quinta-feira, março 08, 2018

RTP


A RTP fez ontem 61 anos.

Desde há algum tempo, passei a integrar o Conselho Geral Independente (CGI) da empresa. Sou, como todos os outros cinco membros, inamovível até ao final do meu mandato de seis anos, salvo em circunstâncias muito excecionais. É o que a lei prevê, como forma de preservar a independência do órgão, procurando isentá-lo dos ciclos políticos.

Ao longo dos últimos meses, tenho acompanhado, com os meus colegas, a vida interna da RTP, tendo falado com todos os responsáveis da rádio e da televisão públicas, tomando conhecimento dos respetivos problemas e anseios. Foram algumas dezenas de horas de estudo de dossiês e de análise da situação interna da empresa.

(Quando se fala de RTP, há a tendência de se pensar apenas na televisão. Ora a RTP, que hoje já não é "Radiotelevisão portuguesa" mas sim "Rádio e Televisão de Portugal", abrange também importante realidade que vive sob a sigla RDP).

Executo esta tarefa “pro bono”, isto é, sem receber a menor compensação financeira. Aceitei o cargo por um mero dever cívico, pela importância que pessoalmente atribuo à necessidade de um serviço público de rádio e de televisão de qualidade e à possibilidade de, à medida dos meus conhecimentos e experiência profissional e de vida, poder para isso dar o meu contributo.

As funções do CGI são “simples”: nomear e exonerar as administrações da RTP e definir, através da fixação de “linhas estratégicas”, o quadro de referência do trabalho da administração para o seu triénio de mandato, velando, em permanência, pela sua execução e verificando, muito em particular, o modo como a televisão e a rádio públicas executam as obrigações de serviço público que decorrem do respetivo contrato de concessão.

Contrariamente ao que alguns possam pensar, não cabe ao CGI nomear, para além da administração, quaisquer outras pessoas no quadro diretor da empresa, nem, naturalmente, intervir na orientação dos programas ou da informação dos canais. 

O dia-a-dia da empresa é-nos relevante no seu todo - seja nos conteúdos, seja nos recursos humanos e financeiros, seja no equipamento - mas o CGI não está vocacionado para o “micro-management” da empresa, que cabe à sua administração, a qual responde perante ele. 

Ao final destes meses, em que passei a estar bastante mais atento às várias dimensões da RTP e da RDP, devo dizer que cheguei a uma conclusão clara: é notável o trabalho que vem sendo realizado pelos profissionais da empresa, em especial se atentarmos os meios de que dispõem e as muitas limitações que hoje afetam a funcionalidade da empresa. Que se impõe que sejam corrigidas, a bem da qualidade do seu "produto".

A minha experiência no CGI tem sido muito interessante. Seis pessoas com “background” muito diverso, oriundas de vários e diversificados setores da sociedade portuguesa, que respondem apenas perante o currículo que levou à sua seleção, sem a menor agenda para além do seu interesse em servirem o interesse público, decidem com uma total liberdade e independência, no quadro de um modelo de governação pouco comum.

As decisões do CGI, porque têm implicações fortes no espaço público, não são necessariamente consensuais, isto é, correm sempre o risco de serem lidas de modo diferenciado pelos múltiplos agentes que atuam nesse mesmo espaço público. É da lei da vida e assim tem acontecido - quer por parte de quantos se preocupam legitimamente com o futuro da RTP, quer no tocante aos detratores da empresa, mais ou menos vinculados a interesses que combatem o serviço público. 

Alguns desses agentes colocam também em causa a bondade do modelo de governação, em vigor desde há três anos, isto é, a legitimidade da própria existência do CGI. Cada um tem o direito de pensar o que entender. Essa é, contudo, uma questão que apenas compete a quem tem a responsabilidade de “desenhar” o quadro normativo e regulatório da RTP, isto é, os poderes públicos democráticos, em especial a Assembleia da República. O CGI limita-se a atuar no quadro legislativo que lhe foi criado e que o regula.

A RTP fez 61 anos. De Camilo de Mendonça, o seu primeiro presidente em 1957, a Gonçalo Reis, que atualmente preside ao seu Conselho de Administração, a RTP (e também a RDP e a sua antecessora Emissora Nacional) passou já por tempos muito diversos, alguns bem convulsos, grande parte deles extremados pela polarização político-partidária. Em tempos revolucionários, mas não só.

Tenho a desvantagem de olhar hoje a realidade da empresa sem grande distância, mas atrever-me-ia a dizer, à luz do que tenho ouvido, que raramente nela se viveu um tempo, como foram os últimos três anos, em que a empresa pôde funcionar com tão grande autonomia e a ausência de indevidas pressões externas. Se há um objetivo que julgo legítimo ter para o futuro esse será o de garantir que a RTP se mantém nessa mesma linha.

quarta-feira, março 07, 2018

Regresso ao passado


Já ali não entrava desde 1955. Como é que eu sei a data? É simples. Foi a primeira vez que vim a Lisboa, no “Foguete”, e fui, com o meu pai, ver um Portugal-Suécia. no Jamor, que o Google me diz que foi em 1955.

(O resultado não foi famoso: perdemos 6-2, com dois golos de José Águas a compensar os 6-0 que Costa Pereira “encaixou” logo na primeira parte. Ah! E jogámos com Matateu, para quem sabe quem foi. É claro que eu não recordo rigorosamente nada do jogo, a não ser, vagamente, o lugar do estádio em que estive).

Voltando à fotografia. Mostra a janela de canto de uma sala de um restaurante da moda, no Camões, aqui em Lisboa, onde hoje almocei. 

Como disse, a última vez que ali tinha entrado foi em 1955. Para uma consulta médica. Eu estava com icterícia. Fiquei “de molho” uns dez dias, em casa de uns primos, na Rua da Paz, entre bifes e um “Mecano” que me enchia os dias. Não faço ideia se a consulta foi naquele andar, se o ”Litrison” terá sido receitado (para o fígado era sempre “Litrison”, não era?) naquela mesma sala.

Mas por que diabo ele vem agora com esta não-história?, perguntará o leitor enfadado deste post. Porque isto são redes sociais, lugar geométrico de tudo aquilo que nos vem à mona e nos dá na veneta contar. E vão com muita sorte em eu ainda ter uma fotografia do dia cinzento. É que podia empanturrá-los com florzinhas ou pensamentos profundos de filósofos da auto-ajuda. Por isso, não se queixem, está bem?

(Nota para curiosos: uma das varandas que a fotografia mostra pertence àquele que é, porventura, o mais “secreto” clube privado de Lisboa. Estive lá há dias, como convidado, mas não posso dizer o nome, desculpem lá!)

O triângulo patético

Será que algum dia os portugueses terão possibilidade de se libertar do triângulo mediático obsessivo a que os noticiários televisivos reduzem o país: política, futebol e “o que corre mal”? 

Será que, afinal, não se passa mais nada neste nosso canto da Europa? 

Regresso em força do “whataboutism”

Já por aqui se falou do “whataboutism”, um conceito anglo-saxónico criado na Guerra Fria mas que, com o tempo, passou a merecer uma utilização bem mais alargada.

Em que consiste? É muito simples: alguém acusa alguém da prática de um determinado ato e este, ou uma pessoa por ele, vai logo buscar, como resposta, outros casos tidos por comparáveis (“and what about...?). A questão já nem é desmentir em absoluto o facto praticado. Tenta-se “absolvê-lo” com a invocação de outros casos de natureza equiparável, procurando com eles gerar um ambiente atenuante para o primeiro caso.

Em português, é quando, perante uma determinada acusação, surge o “Ai é? E então no caso do...?”. Mais linearmente: “Sou vigarista por ter feito isso? Mas tu não disseste nada no caso do...” É sempre uma resposta pobre e basicamente retaliatória, logo desonesta, como argumento. 

Perante uma acusação, a medida da gravidade de um ato deve ser encontrada nesse ato e não numa espécie de “jurisprudência” de delitos. 

Por estes dias, nesse mundo sinistro do pessoal do futebol, o “whataboutism” está a ter horas gloriosas.

terça-feira, março 06, 2018

A asa do Letra



Entre nós, o aeromodelismo foi, por muitos anos, uma atividade com bastantes cultores. Mas não faço ideia como é que as coisas de passam nos dias de hoje. Em Vila Real, recordo-me de que os “furiosos” da construção desses pequenos aviões de madeira, forrados a papel muito fino, trabalhavam numa sala à esquerda de quem entrava no edifício da Mocidade Portuguesa, onde é hoje o Arquivo Distrital, ao fundo da rampa do Calvário. 

O cheiro das longarinas de madeira de balsa, somado com o das colas, ainda vive arquivado na minha memória odorífera. Esse era um trabalho que implicava grande persistência e atenção. Recordo-me de os ver serrar a madeira com instrumentos muito delicados, com precisão milimétrica, tudo depois afinado com lixa e limas muito bem ordenadas, com as delicadas peças a serem depois preservadas com muito cuidado, para a montagem final, feita de encaixes rigorosos, com um total equilíbrio do modelo.

Por um tempo, até porque vivia nas imediações, também andei por lá, fiz uns ensaios, mas, rapidamente, desisti: a precisão, a paciência, o tempo, o cuidado necessário a este tipo de trabalho não “rimava” com a minha proverbial e eterna inconstância. Tinha “mais que fazer”, nessas horas que teria de alocar àquela tarefa, para fazer qualquer coisa de jeito. Mas, devo confessar, senti sempre uma grande admiração por quantos se dedicavam ao aeromodelismo, com uma pena eterna por não ser um deles. (Há duas outras atividades que lamento nunca ter tentado: radioamadorismo e encadernação - fica feita a confissão).

Um dia do final dos anos sessenta, embarquei na “carreira” do Cabanelas, em direção ao Porto, cuja universidade frequentava. Já sentado, vi entrar um colega de liceu, o Letra, com um avantajado avião na mão, fruto do seu trabalho de aeromodelismo, lá pela Mocidade. Ia, com toda a certeza, a caminho de uma competição. Os olhos de todos os passageiros convergiam na “aeronave”, de cores berrantes, que, com todo o cuidado, o Letra fez “voar” com a mão sobre os bancos, até chegar ao seu lugar. Os autocarros não eram, à época, muito confortáveis nem espaçosos, pelo que a tarefa do Letra, para garantir que o avião chegava incólume ao Porto, não se presumia fácil nem cómoda.

À época, as minhas relações pessoais com o Letra não eram as melhores. Num dia de neve, no pátio do liceu, ele tinha-me atirado uma bola de neve que me deixaria um olho negro, levando, da minha parte, a uma reação violenta, que acabou numa troca de socos. O episódio já fora há três ou quatro anos, mas tínhamos deixado de falar. Mas, nem por isso, aquela aventura “auronáutica” do Letra deixava de me ser simpática. Era, de facto, um belo aeromodelo!

Mais de três horas passaram, com as curvas do Marão de permeio, seguidas da paragem tradicional no Arquinho, em Amarante, para “meter alguma coisa”, no Príncipe. A trombuda mulher das regueifas, com o seu bigode de marca, fizera entretanto a sua rotineira passagem pelo corredor da camioneta, na venda à passagem em Valongo. Estávamos, finalmente, a chegar ao Porto. À entrada na garagem, à chegada à Batalha, ainda o autocarro não estava estacionado e já quase toda a gente se tinha levantado dos lugares, retirando as sacas e outros pertences, morta por colocar um ponto final naquela longa e cansativa viagem. 

Foi então que o pior acabou por acontecer: ao tirar uma saca, do espaço para bagagens sobre os bancos, completamente desastrado, passei uma “secante” à asa do avião do Letra, rompendo-a da carlinga e deixando-a pendente pelo papel vegetal a que estava colada. O Letra rugiu uma imprecação audível em toda a camioneta e o seu olhar fuzilou-me, com (compreensível) ódio, vendo talvez no meu gesto um desproporcionado desforço ao pretérito episódio da bola de neve. 

Eu estava mais do que embaraçado. Tudo não passara de um infeliz azar. Balbuciei umas desculpas atrapalhadas, que era tudo o que me saía. Não tinha havido, da minha parte, a menor intenção no gesto descuidado que tivera. Isso não impediu que tivesse saído do autocarro dabaixo de sobrolhos carregados de alguns passageiros, bem chocados com a minha indesculpável incúria. Imagino como reagiriam se soubessem do meu anterior conflito com o pobre aeromodelista! 

Dele, do Letra, que muito provavelmente falhou o campeonato por minha causa, guardo uma última imagem: o seu ar desencantado, dentro da camionete, através dos vidros, olhando o resto do avião pousado nas suas mãos.

Saí “de fininho” da garagem do Cabanelas, rumei ao Lar Universitário onde me alojava e nunca mais na vida voltei a ver o Letra. E nunca lhe pedi suficientes desculpas. Mas o rebate de consciência ficou-me para sempre.

segunda-feira, março 05, 2018

Renzi


Ainda há escassos meses Matteo Renzi era uma imensa “esperança” para a Europa do futuro.

Demitiu-se, há pouco.

Isto anda tão depressa...

‘Investimento público”



“Investimento público” é uma expressão que convoca sentimentos interessantes. E contraditórios.

Por muito tempo, quem nisso falasse era colado a despesismo, dívida pública, resgate, Sócrates e outros “diabos” recorrentes.

Um dia, chegou a S. Bento António Costa. E, afinal, o “diabo” não veio. A pergunta, feita pelos mesmos que antes se alimentavam politicamente da tragédia, anda aí agora: “Então não há investimento público?”.

“Quem lhes atasse um arado!”, como se dizia na minha terra para certas “aves”...

Os nossos Óscares


Não foi há muitos anos, mas já lá vai muito tempo, “if you know what I mean”. No bar Procópio, essa ímpar instituição lisboeta de copos, conversas & companhias, um seleto júri decidia anualmente a atribuição de uma mão cheia de “Procópios”, oferecidos a figuras que se destacavam no teatro, no cinema, no jornalismo, na literatura, na televisão, etc. E até na política. Havia uma festa, sem passadeira vermelha, onde eram entregues esses prémios. Eram belos, esses dias! 

“Sedona” Alice Pinto Coelho: agora que o turismo sopra o seu vento de cifrões, fazendo andar o barco na boa direção, não seria de se arranjar um “sponsor” (eu trato disso!) para se voltarem a fabricar as estatuetas da autoria do nosso genial António Antunes? Back to business? 

Democracia na Europa


Há poucas horas, a convite da Fundação Calouste Gulbenkian, integrei um grupo que discutiu o tema “Fortalecer a Democracia na Europa”, sob a moderação de Vitor Martins, antigo secretário de Estado dos Assuntos Europeus.

Foram cerca de três horas de excelente e útil debate, sobre um tema nada fácil, muito polémico, mas essencial.

Do painel de convidados faziam parte Pieyre-Alexandre Anglade, deputado francês especialista em assuntos europeus, Miguel Poiares Maduro, professor universitário no Instituto Europeu de Florença e antigo ministro, e Laurent Cohen-Tanugi, vice-presidente do Instituto Jacques Delors. 

A Conferência foi aberta por Isabel Mota, presidente da Gulbenkian, seguida do vice-presidente da Comissão Europeia, Frans Timmermans, tendo sido encerrada pelo antigo PM italiano e atual presidente do Instituto Jacques Delors, Enrico Letta, e pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva.

O tema central da Conferência prendia-se com os desvios aos princípios europeus - em matéria de democracia, Direitos Humanos, respeito pelo Estado de direito, liberdade dos media, etc, que hoje se verificam crescentemente em alguns Estados da União, refletindo sobre o modo como este tema deve ser tratado a nível europeu e nacional.

Foi uma bela discussão. Devo dizer, com franqueza, que raramente dei por tão bem empregue o meu tempo.

domingo, março 04, 2018

A novidade


No dia de hoje, fala-se muito da fórmula de governo encontrada para a Alemanha, para os próximos quatro anos: será uma coligação entre os conservadores da CDU e os social-democratas do SPD.

Tenho a sensação de que, depois de todos estes meses de discussões, há muita gente que já nem se recorda de qual é a “coloração” do governo que continua no poder na Alemanha, há bem mais de quatro anos. Eu lembro: CDU-SPD...

O acagaçado


  

Naquele ano de 1984, o embaixador de Portugal em Angola, António Pinto da França, decidira fazer uma deslocação oficial a Benguela, onde tínhamos um consulado e uma significativa comunidade. Eu acompanhá-lo-ia. Ao saber dessa ida, um empresário português, de seu nome Pena, proprietário de uma avioneta, piloto com grande experiência desde o tempo colonial, ofereceu-se para nos levar na viagem de ida, sendo o regresso feito num voo regular pela TAAG. A paisagem única que esse voo privado proporcionava era o principal aliciante. 

Em regra, não tenho o menor medo de viajar de avião. Já experimentei companhias aéreas bem “sinistras”, já usei cintos de segurança que se apertavam com um nó, vi portas de aeronaves que fechavam com mecanismos improvisados, durmo que nem um anjo com turbulência. O meu grande receio é sobreviver num acidente, pelo “estado” em que posso ficar depois de “aterrar”. Mas aquela ida a Benguela não me estava a “cheirar bem”.

O Arlindo era um piloto de helicópteros da Força Aérea portuguesa, que eu conhecia dos tempos do MFA e que, por esses anos, estava a trabalhar em Angola. Numa das noites anteriores à viagem, tive-o a jantar na minha casa de Luanda. Quando lhe contei a aventura em que estava prestes a embarcar, alarmou-se: “O quê! Num monomotor? Sobre a ‘banheira’? Vocês são malucos!”

Não percebi o que ele queria dizer com aquilo da “banheira”. Com um mapa de Angola em frente, explicou-me. Um avião daquele tipo voava a uma altitude relativamente baixa. Porque, na zona entre Luanda e Benguela, havia várias regiões com forte presença da Unita, cujos guerrilheiros podiam ser tentados a mandar umas rajadas de metralhadora para o aparelho, o mais provável era o piloto decidir “cortar” pelo caminho mais curto, pelo meio do mar, pela “banheira”. Ora isso seria muito arriscado, porque um monomotor, se acaso tivesse uma avaria, despenhava-se, sem apelo nem agravo, no Atlântico. “Eu, se fosse a ti, nem ia nem deixava que o embaixador fosse”.

No dia seguinte, procurei convencer o António Pinto da França da insensatez da viagem. Qual quê! O seu espírito aventureiro estava já mobilizado e nada o demovia. E riu-se das minhas preocupações.

Nessa tarde, por um acaso, o Pena vinha ver-me ao meu gabinete, por um outro assunto. Decidi então inventar uma mentirola inocente. Disse-lhe que o embaixador se me mostrara algo preocupado com um eventual trajeto sobre o mar, mas que não lhe queria dizer isso diretamente, para não parecer que estava a pôr em causa o seu sentido de responsabilidade. Assim, tanto quanto possível, e para o sossegar, pedia-lhe que a viagem fosse sempre feita sobre a linha de costa. (Eu, cá por mim, “preferia” um tiro da Unita aos dentes dos tubarões). Mas pedia-lhe que o assunto ficasse “entre nós”. O Pena acedeu, sem especial reação e eu fiquei menos ansioso.

Dias depois, o embaixador e eu, com as respetivas mulheres, bem como a adida comercial da embaixada, Élia Rodrigues, lá fomos no pequeno avião do Pena, a caminho de Benguela. Eu ia ao lado do piloto, com os quatro passageiros atrás. A viagem corria normalmente, com ele a mostrar-me, divertido, umas praias onde, no passado, tinha aterrado de emergência... Comecei, contudo, a inquietar-me, e mais nervoso fiquei, quando, a certa altura, o vi guinar bem para cima do mar, distanciando-se da costa, provavelmente para evitar alguma zona tida como perigosa em matéria de segurança.

“Ó senhor Pena! Veja lá não se afaste muito!”, alertei. Ele então voltou-se e, falando sobre a barulheira do motor, berrou, lá da frente, para o António Pinto da França: “O senhor embaixador importa-se que eu fuja um pouco da costa, por uma meia hora?”. Eu estava furibundo e mais fiquei quando ouvi o meu embaixador responder: “O amigo Pena é que sabe! Tenho plena confiança em si.”

O Pena percebeu, nesse segundo, quem é que, na realidade, tinha dúvidas sobre a opção do trajeto. E voltando-se para mim, disse: “Afinal, parece que o ‘acagaçado’ aqui é o senhor doutor...”

Olhar o mundo


No “Olhar o Mundo” desta semana falo sobre a corrida armamentista, analiso uma entrevista do ministro russo dos Negócios Estrangeiros, Sérgio Lavrov, com notas sobre as eleições na Itália, os problemas do Brexit, o governo futuro na Alemanha, as confusões na Casa Branca de Trump, os dissídios entre os EUA e o México, a guerra no Iémen, os desafios do novo presidente sul-africano Ramaphosa, o recrudescer de atividade do Boko Haram na Nigéria, a concentração do poder na China e a intervenção militar na ordem pública no Brasil.

O programa pode ser visto clicando aqui.

sábado, março 03, 2018

Regresso


Há precisamente 50 anos, abandonei o curso de Engenharia Eletrotécnica, na Universidade do Porto, que tinha frequentado durante dois anos. Aquela não era, decididamente, a minha vocação.

Hoje, em Vila do Conde, “regressei”: a convite da direção da Faculdade de Engenharia, fiz uma palestra, integrada num seminário de reflexão estratégica, sobre os desafios globais, europeus e nacionais. Falei aos quadros superiores daquela Faculdade sobre as interrogações que se colocam ao nosso futuro coletivo. 

Comecei por dizer que nem sempre prever o futuro é uma arte assim tão difícil: por exemplo, sei muito bem qual vai ser o destino do (meu) Sporting na Liga...

sexta-feira, março 02, 2018

CDS


Tenho alguns bons amigos (poucos, mas mesmo bons!) que são militantes do CDS. Tenho também - é pura verdade! - um reconhecimento sincero ao CDS pelo facto de, no pós-25 de abril, ter dado acolhimento pré-constitucional a alguma direita que a Revolução deixara tresmalhada e que então se sentia tentada a desvios violentos à nova ordem. 

(Alguns dos meus amigos políticos dirão que algum CDS acabou por consumar essa deriva. E têm razão. Mas, nesse caso, para serem coerentes, terão de contabilizar os setores do PPD, e até do PS, que se deixaram levar nessa onda, do MDLP político ao bombismo assassino. E, já agora, nesse mesmo “barco”, devem incluir alguns incensados militares de abril. É melhor não abrirmos o livro, está bem?)

Hoje, no voto parlamentar de pesar pela morte do coronel Varela Gomes, quatro deputados “centristas” (adoro este eufemismo; melhor só o impagável conceito de “centro-direita”) abstiveram-se. (Ironia: o número “quatro” parece ligado historicamente ao CDS, desde o “partido do taxi”...). Os restantes votaram contra.

Com toda a sinceridade, quero saudar os deputados que votaram contra. Da mesma forma que, em 1976, tive admiração pelos parlamentares do CDS que se opuseram à aprovação de uma nova Constituição que apontava para o socialismo. Esses deputados do CDS de hoje, com toda a certeza, entendem que um revolucionário como Varela Gomes, conspirador contra Salazar e conspirador comprometido com quem tentou impor uma certa ordem no dia 25 de novembro, não merece um voto de pesar, na hora da sua morte. Foram coerentes, melhor, tiveram coragem para o serem. Coisa que outros, como os "abstencionistas" da mesma bancada (e talvez outros, noutras bancadas) não tiveram.

Posso estar enganado (e nunca saberei se o estou), mas tenho um pressentimento, no quadro de um óbvio paradoxo: se acaso João Varela Gomes ainda fosse vivo, teria bastante mais apreço pelos deputados que recusaram “chorar” a sua morte do que por quantos (e foram alguns, podem crer!) que a lamentaram apenas num gesto de mera hipocrisia.

Na Casa Branca?

Algures no ano de 1999, ao tempo em que era secretário de Estado, fiz uma deslocação de trabalho aos Estados Unidos, no quadro da preparação da presidência portuguesa da União Europeia, quer teria lugar no ano seguinte. Como é da natureza destas coisas, foi uma correria, com reuniões em Washington e Nova Iorque. 

Com o subsecretário de Estado para os Assuntos Políticos americano, Thomas Pickering, fui surpreendido pelo convite para encontrá-lo no Waldorf Astoria, em Nova Iorque, onde estava envolvido em contactos no âmbito da ONU. Aprendi então que o governo americano alugava ali sazonalmente uma ala para reuniões. Já não recordo a agenda dessa conversa, apenas tendo a certeza que foi limitada a questões europeias, que eram o meu “fonds de commerce”. 

Mas recordo bem uma palestra que então proferi a convite da New York University. Na presunção de um auditório generalista, eu tinha preparado uma apresentação num tom tecnicamente leve. Qual não foi o meu espanto quando deparei, nas perguntas, com uma audiência académica que sabia muito mais sobre as questões internas da União do que eu pensava ser comum por ali, o que deu origem a um debate bem estimulante.

Em Washington, as questões económicas, nesse tempo de arranque da Organização Mundial de Comércio, foram, ao que recordo, o centro das conversas. Havia também uma agenda de algum contencioso bilateral que não posso precisar. 

Por muito que isto possa hoje surpreender algumas pessoas, a coordenação que então fazíamos, na preparação da futura presidência, com os gabinetes do primeiro-ministro António Guterres e do ministro Jaime Gama, era levada à prática de um modo muito informal mas, há que convir, bastante eficaz. Viajávamos com total à vontade, estabelecíamos os contactos necessários, dentro das competências definidas, e tudo se passava sem problemas, com troca de notas. Tudo informado a posteriori.

Num desses dias de Washington, o programa incluía um encontro com um responsável económico da presidência americana. 

Minutos antes da reunião, o correspondente da RTP, Carlos Fino, que eu viria a encontrar como conselheiro de imprensa em Brasília, seis anos mais tarde, fez-me uma curta entrevista numa rua de Washington. Numa das perguntas, inquiriu o que é que eu ia “discutir na Casa Branca”. Lá respondi o que tinha de responder, mas aquele “Casa Branca” alertou-me.

O conceito, no jargão político-mediático de Washington, equivale a Presidência. Eu ia reunir com um departamento técnico dentro da presidência. Mas fiquei a pensar: à noite, no telejornal da RTP, ao ouvir-se o Carlos Fino referir que eu ia “Casa Branca”, lá por Lisboa, o ministro Jaime Gama, que provavelmente nem sabia que eu estava em Washington, ficaria a pensar que eu me tinha “passado”... E liguei-lhe. Jovial, Jaime Gama desejou-me bom trabalho “na Casa Branca” e... recomendou-me uma livraria de Washington que tinha visitado na sua última ida por ali.

Da conversa na tal “Casa Branca” retive uma história. A certo passo, respondendo a um qualquer comentário crítico do meu interlocutor sobre a União Europeia, acusada de dualidade de critérios em matéria de condicionalidade democrática, eu ironizei com o facto dos EUA serem muito estritos com o respeito pelos Direitos Humanos com alguns países e muito menos exigentes com outros, por razões de realpolitik. “Está a referir-se a Cuba?”, perguntou. “Sim, por exemplo. Não se vê idêntico rigor no tocante à Indonésia”. A resposta: “A geopolítica explica isso". E, talvez porque estivéssemos no departamento comercial da Casa Branca, acrescentou: "E há uns milhões de consumidores de diferença”.

Fiquei com esta nota de flexibilização de princípios, por virtude de interesses quantitativos de negócio, no ouvido. Anos mais tarde, num almoço em Ashgabat, no Turquemenistão, tive a falsa ingenuidade de perguntar ao embaixador turco por que razão não se juntava, como tinha acabado de saber, aos seus colegas da União Europeia, para protestar contra as arbitrariedades da ditadura local. A resposta: “Nenhum dos países deles tem negócios significativos por aqui. Há centenas de empresas turcas para as quais o Turquemenistão é um mercado muito importante”.

O pingo azul


Há uns tempos, contei por aqui uma historieta “com barbas”, sobre um pingo de solda. Hoje, vem de novo a propósito.

Uma senhora queixara-se à polícia de que dois trabalhadores, que tinham ido fazer um trabalho elétrico a sua casa, se tinham envolvido numa acesa disputa, com agressões e insultos mútuos, até que a senhora entendeu por bem chamar a polícia. Foram levados para a esquadra. Os visados estiveram muito longe de confirmar a versão da senhora. E um deles explicou, cândido: "As coisas não se passaram assim. O que ocorreu é que o meu colega, o Alberto, que estava no alto de uma escada que eu segurava, soldava uns fios. Inadvertidamente, sem a menor intenção, deixou escapar da máquina com que trabalhava um pingo de solda, incandescente, que me caiu no pescoço. Confesso que isso me incomodou um pouco! Daí que eu tivesse exclamado: "Ó Alberto! Vê lá se, para a outra vez, tens mais cuidado! Nada mais!" ".

Lembrei-me da óbvia plausibilidade desta história ao ouvir há pouco o “public relations” do Futebol Club do Porto a explicar a curiosa “coincidência” do clube ter liquidado quase 800 mil euros (que estavam “em atraso”, claro!) à distinta equipa do Estoril-Praia, precisamente uma semana antes da disputa do resto do jogo deste clube com o Porto. 

De vitoriosos na primeira metade do jogo (que havia sido interrompido), os jogadores do Estoril deram ares de estar na Praia a descansar, nesses segundos 45 minutos em que, com toda a ética de comportamento desportivo, se sacrificaram à vitória “andrade”. 

Mas isto tem graça, não tem? O Porto lembrar-se de que tinha uma dívida ao Estoril, precisamente nessa oportuna semana! Mas só a mentes malévolas e adeptas das “teorias da conspiração” ocorreria sugerir que os “estorilenses” foram ”oleados” e comprados para perder, não é? E se, na próxima época, houver jogadores dispensados do Porto a rumarem ao Casino, perdão, ao Estoril, a preços de saldo, é, com certeza, uma nova coincidência.

Esta é uma história do Pingo Azul ou sem pingo de vergonha! 

Tempos



Ontem de manhã,  numa aula numa universidade em Lisboa, arrependi-me de ter citado o nome de Valéry Giscard d’Estaing. Porque fiquei com a clara sensação de que, entre aquelas dezenas de jovens, muito poucos teriam ouvido falar do antigo presidente francês. E, de certo modo, dei comigo a achar normal que isso assim fosse.

Há dias, numa rádio, ouvi alguém contar que, tendo falado de Raul Solnado a um jovem, este perguntou de quem se tratava. Duvido que haja uma única pessoa que leia este meu texto que não conheça Solnado. Mas há que ser realista: isso também significa que quem o não conhece também não lê este tipo de artigos.

Há duas décadas, ao chegar a uma capital europeia, em conversa com o jovem diplomata que me tinha ido buscar ao aeroporto, perguntei se um antigo primeiro-ministro desse país ainda era vivo. Respondeu-me, sem rir: “Não sei, não é pessoa do meu tempo”. Passei a falar-lhe da recente transferência de um médio-ala de um clube de futebol local. Não era a sua especialidade. Também.

Fiz parte de uma geração que se interessava um pouco por tudo. Para além daquilo que o meu pai designava como “cultura de almanaque” (capitais, reis, rios, Estados dos EUA e coisas assim), não nos eram indiferentes outras dimensões culturais, como a história das ideias, embora tenha consciência de que esse “renascentismo” de trazer por casa, que nos fazia falar de cinema ou de literatura, de música à política, do futebol aos assuntos do dia-a-dia, tinha muito de informação “pela rama”.

Não tenho o direito de exigir aos setores supostamente educados das novas gerações que sigam esse mesmo padrão de conhecimento. Alguns dirão que é ridículo saber de cor o nome da moeda da Samoa, tendo o Google à mão. São seguramente os mesmos que, colocados perante a questão sobre “quantos são” nove vezes sete, subtraídos de 18, sacam logo da calculadora, porque já há maneira de evitar “contas de cabeça”. 

Seria útil colocarmo-nos a questão: valerá a pena saber essas coisas, quando temos cada vez mais informação acessível? É que, por muito que a internet possa ser enganadora, que as “fake news” abundem nas redes sociais, “está lá tudo” e, com algum cuidado, é sempre possível separar o trigo do joio.

Durante décadas, num tempo em que não havia internet, fiz parte de uma tertúlia onde às vezes se levantava uma discussão em torno do nome de uma atriz do filme X, do autor de um determinado texto, se um tal político tinha ou não ocupado um certo cargo. E, sem consenso, íamos para casa confirmar. O que tempo que perdíamos! Ou ganhávamos, não sei bem.

Os tempos mudaram? Claro. Mas ainda hoje gosto tanto de discutir se a falta do Gelson nos vai ser trágica logo à noite no Dragão, como saber quem era Zaratustra sem ir à net ou dizer de cor o nome antigo da capital da Gâmbia. Manias!

quinta-feira, março 01, 2018

Rios


“Há lá coisa mais bonita do que o marulhar deste rio!”, dizia-me o meu pai, enlevado com o mexer das ondas e eternamente convencido de que absorver a maresia que elas traziam era um eficaz antídoto contra os males invernais. 

Isto era dito lá por Viana do Castelo, em dias de clima zangado, com o rio Lima quase a atrever-se a chegar ao Hotel Aliança. 

Mas é claro que há coisas mais bonitas! 

Esta fotografia é de há pouco, de outro marulhar de ondas, à beira Tejo, um rio que ali se autoqualifica de mar, embora, ironicamente, “da palha”.

“Crónicas da Visão”




Tive o gosto de ver um texto meu - “O tempo e o medo” - incluído numa antologia de crónicas publicadas pela revista “Visão”, entre 1993 e 2018, numa edição comemorativa dos 25 anos da revista, que foi hoje distribuída.

Surjo nessa coletânea em belíssima companhia: José Saramago, Manuel António Pina, António Lobo Antunes, Eduardo Lourenço, Manuel Alegre, Dinis Machado, Eduardo Prado Coelho também Mário Soares, Jorge Sampaio, Marcelo Rebelo de Sousa, Maria de Lourdes Pintasilgo, Adriano Moreira e Ricardo Araújo Pereira, entre alguns outros.

Teresa Salgado



De Teresa Salgado não encontro nenhuma fotografia no Google. Tenho assim pena de não poder deixar aqui a imagem do seu belo e elegante sorriso. Soube pelo Lusojornal que morreu, há uma semana, em Paris, e que vai hoje para o Père Lachaise (onde está esta simbólica estátua).

Foi uma mulher que dedicou a sua vida à promoção da língua e da cultura portuguesa, em França. Trabalhou no Centro Gulbenkian em Paris desde 1967, vindo a ser diretora da respetiva biblioteca - a mais completa existente no estrangeiro, depois da do Real Gabinete, no Rio de Janeiro. Dirigiu cursos de português, dedicando-se à Association Culturelle pour les Études Portugaises.

Maria Teresa Salgado era transmontana, de Duas Igrejas, onde nasceu em 1945. Durante os anos que passei em Paris, era uma presença constante nas iniciativas da embaixada, com a qual colaborou ao longo dos anos, sempre num registo de grande simpatia e educação que era o seu.

Deixo-lhe uma sentida homenagem.

quarta-feira, fevereiro 28, 2018

Khadafi, a Madeira e nós

Rui Tavares conta hoje, no “Público”, alguns aspetos da questão suscitada, em 1978, por declarações do líder líbio Mouhamar Khadafi, ao ter apelado à “descolonização” da Madeira, no contexto de uma reunião da Organização da Unidade Africana.

Lembro-me bem do problema que isso suscitou no âmbito do Ministério dos Negócios Estrangeiros.

A Líbia, onde o regime do rei Idriss tinha há pouco sido derrubado, fora, por muito tempo, um país algo distante para nós. Mas, no Portugal pós 25 de abril, um regime autoritário ser derrubado por um grupo de jovens militares suscitava naturalmente alguma simpatia...

Mário Soares, nos seus périplos diplomáticos para desbloquear o processo negocial com as colónias em transição, havia passado umas horas por Tripoli, em 1974. E haviam sido estabelecidas, através da nossa embaixada em Paris, relações diplomáticas bilaterais, embora sem embaixadores mutuamente acreditados.

Em 1976, na sequência dessa aproximação, a Líbia enviou uma delegação a Lisboa, a um congresso do PS. Coube-me organizar, como jovem diplomata com esse pelouro geográfico que então era, um conjunto de contactos técnicos para o ministro dos Municípios líbios, que chefiava a delegação, Abuzaid Dorda.

(Em 2001, vim a encontrar e a conviver com Dorda, então meu colega nas Nações Unidas. Havia sido, entretanto, primeiro-ministro do seu país. Viria a ser condenado à morte pelo novo regime, em 2015, mas, aparentemente, continua preso, com a sentença por executar). 

Escassos meses depois, e como consequência direta dessa visita, com vista a explorar as imensas possibilidades de cooperação económica que se abriam com um país rico em petróleo como era a Líbia, integrei uma delegação técnica no domínio da construção civil e obras públicas que deslocou àquele país. 

A minha participação na delegação - ainda nenhum diplomata português fora oficialmente à Líbia - foi explicitamente decidida como forma de dar um primeiro sinal (a nível deliberadamente “baixo”, como foi então assumido, o que não alimentou o meu ego...) de aproximação política oficial ao novo regime. Fomos recebidos de forma principesca e tudo apontava para excelentes hipóteses de negócio para as nossas empresas.

Mas nem tudo iria correr bem, no imediato, nesse “namoro” com a Líbia. 

Logo ano seguinte, em dezembro de 1977, quando uma nova delegação técnica, de que igualmente fiz parte, se aprestava para concluir alguns dos contratos negociados, esperava-nos uma surpresa desagradável: fomos praticamente “sequestrados” à chegada a Tripoli, retiraram-nos os passaportes e os bilhetes de avião e confinaram-nos, sem contactos, num hotel miserável, na periferia de Tripoli, durante quase uma semana. (À época, procurou-se "esconder" da imprensa este incidente sofrido pela nossa delegação, que era presidida pelo engº Guimarães Lobato, administrador da Gulbenkian).

O que se teria passado? Muito simplesmente, os líbios reagiam assim a uma declaração feita por Mário Soares, horas antes, numa reunião da Internacional Socialista, em que o então primeiro-ministro português havia anunciado o estabelecimento de relações diplomáticas a nível de embaixada com Israel. Nós havíamos sido apenas as vítimas “colaterais” desse desagrado. 

Kadhafi não esqueceria a afronta da aproximação portuguesa a Israel. E é assim que, meses depois, surge esta “boutade” sobre a Madeira que, oportunamente, Rui Tavares vem recuperar, quarenta anos mais tarde.

Para o que também importa, convirá registar que as coisas acabaram por compor-se. A presença empresarial portuguesa reforçou-se imenso na Líbia, muitos trabalhadores portugueses por lá estiveram a ganhar bastante dinheiro, muitos bons negócios beneficiaram por ali Portugal, por muito tempo, até à queda de Kadhafi. Depois, foi o que foi...

Da cobardia

Há coisas difíceis de dizer a um amigo: uma delas é que essa pessoa tem mau hálito e que isso se torna incómodo para os outros. Mas temos que fazê-lo, porque, por menos cómodo que isso possa ser, estamos a poupar essa pessoa a situações desagradáveis, até de rejeição, de que ela própria, porque não tem consciência disso, será o principal prejudicado. Uma vez disse isso a um colega nosso. No primeiro instante, pareceu-me ligeiramente perturbado mas, no fim, acabou por me agradecer.”

A fala reproduzida no parágrafo anterior não é minha: foi-me dita por um prestigiado embaixador, bem mais velho do que eu, num café de uma capital europeia. A conversa tinha-nos conduzido, sei lá bem porquê, àquele estranho tema. Eu ia dizendo que sim com a cabeça, seguindo o raciocínio do homem. Por um lado, dava-lhe razão: deve ter-se a coragem de avisar os amigos desse aspeto desagradável. Mas, por outro, pesavam mais as razões que me levavam a coibir-me de dizer ao meu interlocutor que, também ele, tinha um odor insuportável a sair-lhe da boca.

terça-feira, fevereiro 27, 2018

O grande rebelde




Foi há quase cinco anos. Tocou à minha porta. Era praticamente nosso vizinho. Eu não estava em casa. A quem o atendeu, entregou um livro para mim, com uma amável dedicatória. Disse querer agradecer o que eu tinha por aqui escrito. O facto de eu ter, mais uma vez, reposto a verdade.

E o que é que eu tinha escrito? Pela enésima vez, tinha contado algo que tem mais de duas centenas de (quase todas silenciosas) testemunhas: naquela que ficou conhecida pela “assembleia selvagem” do MFA (porque não foi convocada nos moldes formais), na noite de 11 de março de 1975, o coronel João Varela Gomes não apelou ao fuzilamento dos conspiradores dessa manhã. 

Mas houve ou não alguém que fez esse apelo, nessa tensa reunião que durou quase até às sete da manhã de 12 de março? Claro que sim. Houve por ali uma voz que fez essa insensata proposta. Não interessa agora quem foi. Para o que me importa, que fique claro que essa voz não foi a de João Varela Gomes. Os seus inimigos e detratores, recorrentemente, em livros e artigos, espalham essa miserável insídia. Eu, que nunca fui seu amigo, mas fui testemunha ativa dessa noite revolucionária, repetirei, tantas vezes quantas for necessário, essa simples verdade.

João Varela Gomes foi um oficial do Exército que, com imensa coragem, combateu a ditadura. Foi a figura mais importante da tentativa revolucionária de derrube do regime, ocorrida na noite de 31 de dezembro de 1961, no frustrado assalto ao quartel de Beja. Gravemente ferido nessa intentona, esteve preso durante uma década.

Poucos meses depois de ter deixado a prisão, em 1972, fui-lhe apresentado, bem como a sua mulher - Maria Eugénia Varela Gomes, uma grande figura antifascista -, pelo meu amigo Lino Bicho, num almoço em Colares, na “Casa dos Frangos”, um célebre restaurante dirigido por um casal de comunistas, o Gil e a sua mulher, uma “roja” que participara na Guerra Civil espanhola. 

Voltaria a encontrar Varela Gomes dois anos depois, nos dias do 25 de abril, no palácio da Cova da Moura. Eu era adjunto da Junta de Salvação Nacional, fazendo parte da “comissão de extinção” da Pide, e Varela Gomes era a figura mais marcante da famosa 5ª Divisão do Estado-Maior General das Forças Armadas, que funcionou, por algum tempo, numas salas no topo do edifício. Era tido como um militar muito próximo do PCP. 

Em 11 de março de 1975 e nos dias seguintes, cruzei-me bastante com Varela Gomes, desde um encontro no Palácio de Belém até à tal Assembleia do MFA, bem como à volta da organização da Assembleia do Exército, para nomear o Conselho da Revolução, que teve lugar 24 horas depois, em que ele viria a ter um sério confronto, quase físico, com Vasco Lourenço. 

O papel central de Varela Gomes na chamada “esquerda militar” - isto é, os militares próximos do PCP - era então mais do que evidente. Eu não andava por essas “águas” e algumas coisas se passaram, em reuniões e conversas de corredor, que não ajudaram a tornar muito aberta a nossa relação. Mas ainda voltámos a falar algumas vezes, embora sempre sem grande empatia, durante esse Verão quente de 1975. Depois, em agosto, saí do serviço militar e, por muitos anos, perdi-o de vista.

Varela Gomes voltaria, entretanto, a estar em evidência no 25 de novembro desse ano de 1975, movimento militar após o qual se refugiou durante alguns anos em Angola. 

Regressaria mais tarde a Portugal. Éramos vizinhos. Cruzávamo-nos às vezes na rua, conversávamos por alguns minutos. Notei que estava atento à minha vida, citando-me coisas que eu publicava e lugares que eu ocupava.

Nesses nossos encontros aperiódicos, nunca falámos de política. Mas julgo que não tinha mudado as suas ideias, continuando a ter uma profunda repulsa pela “democracia burguesa” em que vivemos - com a qual eu estava confortável e ele não.

Não creio ser necessário estar de acordo com as ideias de João Varela Gomes, a quem, nesse entretanto, morreram um filho e a sua mulher, para podermos sentir admiração por esta notável figura de grande rebelde, lutador denodado por “amanhãs” que dificilmente algum dia cantarão, mas que, talvez por isso, têm para muitos a beleza única das coisas inatingíveis.

João Varela Gomes morreu ontem. A equação é simples. O 25 de abril deve-lhe muito. Eu devo muito ao 25 de abril. Logo, eu devo muito a Varela Gomes. Portugal também.

segunda-feira, fevereiro 26, 2018

O dia seguinte





Aquele nosso governante aguentava muito pouco a bebida. Nessa noite, no bar do hotel, nesse país distante, a soma de uns whiskies ao vinho da refeição, que havia sido tomado no restaurante onde o embaixador português nos levara a jantar, com o “jetlag” da viagem a não ajudar, tudo ajudava a fazê-lo sair dos seus limites comportamentais da prudência.

A certo ponto, na conversa em que envolvia a meia dúzia de membros da delegação presentes, dei-me conta de que passara a tratar um deles por tu. Era alguém que ele conhecia há muito pouco tempo e de quem fazia uma substancial diferença em idade. O interlocutor, talvez surpreendido mas sentindo o terreno aberto, abandonou o modo formal de tratamento e passou a usar o primeiro nome do político. E, à medida que ganhava confiança, embora de forma sempre educada, foi-se permitindo atitudes de instantânea, logo imprudente, intimidade.

Eu assistia àquilo divertido, porque, conhecendo ambos melhor do que eles se conheciam entre si, pressentia como as coisas iam acabar. O nosso grupo manteve-se à conversa no bar, por mais algum tempo. Depois, sempre num ambiente de galhofa coletiva, fomos para os nossos quartos.

O dia seguinte ia começar cedo. Quando entrei na sala dos pequenos almoços do hotel, o nosso governante já estava sentado a uma mesa, de cara fechada. Saudei-o formalmente, sentei-me e, em silêncio, iniciei a refeição. O político manteve-se sem dizer uma palavra e eu, nesse tempo sem iPhones para ver as notícias matinais, concentrei-me num jornal qualquer que apanhara no balcão.

Foi então que deu entrada na sala o colega com quem o governante confraternizara ruidosamente na noite anterior. Conhecido “blagueur” e brincalhão, o recém-chegado vinha, claramente, no prolongamento do “mood” da noite anterior. Trazia mesmo umas piadas engatilhadas e logo se dirigiu ao político de modo informal.

Embora o dia estivesse límpido, pressenti que se ia levantar borrasca. E eu próprio me levantei, em busca de ovos mexidos com bacon.

Estava a meio dessa magna tarefa quando ouvi, vindo da nossa mesa, um tom de voz a subir. Olhei e vi que o governante deixara o seu mutismo e se dirigia com coreográfica rispidez ao meu colega de delegação, sob o olhar espantado de outros hóspedes. Era uma questão de serviço, um documento que faltava ou uma diligência que não fora feita, já não sei bem. Optei por ganhar algum tempo junto às vitualhas, para evitar a zona de conflito. Mas não foi preciso. Num ápice, o nosso político zarpou da mesa e saiu da sala.

Fui-me então sentar, como se nada tivesse ocorrido, mas vi que o meu colega estava ainda lívido da reprimenda recebida. “Tu viste-me este gajo! Agora deu-lhe para me desancar sobre uma coisa de nada. O tipo dormiu mal ou quê? Tu que o conheces melhor, por que diabo achas que ele reagiu assim?”. Estava siderado, chocado. “Ainda ontem, lembras-te, o gajo parecia um porreiraço, nos copos, lá no bar, e agora passa-se!”

Quando as pessoas não percebem, e se queremos ser úteis, temos de dizer-lhes. Eu disse: “Meu caro, conheces as regras do “one night stand”* ? Aplicam-se aqui. O que aconteceu ontem, ficou lá. Hoje, já é o dia seguinte”.

O meu colega era (e é) um tipo teimoso, mas rápido. Minutos depois, vi-o a tratar o político com a necessária distância. E a nossa visita àquele país acabou por correr muito bem, não achas, João?


(Nota: se acaso o leitor não souber o que é o “one night stand” deve ir ao Google)

Quem tem medo de Francisco Louçã?


Sinto por aí um certo mal-estar com a proeminência pública de Francisco Louçã, seja pela presença regular na comunicação social (imprensa, rádio e televisão), seja pelos lugares que ocupa no Banco de Portugal e no Conselho de Estado. Pena é que não se destaque, com igual nota, a sua atividade académica, em que, por um indiscutível mérito próprio, chegou ao topo da carreira letiva, com amplo reconhecimento dos seus pares. Louçã é, além disso, autor de uma bibliografia muito assinalável, também publicada no estrangeiro.

Esta atitude anti-Louçã - chamemos as coisas pelos nomes - apoia-se num pouco subliminar juízo de "ilegitimidade". Porque as ideias políticas de Louçã são minoritárias, dar-lhes relevo não tem o menor sentido e representa uma injustificável cedência de espaço ao Bloco de Esquerda - é esta a "lógica" do raciocínio.

Ora Louçã tem todo o direito de pensar o que pensa. Não concordo com muitas coisas que ele defende, sentir-me-ia mesmo pouco confortável se algumas das suas ideias fossem levadas à prática, nomeadamente nos temas europeus. Mas reconheço que o seu pensamento tem uma indiscutível racionalidade e coerência, mesmo quando ataca aquilo que eu próprio penso. E fá-lo com uma inteligência e uma preparação intelectual muito raras. 

Num país em que o pensamento económico dominante é um ecoado por um "coro" que papagueia uma linha quase uniforme, difundindo um "template" que surge vendido como verdade indiscutível nas salas das nossas universidades (isto sabe-se?), de que algum "jornalismo" económico é apenas um subproduto para "dummies", fico muito feliz pelo facto de poder existir, com visibilidade nacional, um contraditório, mediático e não só, feito por alguém com a estatura de Francisco Louçã.

domingo, fevereiro 25, 2018

O cônsul sem consolo



Notei que o homem estava agitado. Pensei, contudo, que esse nosso cônsul honorário, numa bem remota cidade num país do "Sul" do mundo, cujo nome agora esqueço, vivia apenas o nervosismo de estar a assistir à visita de uma figura portuguesa de certo destaque, que eu acompanhava.

A certo passo, puxou-me à parte e queixou-se:

- O nosso embaixador podia ter-me avisado com mais antecedência. Só ontem é que me disseram que vinham cá dormir. Não tive tempo para preparar nada de jeito.

Sosseguei o homem e disse-lhe que estava tudo a correr muito bem, desde o encontro com as autoridades locais até à receção com os escassos portugueses ali residentes. Só o bizarro hotel, com as banheiras cheias mas sem água corrente nas torneiras, é que deixava muito a desejar. Mas, que podia ele fazer!, era o único alojamento disponível na cidade.

O nosso cônsul honorário, no entanto, continuava inconformado. E insistia:

- É que eu podia ter preparado umas coisas bem mais agradáveis, se tivesse sabido da visita com tempo.

Expliquei-lhe que a decisão da deslocação fora tomada num prazo muito curto, procurando acalmá-lo:

- Mas está tudo impecável! O que é que o meu amigo podia ter feito mais?

- Ó senhor doutor! Com tempo, eu tinha montado lá em casa um programa "de truz" para os senhores, com umas "garinas" magníficas, tudo "material" garantido e sem problemas. Mas não me avisaram! Isto não se faz!

De facto...

sábado, fevereiro 24, 2018

ACNUP


Sabe o leitor o que foi a ACNUP? 

Hoje, olhando papelada velha, surgiu-me um “apontamento” oficial, com timbre do Ministério dos Negócios Estrangeiros, datado de 14 de novembro de 1978. Nele eu dava conta aos meus chefes, correspondendo a um “despacho” superior, de que integrava a Comissão Organizadora da Associação para a Cooperação com as Nações Unidas em Portugal (ACNUP).

A Associação destinava-se a contribuir para um melhor conhecimento, no nosso país, dos fins e atividades das Nações Unidas. A ONU havia sido uma organização global ferozmente diabilizada pela ditadura portuguesa (que caíra apenas três anos antes), por ser a principal linha da frente diplomática no combate ao colonialismo. E era manifesto que não haviam sido feitos os necessários esforços para contrariar o efeito disso no imaginário público nacional. A ACNUP nascia para isso mesmo, para dar visibilidade positiva à ONU.

(No ano seguinte, em 1979, fui viver para a Noruega e tive de desligar-me da organização, de que me mantive associado por uns anos.)

Anoto os nomes dessa Comissão Organizadora, que eu integrava: Silva Costa, adjunto do presidente da República, José Cardoso Pires, escritor, os professores universitários Maria de Lurdes Belchior e Jacinto do Prado Coelho, os gestores empresariais José Campelo e Carlos Eurico da Costa, o diretor do “Diário Popular”, Jacinto Batista, e o técnico de comunicação social, João Palmeiro. Com o tempo, viriam a integrar os primeiros corpos diretivos da ACNUP o padre (depois cardeal) José Policarpo, o dr. Rui Machete, o comandante da Marinha Luís Costa Correia e o embaixador António Costa Lobo. Fui, aliás, o principal relator dos estatutos da ACNUP.

O MNE, como agora vejo pela nota que hoje reencontrei, não gostou que eu não tivesse pedido autorização para integrar a ACNUP. E fico agora a “conhecer-me” melhor, à época, ao ler o que então enviei “à consideração superior”: “A ausência de qualquer limitação, implícita ou explícita, colocada neste campo pelo Regulamento do MNE - que, aliás, a existir, seria naturalmente derrogada pela Constituição da República - levou o signatário, por uma questão de mera lealdade funcional, a comunicar apenas a sua filiação na ACNUP mas, igualmente, a prescindir de qualquer pedido de autorização para assim proceder”.

Eu tinha razão, quanto à questão de fundo. Mas, olhando em perspetiva, com apenas três anos de “casa”, tinha uma “grande lata” e algum excesso de frontalidade no modo, algo arrogante, como abordava o problema. Que paciência que os meus chefes, no MNE de então, tiveram para comigo!

A cunha do chinês



Anda por aí um debate sobre a validade dos diplomas em medicina chinesa. Não me meto nisso: sei tanto disso ... como de medicina chinesa! Mas sinto-me tentado a contar uma pequena história pessoal. 

Um dia, quando vivia em Nova Iorque, apareceu-me uma dor terrível por todo um braço. Afetava-me o sono e o trabalho. Sem a menor dúvida, fora provocada por um esforço físico que, insensatamente, havia feito de forma repetida, uns dias antes. 

Num jantar em casa do embaixador da China nas Nações Unidas, o assunto veio à baila e este perguntou-me: "Queres experimentar o melhor médico chinês de Nova Iorque? Tenho a certeza de que a acumpunctura te tira essa dor, em pouco tempo". Eu sabia da eficácia da acumpunctura em vários casos dessa natureza e fiquei curioso.

Poucos dias depois, lá estava eu a entrar num consultório manhoso, que tinha pouco de médico, pelo menos na boa caricatura que eu deles faço. Lembro-me bem de que era na rua 24, a dois passos do Flatiron - o célebre prédio em forma cunha, o mais antigo (1902) "arranha-céus" de Nova Iorque (de que fica aqui uma imagem, talvez a despropósito). Verdade seja que também fora por uma "cunha" do embaixador chinês que eu ali fora atendido com rapidez...

O médico era um velhote simpático, que me pareceu competente, começando por ser de poucas falas. Fez-me os necessários testes e, no fim, concluiu: "Creio que com umas dez sessões de acumpunctura isso fica resolvido". E fomos ambos olhar para as nossas agendas.

Por esses tempos, a minha vida, em Nova Iorque, era um perfeito inferno, com reuniões de manhã cedo até à noite, seguidas de imensos jantares com uma pesada componente de trabalho. Conseguir disponibilidade para me libertar, por algumas horas, dos meus compromissos nas Nações Unidas, para ter essas dez sessões de acumpunctura, numa zona bem distante do meu escritório e muito mais de minha casa, era algo que me iria desorganizar por completo o quotidiano, tanto mais que as horas do médico chinês eram escassas e muito limitadas na sua flexibilidade. 

Ao ver a minha atrapalhação, o homem, já simpático, saiu-se subitamente com esta: "Há uma maneira de talvez conseguir resolver isso de uma só vez!" Olhei para ele, surpreendido. A surpresa aumentou quando o ouvi dizer: "Podemos mesmo fazer isso já!". Eu devia estar a arregalar cada vez mais os olhos, quando ele me disse: "Quer fazer uma infiltração, uma injeção? Provavelmente resolve o problema."

Resolveu, de facto. Mas, a partir daquele instante, a pouca "fezada" que eu sempre tive nas medicinas não convencionais esvaiu-se ainda mais. Até hoje.

ps - mudei a palavra: escreve-se “acupunctura”

sexta-feira, fevereiro 23, 2018

O jeito



A cidade era uma capital africana, de uma língua muito comum à minha geração, num país onde os tempos de conflito alternavam com os de acalmia política. Estávamos em um desses últimos momentos, pelo que o governante português decidiu passar por lá, num périplo que fazia por África. Era importante encontrar a pequena comunidade portuguesa, ver as oportunidades de negócio para as nossas empresas, dar talvez um empurrão a um incipiente projeto de promoção do ensino do Português. Às vezes, há que fazer algo por um nosso cidadão há muito detido, outras vezes tentar desbloquear um contrato preso nas malhas burocráticas, as mais das ocasiões tentar garantir um pagamento em atraso a algum exportador luso. E coisas assim, porque a agenda raramente varia muito.

Ele era o nosso cônsul honorário local, porque por ali não se justificava haver uma embaixada residente. Chamemos-lhe “Fonseca”. Era ativo como só alguns desses cônsules são - infelizmente, nem todos, muito longe disso. Empresário, tinha vindo, em 1975, de uma nossa ex-colónia em convulsão. Teve sucesso, ganhou dinheiro, conhecia meio mundo local, dava-se com os políticos que subiam e com os que desciam nas crises, porque a vida é como os alcatruzes da nora e há que permanecer na mó de cima. Para além do “penacho” de representar o país, sentia-se bem o seu amor a Portugal.

O nosso homem - que, infelizmente, já lá vai, há bastantes anos - era, contudo, uma “pérola” rara, no universo dos nossos cônsules honorários. Nesse dia do final dos anos 80, à nossa chegada, lá estava ele, lado a lado com os dignitários locais, que tuteava, gente com quem, muito provavelmente, trocara favores em tempos difíceis. E ali estava a recompensa: o estatuto, a bandeira no carro, a confiança. O Fonseca chamava ministros a sua casa, como viémos a ter o ensejo de observar. E, maravilha das maravilhas!, o Fonseca tinha uma chave da sala VIP do aeroporto da capital, não tendo aí de esperar à porta, na dependência dos inconfiáveis serviços locais.  

O Fonseca era, além do mais, um homem muito generoso. Organizou, em honra do governante português, um jantar em sua casa, com tudo o que tinha de melhor: mariscos à discrição, whiskies velhos, vinhos sonantes de anos preciosos. Convidou figuras locais e até um governante de um país de língua portuguesa, de passagem. Éramos algumas dezenas de pessoas, em mesas redondas, com uma extrema abundância de vitualhas.

A casa era estranha, para África. O dia estava ainda luminoso, mas não o usufruíamos. A imensa sala não tinha janelas para o exterior, tudo se passava sob luz artificial, como num cenário. Havia sofás de gosto bizarro e cadeiras rústicas portuguesas, misturadas como um “sideboard” contemporâneo, metalizado. O Fonseca, atento e cuidado ao extremo, circulava entre nós, expeditando os criados, preocupado com o que pudesse faltar. 

Soubemos que vivia só. A família estava, há muito, “já” em Portugal. Desde a nossa entrada que notáramos a presença de uma senhora, portuguesa, que o Fonseca nos apresentara como “Madame Ramos”. Andava entre a cozinha e a sala, orientando o pessoal.

A elegância e a beleza da senhora não haviam deixado indiferentes os membros da nossa delegação. Embora de forma respeitosa, os olhares convergiam sobre “Madame Ramos”, que era uns bons trinta anos mais nova que o Fonseca, sempre que ela assomava à sala. O Fonseca, a certo passo, achou ter o dever de explicar: “Esta senhora é viúva de um português. Tenho-a ajudado depois da morte do marido e tem-me dado muito jeito”. Senti um sorriso irónico perpassar pela cara de alguns membros da delegação, mas o Fonseca fez de conta que não tinha percebido.

Houve o jantar, sem a “Madame Ramos” presente nas mesas, muito provavelmente orientando as coisas da cozinha. À saída, connosco bem comidos e bebidos, e muito bem dispostos, voltei-me para o Fonseca e disse, com um sorriso indefinido: “Agradeça por nós o trabalho da “Madame Ramos” “. Ao Fonseca, que estava numa muito boa onda pelo êxito do evento, saiu-lhe então esta: “Fantástica, não é?”. Soltou-se-me o comentário machista: “Oh! Se é! E como é que o meu amigo disse? Dá-lhe “muito jeito”, não é?”. O Fonseca rebentou numa gargalhada: “O doutor sabe-a toda!”. 

Saímos para a noite quente africana. Já dentro de um dos carros, prestes a partir para o hotel, abri o vidro para me despedir do Fonseca. Este, cúmplice, com um imenso sorriso, fez-me um sinal de “ótimo” com os dedos de uma mão, acrescentando: “De primeira, doutor, de primeira!”. Um pouco atrás, modesta, entre portas, sem ter tido o ensejo de se despedir de nós, surgiu o vulto elegante de “Madame Ramos”.

Uma oportunidade


Às vezes, dou por mim a surpreender-me com a minha própria ingenuidade. E, muito provavelmente, isso vai acontecer de novo. Mas prefiro alimentar uma esperança do que abdicar por cinismo.

Com particular incidência na última década, temos vindo a assistir, em Portugal, a um crescendo de tensão na verbalização do confronto político. Uma certa elegância, que estava longe de ser incompatível com frontalidade e eficácia, desapareceu de grande parte do debate político, com o parlamento a ser palco regular de diatribes entre as bancadas e entre estas e os governos, na utilização de uma linguagem que frequentemente roça o soez.

A manifestação de um mínimo de consideração democrática pelos adversários praticamente desapareceu – e essa é a mensagem que passa para quem, de fora, observa o comportamento dos diversos atores públicos. Nenhum partido está inocente neste terreno, onde o argumento político-ideológico é, quase todos os dias, substituído por insultos de caráter e por manifestações de falta de respeito, que só uma cobardia coletiva impede que acabem nuns pares de honrosas chapadas.

É triste constatar que a desejável renovação etária, em especial na vida parlamentar, acabou por trazer à tona algumas figuras de uma geração desbragada no discurso, débil na educação e na observância dos mínimos de civilidade. E resulta claro que as lideranças partidárias são abertos cúmplices dessa atitude, utilizando a agressividade desses protagonistas de segunda linha como tropa de choque verbal. A imagem que a opinião pública absorve desse ambiente é que agora já "vale tudo". Se os agentes políticos estão convencidos de que baixar a linguagem ao nível do populismo os prestigia, estão muito enganados: a sua imagem é cada vez pior.

Para isto contribui imenso uma situação de excecionalidade de que, em Portugal, não se tem noção, mas que, curiosamente é muito evidente para os estrangeiros que nos visitam. É que impera por cá uma hiper-mediatização da vida política, com uma cansativa presença dos atores partidários nos écrans e nas colunas dos jornais, explorando obsessivamente todos os pretextos para explorar a crispação. Com o futebol e os “desastres”, a política forma a gloriosa “troika” de conforto dos alinhamentos noticiosos, que se emulam e copiam entre si, alimentando-se de sectarismos e de visões confrontacionais. É barato, cria polémicas e sopra audiências.

A oportunidade e a esperança de que falei no início deste texto é muito simples: António Costa e Rui Rio serão capazes de firmar entre si um acordo de cavalheiros que regule os limites de agressividade dos seus “peões de brega”, reduzindo o terreno da sua agressividade verbal? O país, seguramente, agradeceria. A comunicação social não.

quinta-feira, fevereiro 22, 2018

Legitimidades


Fernando Negrão teve um resultado medíocre na votação para líder da bancada parlamentar. Outra coisa não seria de esperar. Os deputados social-democratas que lá se sentam foram escolhido por Passos Coelho e eram, na sua esmagadora maioria, fiéis a Luís Montenegro (que, talvez não por acaso, se safou da liderança do grupo em tempo útil, obrigando agora um seu “genérico” a sair pela direita baixa), que já se posiciona para afrontar Rui Rio, ao primeiro despiste deste.

De todo o modo, vale a pena perguntar: quem tem mais legitimidade? A nova liderança de Rui Rio, de que Negrão faz parte, votada em eleições diretas pelos militantes do partido, com o resultado sufragado em congresso, ou deputados eleitos há mais de dois anos, num contexto político muito diferente, que foram perdendo pelo caminho as suas “cabeças de cartaz”, Passos Coelho e Montenegro? Claro que Negrão não os representa! Eles são, maioritariamente, a setor do partido que foi derrotado nas diretas, e que também não conseguiu virar o congresso contra Rio. A conclusão é simples: o grupo parlamentar do PSD que está em S. Bento não representa, de facto, o partido que votou maioritariamente em Rio.

Os deputados que hoje ignoraram ou provocaram Negrão (e, por seu intermédio, Rui Rio) já perceberam que têm de lutar para que o novo líder não chegue às eleições legislativas de 2019. Querem que ele caia antes, com um “levantamento” organizado, tendo por pretexto um eventual mau resultado nas eleições regionais ou, com maior probabilidade, nas eleições europeias. 

Mas por que diabo não esperam esses contestatário pelas legislativas onde, muito provavelmente, a “tareia” do PS no PSD irá ser ainda maior? Por uma razão muito simples: é que, nessa altura, as listas do PSD que irão a votos estarão naturalmente já repletas dos novos fiéis de Rio, muito dos quais não são hoje deputados.

É que aqueles que, na votação de hoje, humilharam Negrão, e de que este e Rio conhecem muito bem os nomes, sabem que, se for Rio a organizar as próximas listas de deputados, vão perder o emprego, pagando com língua de palmo o seu gesto de hoje. E Negrão lá estará para lho lembrar, de dedo apontado para cada um deles. Rio até pode vir a perder a presidência, em face de um mau resultado nas legislativas de 2019. E Montenegro pode mesmo vir a assumir o seu lugar. Mas, neste caso, o grupo parlamentar com que "contará" em S. Bento será formado maioritariamente por gente de Rio. As vinganças servem-se frias. E as vichyssoises também, lembrará alguém.

Isto vai ter muita graça!

A chave do frio


Uma última historieta sobre a visita presidencial a S. Tomé, em 1984.

A chegada da comitiva a São Tomé, na tarde desse dia, fora um tanto caótica. Mas, finalmente, lá foi possível garantir que os membros da delegação presidencial estavam devidamente alojados, na escassíssima rede hoteleira então existente. A boa vontade das autoridades locais, desejosas de prestar o melhor acolhimento possível à primeira visita de um presidente português depois da independência do país, fora fantástica. Melhor era impossível!

Como é das regras deste tipo de visitas, o chefe de Estado estrangeiro oferece, num dos dias, um jantar ao seu homólogo do país. Na ausência de um “cateter” que, em São Tomé, pudesse organizar essa refeição, foi necessário trazer quase tudo de Lisboa, o que era facilitado pela circunstância de ser um voo especial da TAP. Combinou-se que esse material seria guardado numa câmara frigorífica existente na cidade. 

A noite desse primeiro dia já caía, e preparávamo-nos para a intensa jornada que ia seguir-se, quando, esbaforido, entrou de roldão pela residência do embaixador um elemento da empresa responsável pelo jantar que teria lugar dois dias depois: “Desapareceu tudo!”.

Ficámos compreensivelmente alarmados. Se isso acontecesse, seria o caos! O homem, lívido, explicou-nos que dois veículos de carga tinham vistos a sair do aeroporto com o material e que ninguém sabia do paradeiro de tudo aquilo com que ia ser preparado o nosso jantar de Estado.

Dispus-me a esclarecer as coisas. O Fernando Tavares de Carvalho, diplomata colocado na embaixada, ainda sugeriu que só se apurasse o assunto logo de manhã. Mas eu, que tinha ido para ali deslocado de Luanda para garantir uma boa preparação da visita, fiquei nervoso com o potencial cenário de “catástrofe”. Chamei o funcionário da embaixada com quem tinha tratado a questão da câmara frigorífica e, juntamente com o Fernando, fomos tentar ver se o material estava lá ou não.

Só que o serviço frigorífico estava, a essa hora, naturalmente encerrado, pelo que era necessário encontrar, previamente, o responsável pelo acesso ao edifício, um tal Mané, o homem que tinha “a chave do frio”, na expressão forte do funcionário da embaixada. E lá fomos, por vielas esconsas de um bairro muito pobre, na periferia da cidade de São Tomé, comigo ao volante, perguntando, de esquina em esquina, onde ficava a residência do Mané. 

Deviam ser umas dez da noite quando descortinámos a casa que nos foi indicada, um edifício térreo, muito simples. Bateu-se à porta, surgiu uma senhora avantajada. Era a mulher do Mané. Simpaticamente, quase pedindo desculpa, disse-nos que ele saíra e que não sabia quando iria regressar. “Pode vir tarde!”, alertou-nos. 

Quando a porta se fechou, o Fernando, o funcionário da embaixada e eu olhámo-nos, impotentes. E já regressávamos ao carro, dispostos a só esclarecer as nossas dúvidas na manhã seguinte, quando um vizinho, com um largo sorriso de dentes brancos a iluminar-lhe o negro da cara, nos disse, em tom baixo: “Eu sei onde o Mané está. Não é longe.”

Pronto. Tínhamos de ir à busca do Mané, se calhar a um bar das redondezas, onde ele fora beber um copo. Excelente! Onde era? “É em casa da amiga...” 

Olá! A coisa tornava-se mais complicada. E delicada! O vizinho prontificou-se a ir ele próprio avisar o Mané do que pretendíamos, devendo nós seguir para o edifício onde se situava a câmara frigorífica, aguardando aí por ele. Senti-me constrangido: arruinar a “escapadinha” do Mané não me deixava nada feliz, devo confessar (sei que é politicamente incorreto este meu sentimento, mas é a pura verdade). Mas tinha de ser assim. E lá foi o vizinho foi à cata do Mané, connosco a avançar para o “frio”.

Aí uns vinte minutos depois, o Mané surgiu, de cara fechada. Ainda hesitei em dar-lhe umas palavras de conforto pela interrupção causada à sua vida íntima clandestina, mas “fiz de conta” de que nada sabíamos.

“For the record”, constatámos que estava tudo bem arrumado, fora a TAP quem cuidara de armazenar as vitualhas para a jantarada, juntamente com aquelas caixas metálicas prateadas em que trazia uma imensidão das suas refeições, porque Eanes iria ainda de São Tomé para o Zaire e para o Congo.

À despedida, “oleámos” o Mané com uma gratificação pelo trabalho extra que tinha tido e, no carro, rimo-nos a bom rir com a situação criada. Com uma dúvida ficámos para sempre: o Mané regressaria do “frio” à amiga ou a casa? Nunca saberemos.

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Hoje, fui simpaticamente convidado para ir, com um grupo, ver jogar o Sporting com o Arsenal, em Alvalade, no dia 26 de novembro.  O Sportin...