Foi há quase cinco anos. Tocou à minha porta. Era praticamente nosso vizinho. Eu não estava em casa. A quem o atendeu, entregou um livro para mim, com uma amável dedicatória. Disse querer agradecer o que eu tinha por aqui escrito. O facto de eu ter, mais uma vez, reposto a verdade.
E o que é que eu tinha escrito? Pela enésima vez, tinha contado algo que tem mais de duas centenas de (quase todas silenciosas) testemunhas: naquela que ficou conhecida pela “assembleia selvagem” do MFA (porque não foi convocada nos moldes formais), na noite de 11 de março de 1975, o coronel João Varela Gomes não apelou ao fuzilamento dos conspiradores dessa manhã.
Mas houve ou não alguém que fez esse apelo, nessa tensa reunião que durou quase até às sete da manhã de 12 de março? Claro que sim. Houve por ali uma voz que fez essa insensata proposta. Não interessa agora quem foi. Para o que me importa, que fique claro que essa voz não foi a de João Varela Gomes. Os seus inimigos e detratores, recorrentemente, em livros e artigos, espalham essa miserável insídia. Eu, que nunca fui seu amigo, mas fui testemunha ativa dessa noite revolucionária, repetirei, tantas vezes quantas for necessário, essa simples verdade.
João Varela Gomes foi um oficial do Exército que, com imensa coragem, combateu a ditadura. Foi a figura mais importante da tentativa revolucionária de derrube do regime, ocorrida na noite de 31 de dezembro de 1961, no frustrado assalto ao quartel de Beja. Gravemente ferido nessa intentona, esteve preso durante uma década.
Poucos meses depois de ter deixado a prisão, em 1972, fui-lhe apresentado, bem como a sua mulher - Maria Eugénia Varela Gomes, uma grande figura antifascista -, pelo meu amigo Lino Bicho, num almoço em Colares, na “Casa dos Frangos”, um célebre restaurante dirigido por um casal de comunistas, o Gil e a sua mulher, uma “roja” que participara na Guerra Civil espanhola.
Voltaria a encontrar Varela Gomes dois anos depois, nos dias do 25 de abril, no palácio da Cova da Moura. Eu era adjunto da Junta de Salvação Nacional, fazendo parte da “comissão de extinção” da Pide, e Varela Gomes era a figura mais marcante da famosa 5ª Divisão do Estado-Maior General das Forças Armadas, que funcionou, por algum tempo, numas salas no topo do edifício. Era tido como um militar muito próximo do PCP.
Em 11 de março de 1975 e nos dias seguintes, cruzei-me bastante com Varela Gomes, desde um encontro no Palácio de Belém até à tal Assembleia do MFA, bem como à volta da organização da Assembleia do Exército, para nomear o Conselho da Revolução, que teve lugar 24 horas depois, em que ele viria a ter um sério confronto, quase físico, com Vasco Lourenço.
O papel central de Varela Gomes na chamada “esquerda militar” - isto é, os militares próximos do PCP - era então mais do que evidente. Eu não andava por essas “águas” e algumas coisas se passaram, em reuniões e conversas de corredor, que não ajudaram a tornar muito aberta a nossa relação. Mas ainda voltámos a falar algumas vezes, embora sempre sem grande empatia, durante esse Verão quente de 1975. Depois, em agosto, saí do serviço militar e, por muitos anos, perdi-o de vista.
Varela Gomes voltaria, entretanto, a estar em evidência no 25 de novembro desse ano de 1975, movimento militar após o qual se refugiou durante alguns anos em Angola.
Regressaria mais tarde a Portugal. Éramos vizinhos. Cruzávamo-nos às vezes na rua, conversávamos por alguns minutos. Notei que estava atento à minha vida, citando-me coisas que eu publicava e lugares que eu ocupava.
Nesses nossos encontros aperiódicos, nunca falámos de política. Mas julgo que não tinha mudado as suas ideias, continuando a ter uma profunda repulsa pela “democracia burguesa” em que vivemos - com a qual eu estava confortável e ele não.
Não creio ser necessário estar de acordo com as ideias de João Varela Gomes, a quem, nesse entretanto, morreram um filho e a sua mulher, para podermos sentir admiração por esta notável figura de grande rebelde, lutador denodado por “amanhãs” que dificilmente algum dia cantarão, mas que, talvez por isso, têm para muitos a beleza única das coisas inatingíveis.
João Varela Gomes morreu ontem. A equação é simples. O 25 de abril deve-lhe muito. Eu devo muito ao 25 de abril. Logo, eu devo muito a Varela Gomes. Portugal também.
15 comentários:
Pessoalmente não o conhecia. Mas da comunicação social ia sabendo coisas dele desde o assalto ao quartel de Beja. Resistente, muito resistente chegou a sua hora. Como por vezes se diz por ai: "os jornais não publicaram, a TV não disse..." ou eu não dei conta. Acabo de saber agora. Paz à sua alma!
AS figuras deste jaez, é que foram o grande suporte da ditadura infindável até a cadeira se partir.
Foi gente desse estofo que fez hesitar muitos democratas em desmontar a ditadura.
Sempre um Homem sério, lutando pelas utopias, pela Liberdade, desde sempre - quando uma pessoa arriscava tudo.
Já se esperava, desde a morte da sua querida Gena e, antes, de dois filhos. Mas nunca se acredita.
Que os historiadores não o esqueçam e reponham algumas verdades. Já agora, de Angola ainda teve que fugir e esteve em Moçambique exilado, até voltar a Lisboa.
Tudo está dito nesta frase : « Mas julgo que não tinha mudado de ideias, continuando a ter uma profunda repulsa pela “democracia burguesa” em que vivemos - com a qual eu estava confortável e ele não.”.
Sempre existiu, existe e existirá, em todos os regimes políticos, em países não evoluídos, aqueles cidadãos que têm uma profunda repulsa pela “democracia burguesa”, e outros que se acomodam, seja porque finalmente retiram da situação existente suficientemente de que viver decentemente, e depois há os outros que também aceitam “porque têm medo” de se molhar…
Nestas três camadas sociais, vê-se bem quem tem coragem, quem resta neutro e quem padece por falta daquilo que faz os homens.
Pois....
As dívidas contraída são coisas complicadas quando não entendidas no tempo em que foram adquiridas. Não há forma de as pagar, sem poder ser verdadeiramente livre. A liberdade não se adquire senão com alguns sacrificios e estados de alma. Mas nesta vida quando se consegue não depender de ninguém, isso é que é a verdadeira paz de alma.
Cada um procura a sua.
@ Sr De Freitas.
"Nestas três camadas sociais, vê-se bem quem tem coragem, quem resta neutro e quem padece por falta daquilo que faz os homens."
Não camadas sociais mas sim hipoteses académicas da sua visão do mundo. Porque como se diz em França: On ne né pas un homme. On le devient au long de sa vie.
Serão rebeldes os terroristas de hoje quando amanhã se falar deles? Ou será tudo uma questão de causas dessa rebeldia?
WOW.... A revista Philosophie Magazine de outubro de 2017 tem um "dossier" interssante sobre: "Y a-t-il encore un vérité."
A verdade de hoje pode ser diferente da de amanhã.
As "dívidas" a datas são inodoras, insípidas e incolores....
Não foi este homem, nem Delgado, nem Norton de Matos, nem Cunhal, nem Soares, nem os capitães de Abril que partiram a cadeira.
A cadeira «partiu-se» com a idade.
O anti-salazarismo nunca venceu nem convenceu o suficiente para que o salazarismo não durasse de 1968 até 1974...moribundo.
Anonimo de 27 de Fevereiro de 2018 às 16:46
Os homens não nascem todos iguais, para, consoante as suas necessidades vitais., no seu percurso evolutivo, construir, criar, inovar, investigar, inventar, melhorar, e desenvolver se.
‘A iniquidade não pode vencer’, última frase de um belo texto do seu filho, Paulo Varela Gomes, ‘Aquilo que é necessário’. O seu post lembrou-me isso, mais uma vez.
@Sr. De Freitas.
Nascemos todos da mesma forma.
Aqueles que nascem com mais possibilidades económicas ou sociais para iniciar a vida, têem apenas mais responsabilidades do que os outros, mas é sempre pela vontade de cada um de fazer a sua vida o melhor que puder para lá chegar.
Um pouco de sorte também conta, tal como os diversoa acontecimentos ao longo da sua vida para compreender o que os ingleses chamam "the facts of life".
Mas à partida somos sempre uguaizinhos.
Ele é sempre a ideia da luta de classes, muito do agrado do marxismo-leninismo triunfante e no que se chama hoje a democracia.[ o que é preciso é destriuir o outro para lhe tomar o lugar]
O Senhor Anónimo das 12:35 não parece viver no país que está na cauda da Europa Ocidental, do IDH Índice de Desenvolvimento Humano. Entalado entre a Hungria e a Letónia.
E a nível mundial é de: 42 / 186, Dados da OCDE.
Que Portugal está há duas décadas sem convergir com os outros países da EU, e na realidade está mais pobre que em 1999, segundo o Jornal Económico.
Portugal, onde o fosso entre ricos e pobres diminuiu, continua entre os países mais desiguais e com maiores níveis de pobreza consolidada da OCDE.
“Os dez por cento da população mais rica concentravam 25,9 por cento da riqueza, enquanto os dez por cento da população mais pobre tinham 2,6 por cento. O grosso da riqueza (63 por cento) concentrava-se em 40 por cento da população”,
Isto não é a culpa do marxismo ou do socialismo, Senhor Anónimo.
Se não compreendeu que os Portugueses não têm todos as mesmas possibilidades de educação, as mesmas possibilidades de se tratar na doença, no alojamento, na alimentação, nos lazeres, na obtenção dum emprego e na qualidade do emprego, é que o Senhor não vive em Portugal.
“Aqueles que nascem com mais possibilidades económicas ou sociais para iniciar a vida, têem apenas mais responsabilidades do que os outros”, ousa escrever… E os que perderam o emprego, ou os que nunca o tiveram , mesmo diplomados ?
E o que é mais grave é que, aparentemente, não compreendeu ainda a razão do êxodo dos milhões de Portugueses para o estrangeiro.
@ Anónimo das 12:35
"Ele é sempre a ideia da luta de classes, muito do agrado do marxismo-leninismo triunfante e no que se chama hoje a democracia.[ o que é preciso é destriuir o outro para lhe tomar o lugar]"
Está a falar sobre a nova invenção da "democracia burguesa"?
Li há pouco sobre isso algures mas não acbei a leitura. Era areia de mais para os meus olhos e para a minha camionnette.
@ Sr. De Freitas das 21:14
"E o que é mais grave é que, aparentemente, não compreendeu ainda a razão do êxodo dos milhões de Portugueses para o estrangeiro."
Compreendo tão bem os que tiveram que sair do país nos anos 2000, que também tive eu de sair e passar a ser "emigrado" porque nos finais dos anos 80 o país estava insuportável de se viver cá. Nesses primeiros anos dos anos 80 até fazia as viagens de ida e volta de combóio. Conheci bem o tipo de emigrantes que eram e como eram transportados durante as 27 horas de viagem. [Parecia mais um trnsporte de gado do que outra coisa. Até vi num compartimento a fazerem o almoço num fogareiro a petróleo. Também encontrei muitos que como não tinham lugar marcado viviam e dormiam nos corredores do combóio não sei se a fugirem do fiscal.]
Algumas vezes pensei se os nosssos Descobrimentos não tinham sido por pessoas semelhantes.
Não se preocupe com as minhas possiveis ignorâncias pois todos nós as temos.
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