos, aquele modelo tinha ainda algumas similitudes com a nossa própria realidade. Peyrefitte viria a escrever uma sequela, “La Fin des Ambassades”, já sem o mesmo fôlego e graça. 

sábado, maio 02, 2020

Saúde


Grande entrevista de Marta Temido à SIC, perante um Rodrigo Guedes de Carvalho que tentou ser muito incisivo mas, visivelmente, não estava à espera de uma entrevistada tão bem preparada.

Quem tiver dúvidas, pode ver aqui.

Ah! Lisboa...


... não estivesses tu confinada e eu chamava-te um figo!

Tempos

Há pouco, já nem sei bem porquê, lembrei-me desta bela frase de José Saramago: ”Não tenhamos pressa, mas não percamos tempo".

Bye bye Biden


É uma imensa ironia que Joe Biden, cuja campanha estava já feita em frangalhos pela impossibilidade de contrariar a sobre-exposição televisiva de Trump, venha agora a ser “apanhado” por acusações de assédio face a um presidente que nisso tem um “record” imbatível. 

É a América!

Ainda a Caixa

Terá o governo português diligenciado junto das autoridades europeias no sentido da Caixa Geral de Depósitos, nas presentes circunstâncias, vir a ter um regime de atuação mais “livre” do que o imposto aquando do refinanciamento, para apoio às politicas públicas. 

Se não, porquê?

Homenagem a quem nos traz as coisas


Saudades de gente


A descoberta do outro


A paleta de Van Gogh


Assimetria europeia

A pandemia tem efeitos económicos assimétricos. Ao facilitarem as “ajudas de Estado” em todos os países da UE, as instituições europeias estão a agravar as desigualdades, porque favorecem as economias com maior “poder de fogo” financeiro para ajuda ao seu setor privado

Aceito apostas!

Aqui, nas redes sociais, em três semanas.

Se os efeitos da pandemia abrandarem, “o governo foi alarmista, o vírus matou tanto como as gripes e se “matou” bastante foi a economia”.

Se houver um novo surto, “o governo foi irresponsável, não soube gerir o desconfinamento, foi de um desleixo criminoso”.

Desoras


Há dias, um amigo, que me vê escrevinhar por aqui a desoras, comentou: “Agora é que eu percebi o conceito de “filhos da madrugada”, na canção do Zeca!”

Os livros da vida (6)


Eu tinha nove anos de idade quando Roland Barthes escreveu as “Mythologies”. Creio que devia ter mais de 20 anos quando, pela primeira vez, li o livro, precisamente na edição que a imagem mostra. Já não sei como cheguei a Barthes, mas isso deve ter acontecido por “infeção” de grupo, algures entre a Granfina e o Montecarlo, na transição dos anos 60 para 70. “Estudei-o” depois num curso de Semiologia, no Centro Nacional de Cultura, creio em 1972, ministrado por Prado Coelho, a que eu assistia depois do meu dia de trabalho como funcionário bancário. Li muitas outras coisas de Barthes, mas guardei para sempre a impressão que me deixou este “ Mythologies”, que me ajudou a perceber como alguns objetos afirmam a sua identidade e ganham uma autonomia própria no espaço social e público. Barthes foi um génio e tem uma obra fascinante, marcada pelo seu raro poder de interpretação sobre a verdadeira complexidade de coisas que só aparentemente são simples. Há uns anos, para lhe agradecer o que me tinha ajudado a “ver”, fui ao seu túmulo, no cemitério de Urt, no sudoeste de França.

sexta-feira, maio 01, 2020

Patético


Tenho o maior respeito pelo Primeiro de Maio e bastante pela CGTP, mesmo agora que foi tomada por um curioso “management buyout”.

Mas achei o comício da Alameda uma iniciativa ridícula e pergunto-me se, naqueles autocarros de manif paga, havia algum distanciamento social...ista


Pensionistas

As pensões com “águas correntes, quentes e frias” que havia na Almirante Reis passaram a “hostels”? Não sabia...

Variações sobre uma cantiga de amigo



Sabedes que sen amigo
nunca foi mulher viçosa
Cantiga de amigo



Quando a peste nos assola
vingativa e perigosa,
e a amiga se isola,
vai-se o viço e a cor de rosa:
porque, ausente o seu amigo, 
a bela mulher viçosa,
sozinha no seu abrigo,
sente a alma vagarosa!
Sabei pois que sem amigo
nunca foi mulher viçosa
e que sem um beijo amigo,
todo o verso se faz prosa!
Se é verdade rigorosa
que o viço requer calor,
dai pois à mulher viçosa
um amigo, por favor!


Eugénio Lisboa,


que vai aproveitando a peste para ir remergulhando nos clássicos, os quais sempre nos deram boas dicas, nos dias de grande aflição.

Primeiro de Maio


Lembrar Moustaki a lembrar Chico Buarque.

Alô, alô!

Trump telefonou a Marcelo elogiando a postura portuguesa face ao vírus.

O que será que fizemos de errado?

Os livros da vida (5)


Muita gente que conheci “chegou” a marxista passando, quase obrigatoriamente, pelo Zamora ou, em versão um pouco mais sofisticada, pela Marta Harnecker. Outro estádio essencial do acesso à bela teoria absoluta do óbvio sócio-económico era ler os “Princípios Fundamentais de Filosofia”, de Politzer. Os de lágrima fácil estagiavam antes na “Mãe”, do Gorki, ou, para quem fosse dado ao produto local, na “Engrenagem”, de Soeiro Pereira Gomes, mais primário do que os “Esteiros”. Com estas referências, lidos depois o “Manifesto” e uns extratos simplificadores de Marx (“Salário, Preço e Lucro”, “Trabalho assalariado e Capital” e as “Teses sobre Feuerbach”), estava criado o substrato que permitia debitar, com garbo, um mínimo da vulgata marxista. Depois vinha o “resto”: Lenine, Stalin, Trotsky e, para quem fosse dado a coisas mais étnicas, o velho Mao. E tantos e tantos outros, que hoje jazem no meu espólio na Biblioteca Municipal de Vila Real. Se não tivesse passado pelo marxismo, a minha perspetiva da vida tinha sido outra, eu teria sido outro e, “for the record”, gosto de ser como sou. Devo a Juan Clemente Zamora, no seu simplismo às vezes muito maniqueísta, o ter-me ajudado a perceber o mundo. Depois, como dizia Marx, era importante passar à frente e conseguir transformar esse mesmo mundo. Aqui chegados, cada um fez o que pôde ou o que quis.

quinta-feira, abril 30, 2020

A notar

Sem o menor alarmismo, há uma conclusão muito simples que retiro da leitura das medidas de desconfinamento anunciadas: os riscos para as pessoas mais frágeis (em especial mais velhos) vão aumentar exponencialmente nos meses que aí vêm, em caso de optarem por fazer socialização pública.

Pronto, vou ser otimista...

Vou fazer um esforço, que vai ter de ser bastante grande, para ter uma dose de otimismo perante o impacto das medidas de desconfinamento anunciadas para maio.

O adeus do Piantella



Leio agora que fechou, de vez, o Piantella. Para quem não saiba, foi, durante décadas, o restaurante preferido da classe política de Brasília. Tinha um primeiro andar, com uma bela garrafeira, onde se realizaram reuniões históricas que, para o bem ou para o mal, iam decidindo o futuro político do país. Recordo-me da cadeira de Ulisses Guimarães, que era uma espécie de relíquia do local. No andar de entrada, onde, ao sábado, havia um buffet com uma bela feijoada, cruzavam-se, durante a semana, expatriados dos seus feudos, deputados e senadores, que se juntavam aos jornalistas e lobistas, com os ministros a fazerem aparições solenes, acompanhados dos seus séquitos. Nunca fui um “habitué” do local, quando vivi em Brasília, mas estive por lá as vezes suficientes para ter podido apreciar, com detalhe, aquela sociologia gastronómica, que encenava a coreografia do poder da capital federal. Comia-se bem? Era assim-assim, embora caro. Brasília tinha bem melhores lugares para refeiçoar, mas beber um copo, ao fim da tarde ou mesmo à noite, no Piantella tinha a sua graça. Neste dia de finados para o mais emblemático restaurante político do Brasil, deixo um pensamento para o meu amigo Toninho Drummond, por décadas representante da rede Globo em Brasília, frequentador assíduo do Piantella, autor das mais interessantes memórias políticas que nunca foram escritas.

Os ventos

Lembram-se da polémica sobre os ventiladores, que, durante semanas, entreteve as aves agoirentas do costume.

A pergunta que não vejo agora ninguém fazer é esta: faltou algum ventilador a algum doente?

Vizinhança

Duas razões para eu arriscar quebrar as leis do confinamento seriam ter o José Malhoa ou o Toy a cantar no meu bairro, como parece estar a acontecer em bairros atingidos pelo vírus pimba.

Estou convencido que, se fosse feita uma sondagem, aqui pela zona onde vivo só se ouvia o António Mourão a cantar o “Ó Tempo Volta p’ra Trás”.

Os livros da vida (4)


Em Vila Real, a poesia que tínhamos lá por casa mimetizava a que as “seletas literárias” nos obrigavam a “estudar”. Era escassa e muito clássica, em estantes dominadas pelos romances e contos, por muita História e por dicionários e enciclopédias. O meu pai, que tinha pretensões de “diseur”, gostava muito de Junqueiro, mas também de Régio e de Lopes Vieira, entretinha-se a recitar Homem de Melo, tudo num ecletismo algo bizarro. Acho que nele predominava o impacto da sonoridade dos poemas, porque “O Mostrengo” também era recorrente. No que me toca, até aos 17 ou 18 anos, confesso que fui bastante “surdo” para a poesia. Chegado à universidade, deixei-me tentar pelo neo-realismo, pelas rimas “úteis” à luta política, com algum Alegre já à mistura, muito influenciado por António Cabral. Um dia de 1968, no Café Diu, no Porto, um amigo “apresentou-me” Alexandre O’Neill. Era a reedição do “No Reino da Dinamarca”, com mais poemas do que a edição original. Fiquei deslumbrado. Foi só a partir dali que percebi que a poesia podia ser outra coisa. Tinha pouco dinheiro, comprei com esforço o livro na Unicep (a cooperativa livreira dos estudantes), li-o sem o “usar” muito e, com uma dedicatória foleira, ofereci-o, semanas depois, no dia do seu aniversário, à minha namorada de então. Como ela continua a ser a mesma hoje, consegui recuperar o livro, que ainda ali anda na estante. E a que, muitas vezes, quando me apetece sentir bem, volto.

quarta-feira, abril 29, 2020

Brasil


Esta foi a única imagem que me chegou, depois de ter sido conhecida a decisão de um juíz do Supremo Tribunal Federal do Brasil de obrigar Jair Bolsonaro a recuar na sua decisão de nomear um amigalhaço dos filhos para chefe da Polícia Federal, mantendo-o, no entanto, à frente da Abin, os serviços secretos do país. O nome do rejeitado é Ramagem.

Procurar o cretino

Estranho muito que, neste tempo em que os velhos estão “na berra”, nenhum órgão de “comunicação social” se não tenha lembrado de colher a opinião do crânio inventor do conceito de “peste grisalha”. Todos sabemos por onde ele anda...

Um banho de realidade

Num comentário no Facebook, contei hoje que, a um crédulo colega de universidade, conseguimos um dia convencer que o pequeno anúncio luminoso “Exit”, que se via nas portas de emergência dos teatros, assinalava as saídas destinadas aos atores que, no final da ”performance”, tivessem um “êxito” bem reconhecido pelo aplauso do público. O rapaz era um tanto saloio e, na hora, engoliu a patranha.

Isso passava-se no Lar Gomes Teixeira, na rua da Torrinha, no Porto, na segunda metade dos anos 60 (vale a pena dizer que era no século passado?). Aquele colega, por artes ou por antiguidade, tinha conseguido um dos poucos quartos individuais do lar, com janela para a rua, à esquerda de quem entrava.

O António Novo, que por aqui me lê e que, tal como eu, era utente dessa casa, com algum esforço de memória lembrar-se-á da personagem, que vivia sozinho e não se relacionava com ninguém.

A higiene, ao que se constatava, não era o “forte” daquele colega. Do seu quarto exalava, quando a porta se entreabria, um odor pestilento, sinal de sujeira acumulada. A Lucinda, a empregada da limpeza, terá mesmo confessado que se recusava a lá ir, destacando, para essa ingrata função, o Moisolindo, o porteiro.

Numa noite de conversa, sem esse colega presente, veio à baila o odorífico tema, tendo alguém feito notar que ele nunca tinha sido visto na zona dos banhos, que se passavam numa zona do primeiro andar. Outros adiantaram: “Ele cheira sempre mal!” Daí à constatação de que “ele nunca se lava!” foi um passo breve. E um plano de ação foi montado: ele iria ser forçado a um banho! 

Já não me recordo como é que o bisonho personagem foi atraído, no dia seguinte, ao primeiro andar, mas tenho bem presente o instante em que quatro ou cinco colegas sobre ele caíram e o arrastaram para o chuveiro. 

O rapaz berrava, urrava impropérios, o banho nem sequer foi completo, porque foi impossível arrancar-lhe todas roupas. A cena, de que fui mero assistente à distância, dado o meu estatuto de caloiro, tinha o seu quê de crueldade, de violência, com alguns de nós a termos pena da vítima, cuja rutura pessoal com a generalidade dos colegas se consumou naqueles breves instantes. 

Foram, de facto, breves mas foram imensos os minutos de humilhação que o rapaz sofreu. No termo do exercício, mais do que furibundo, silencioso de raiva, lembro-me de o ver agarrar nas roupas e descer as escadas, a refugiar-se no seu tugúrio, quiçá para recuperar os odores perdidos na ablução que lhe fora imposta. O ano letivo estava a terminar. O lar iria depois ser encerrado, por um cúmulo de variadas razões, por algum tempo. Nunca mais voltei esse colega.

Não vale a pena estar agora a perder agora tempo com juízos moralistas sobre o episódio, terreno em que os frequentadores das redes sociais são reconhecidos peritos. É óbvio que foi uma cretinice, mas os factos foram o que foram, nesse ano de 1967.

O valor das palavras

Toda a vida pensei que “calamidade” era uma situação pior do que “emergência”. Afinal, não é. Vamos sair da “emergência“ e passamos, com mais alegria, à “calamidade”.

Pergunto-me agora: no dia em que o estado de “calamidade” acabar, poderemos, enfim, vir a dar-nos por felizes quando entrarmos na “tragédia”?

A língua portuguesa é muito matreira.

Respeito pelo outro


Faço parte dos portugueses que, embora confinados em casa já para além dos 40 dias que associamos à ideia de quarentena, não estão deprimidos com a situação em que atravessam. A mim, basta-me pensar em quantos vivem em casas minúsculas, com crianças, em ambientes marcados por tensões e carências, para logo me sentir na obrigação de estar feliz.

Por essa razão, quando leio, nesse “muro das lamentações” são as redes sociais, pungentes relatos de gente que, como eu, tem a sorte de poder ter acesso a um quotidiano de relativo conforto, a clamar por “liberdade” e quase a invocar o direito de resistência para incumprirem com o que lhes é recomendado, apetece-me dizer alto algumas inconveniências.

A pandemia, na sua aparente “democraticidade” - porque o vírus pode afetar qualquer um - é um fator potenciador das desigualdades. Como referi, nem todos temos o mesmo conforto, nem todos temos garantido, no final do mês, o salário depositado na conta. Muitos ficaram, de um instante para o outro, sem emprego. As condições sanitárias em que vivem, às vezes em ambientes de convívio familiar e social muito precários, não permitem garantir um mínimo de precauções de higiene, que limitem os riscos de infeção. Os que, trabalhando, se deslocam em transportes públicos, regressando ao final do dia ao espaço familiar, que garantias de isolamento e proteção têm? Penso, às vezes, nos milhares de estrangeiros que enxameavam a restauração hoje fechada: como estarão a viver, eles que sobreviviam em camaratas de miséria, para mandarem, no final do mês, uns euros às famílias no Nepal, no Brasil ou no Bangladesh?

Sabemos que cada um vive a sua própria realidade e que não é legítimo impormos a nossa perspetiva aos outros. Acho, contudo, que é nestas alturas, em que as tensões nos põem à prova, que o pior e o melhor de cada um de nós vem ao de cima. Temos visto casos de gente preocupada com a sua vizinhança, com sentido de entreajuda e procurando ter gestos de cuidado solidário. Como também por aí se observam atitudes de egoísmo, de falta de cuidado, de desprezo pelas condições sanitárias mais elementares.

Todos prezamos a nossa liberdade, todos estamos – nem vale a pena confessar – fartos destas semanas de “prisão domiciliária”, desejosos de regressar às nossas rotinas. Mas é nestas ocasiões, em que estamos todos no mesmo barco, embora uns em camarotes e outros em camaratas, que temos obrigação de sermos estritamente iguais no respeito cívico a todos exigido.

Os livros da vida (3)


Tenho hoje a plena certeza de que o meu profundo desprezo pela competição pessoal, uma atitude de que nunca me afastei ao longo de toda a vida, saiu muito reforçado pela leitura do “Que faz correr Sammy?” Lembro-me de ter lido uma súmula da obra nas “Seleções do Reader’s Digest” (já sem “c”, porque era a edição brasileira) e que, quando um dia vi surgir o livro, nesta edição da “Ulisseia”, na biblioteca do meu avô, o devorei em pouco tempo. Foi, depois, um livro que recomendei a muita gente. Contrariamente àquilo que só vim a perceber mais tarde, não tinha ficado minimamente marcado pela origem judaica de Sammy, bem como de outras figuras do livro. O que então me perturbou, e muito, foi perceber que a América era uma sociedade onde o espezinhar do “vizinho” era uma receita para o sucesso, e que isso era tido, de certo modo, como fazendo parte do “jogo”. Sammy foi uma figura da ficção que me inoculou uma rejeição, que depois passou em mim para a política, ao capitalismo selvagem - que passei, um tanto simplisticamente, a identificar com a América e com o liberalismo, na pior face que este tem.

As aulas do professor Nogueira

Os atestados médicos falsos são um cancro no mundo do trabalho. O absentismo é uma prática tolerada, com prejuízo de quem cumpre o seu dever. Todos os governos se acobardam. 

O sindicalista Nogueira já avisou: se os professores não quiserem ir trabalhar, basta meterem atestado!

terça-feira, abril 28, 2020

De quem é o 25 de Abril

Andou para aí um debate sobre “de quem é o 25 de Abril”. 

A resposta é bem simples: o 25 de Abril é de quem o celebra, de quem o canta, de quem lhe grita as palavras de ordem, de quem, todos os anos, dá nova vida aos seus símbolos. 

E, claro, não é dos outros. 

Está percebido?

Os livros da vida (2)


Não tenho a menor dúvida de que este foi um livro fundamental na minha vida. Andei a namorá-lo durante uns dias na montra do Libório, o mais antipático dos livreiros de Vila Real - também eram só quatro, todos na Rua Direita! O preço era relativamente elevado, o que fez com que tivesse de fazer um rapapé muito insistente junto do meu pai. Eu teria uns 14 ou 15 anos. Esta “Encyclopédie” mudou-me para sempre. Tinha o mundo na minha mão, passei a saber o que ninguém, lá por Vila Real, à época, sabia. Pelo menos, era o que eu pensava. Não me falhava uma capital, localizava as cidades mais estranhas, a profundidade da fossa de Mindanao ou a altitude de bizarras montanhas. E conhecia as moedas de todos os países. Já bandeiras, isso nunca foi o meu forte! Mas, com a “Petite Encyclopédie Géographique”, eu fazia um figurão! Já me tenho perguntado se este pequeno grande livro não foi, afinal, o grande culpado pelo meu “descaminho” profissional futuro.

segunda-feira, abril 27, 2020

Vasco Graça Moura


Li algures que passam hoje seis anos sobre a morte de Vasco Graça Moura. E apetece-me transcrever um texto que, no dia da sua morte, publiquei neste blogue:

“Vasco Graça Moura, que hoje desaparece, foi uma figura maior da cultura portuguesa, um brilhante obreiro da nossa língua, uma personalidade que nunca fugiu ao confronto das ideias - ele que as tinha fortes e bem estruturadas. Havia em Graça Moura uma curiosa dualidade, que ele sustentava, parecia-me, com algum prazer. Por um lado, o poeta, o tradutor, o ensaísta e o romancista (esta é a minha ordem pessoal desses seus méritos criadores), o espírito com laivos de genialidade de um intelectual sensível, possuidor de uma cultura quase renascentista, do melhor que Portugal produziu nas últimas décadas. Mas, no outro lado do espelho, havia o actor cívico (escrevo "actor" com "c", em homenagem ao opositor do Acordo Ortográfico que VGM foi), comprometido, usuário brilhante de uma escrita polémica, onde ressoava um quase caceteirismo cívico, muito ao gosto novecentista. Se VGM era um príncipe da escrita e na cultura, era também, num assumido contraste, um ferrabraz na política, embora, falado pessoalmente, estivesse sempre muito distante da ferocidade adjectivada dos seus artigos. O homem que esteve com Sá Carneiro e dele se afastou (e que dele se mantinha bem crítico) era, contudo, o mais improvável turiferário de uma figura como Cavaco Silva, depois de ter arrastado a asa a esse ridículo projeto de moralismo político que deu pelo nome de PRD. Ora se havia coisa que, de VGM, ressaltava à distância esse era o seu desprezo profundo pela mediocridade, pela pusilanimidade, pelo oportunismo, pelo Portugal mesquinho dos que não conseguem deixar de ser bem "pequeninos". Como é que, dentro de si, ele compatibilizava os olhares, críticos ou complacentes, sobre tudo isto? Talvez nunca o venhamos a saber. Embora tivesse falado muitas vezes com VGM, estava muito longe de o conhecer bem. Muita coisa nos separava politicamente e outras opções, noutros domínios, não contribuíam para nos aproximar, pelo que sempre tivemos uma relação pessoal marcada apenas por uma educada cordialidade. Mas tinha por ele um grande respeito e uma forte consideração intelectual. Há semanas, dei aqui conta de um seu excelente ensaio "A identidade cultural europeia". Esta minha última homenagem a VGM é uma sugestão para que o leiam, porque nele está o essencial da sua visão para Portugal e para esta aventura continental a que o destino nos impele. Porque Vasco Graça Moura era, essencialmente, um patriota português e isso não se improvisa: sente-se e sofre-se.”

Os livros da vida (1)


O meu amigo Luís Castro Mendes desafiou-me a colocar no Facebook as capas de 10 livros da minha vida. Fá-lo-ei, ao ritmo de um por dia, republicando aqui os posts.

Não serão “os 10 livros da minha vida”, mas apenas 10 títulos que, em fases diferentes da minha vida, foram importantes para mim. Alguns deles, nos dias de hoje, pouco ou nada me dizem, mas nós também somos aquilo que fomos.

Aqui fica o “Platero e eu”, que um tio me ofereceu, teria eu aí uns dez anos, com uma imensa e carinhosa dedicatória. Não me foi fácil ler o livro, recordo, o que apenas fiz com a ajuda do meu pai. Só numa mais cuidada releitura, muitos anos mais tarde, percebi que Jimenez ia bastante mais longe do que aquela escrita, que então tive apenas por ternurenta, parecia indiciar.

Vítor Nogueira


Vitor Nogueira é um poeta de Vila Real. É um intelectual de muitas e diversas artes, do teatro à bibliofilia militante.

Lembrei-me agora de um poema seu, “Sapataria” de um pequeno livro de 2008, intitulado “Comércio Tradicional”.

Na leitura que dele tinha feito, ficaram-me uns versos desse poema, que ajudam a ilustrar a conjuntura:

Poderemos ser felizes
num espaço confinado?
Digamos que conheço um homem
que consegue atravessar paredes.
Pequenas coisas que se fazem para 
garantir que não estamos no inferno.”

A outra imprensa rosa


Comprei o “Financial Times”, o FT, este fim de semana. Por muitos defeitos que tenha, é um extraordinário jornal. Mas só o compro às vezes. Sai-se sempre mais “rico” depois de o ler, embora não seja barato. E, por estes dias, não é muito útil o belo suplemento dos sábados, “How to spend it”, que ajuda a perceber onde quem é realmente rico gasta o seu dinheiro.

Uma tarde, também de sábado, nos anos 90, em Londres, fui ao mítico e já desaparecido velho estádio de Wembley, para ver uma final da Taça de Inglaterra. Apanhei o metro, metido na fauna dos apoiantes das duas equipas, que, por essa hora, ainda estavam no tempo de relativo sossego que, por lá, antecede as grandes partidas. O ambiente era galhofeiro, sem agressividade, embora com muitas "bocas", a maioria num intraduzível "cockney".

Alguns, embora escassos, viajantes liam tablóides, tipo "Sun", "Today" ou "Daily Mail". Jornais pequenos, comparado com os “broadsheet”. Distraído, recostei-me num banco e deliciava-me com o FT do dia. Não me tinha dado conta que, naquele ambiente, ter nas mãos aquele imenso jornal cor-de-rosa era quase tão natural como ler "O Diabo" num "centro de trabalho" do PCP.

A certo ponto da viagem, percebi que alguns olhares convergiam sobre mim. E algumas "bocas" também. Até que um grandalhão, vestido a rigor de apoiante de clube, me espetou o dedo no jornal e inquiriu: "Hey, bud! What the hell are the pink sheets you're reading?". A situação não era fácil. Dar explicações era descabido, recolher o jornal seria cobardia. Já havia um público para a cena. Com um sorriso amarelo, saiu-me: "Wanna see the weather forecast?". Não estava seguro de ter sido a melhor deixa, mas foi o que me saiu. Para meu imenso alívio, o grandalhão sorriu. E lá seguimos para mais uma "Cup Final". No regresso, com metade do metro zangado com o mundo, viajei prudentemente com o FT debaixo do braço.

Há dias, na net, descobri que há mesmo dicas sobre como dobrar o FT do fim-de-semana, mesmo sem o suplemento! Elas aqui ficam.

Confesso os figos

Ontem, uma prima ofereceu-me duas sacas de figos secos. Não lhes digo quantos já comi. Há poucas coisas no mundo gustativo de que eu goste m...