quarta-feira, fevereiro 28, 2018

Khadafi, a Madeira e nós

Rui Tavares conta hoje, no “Público”, alguns aspetos da questão suscitada, em 1978, por declarações do líder líbio Mouhamar Khadafi, ao ter apelado à “descolonização” da Madeira, no contexto de uma reunião da Organização da Unidade Africana.

Lembro-me bem do problema que isso suscitou no âmbito do Ministério dos Negócios Estrangeiros.

A Líbia, onde o regime do rei Idriss tinha há pouco sido derrubado, fora, por muito tempo, um país algo distante para nós. Mas, no Portugal pós 25 de abril, um regime autoritário ser derrubado por um grupo de jovens militares suscitava naturalmente alguma simpatia...

Mário Soares, nos seus périplos diplomáticos para desbloquear o processo negocial com as colónias em transição, havia passado umas horas por Tripoli, em 1974. E haviam sido estabelecidas, através da nossa embaixada em Paris, relações diplomáticas bilaterais, embora sem embaixadores mutuamente acreditados.

Em 1976, na sequência dessa aproximação, a Líbia enviou uma delegação a Lisboa, a um congresso do PS. Coube-me organizar, como jovem diplomata com esse pelouro geográfico que então era, um conjunto de contactos técnicos para o ministro dos Municípios líbios, que chefiava a delegação, Abuzaid Dorda.

(Em 2001, vim a encontrar e a conviver com Dorda, então meu colega nas Nações Unidas. Havia sido, entretanto, primeiro-ministro do seu país. Viria a ser condenado à morte pelo novo regime, em 2015, mas, aparentemente, continua preso, com a sentença por executar). 

Escassos meses depois, e como consequência direta dessa visita, com vista a explorar as imensas possibilidades de cooperação económica que se abriam com um país rico em petróleo como era a Líbia, integrei uma delegação técnica no domínio da construção civil e obras públicas que deslocou àquele país. 

A minha participação na delegação - ainda nenhum diplomata português fora oficialmente à Líbia - foi explicitamente decidida como forma de dar um primeiro sinal (a nível deliberadamente “baixo”, como foi então assumido, o que não alimentou o meu ego...) de aproximação política oficial ao novo regime. Fomos recebidos de forma principesca e tudo apontava para excelentes hipóteses de negócio para as nossas empresas.

Mas nem tudo iria correr bem, no imediato, nesse “namoro” com a Líbia. 

Logo ano seguinte, em dezembro de 1977, quando uma nova delegação técnica, de que igualmente fiz parte, se aprestava para concluir alguns dos contratos negociados, esperava-nos uma surpresa desagradável: fomos praticamente “sequestrados” à chegada a Tripoli, retiraram-nos os passaportes e os bilhetes de avião e confinaram-nos, sem contactos, num hotel miserável, na periferia de Tripoli, durante quase uma semana. (À época, procurou-se "esconder" da imprensa este incidente sofrido pela nossa delegação, que era presidida pelo engº Guimarães Lobato, administrador da Gulbenkian).

O que se teria passado? Muito simplesmente, os líbios reagiam assim a uma declaração feita por Mário Soares, horas antes, numa reunião da Internacional Socialista, em que o então primeiro-ministro português havia anunciado o estabelecimento de relações diplomáticas a nível de embaixada com Israel. Nós havíamos sido apenas as vítimas “colaterais” desse desagrado. 

Kadhafi não esqueceria a afronta da aproximação portuguesa a Israel. E é assim que, meses depois, surge esta “boutade” sobre a Madeira que, oportunamente, Rui Tavares vem recuperar, quarenta anos mais tarde.

Para o que também importa, convirá registar que as coisas acabaram por compor-se. A presença empresarial portuguesa reforçou-se imenso na Líbia, muitos trabalhadores portugueses por lá estiveram a ganhar bastante dinheiro, muitos bons negócios beneficiaram por ali Portugal, por muito tempo, até à queda de Kadhafi. Depois, foi o que foi...

2 comentários:

A Nossa Travessa disse...

Meu caro Franciscamigo

É a estória dos alcatruzes da nora.

Com um abração do teu amigo e admirador

Henrique Antunes Ferreira

Anónimo disse...

Bom dia caro embaixador

desculpe importuna-lo, mas estava a procura da sua pagina no facebook e encontrei uma versao semi-pirata (nao é a copia exacta da sua pagina)

https://www.facebook.com/Francisco-Seixas-da-Costa-1959684350940665/


cumprimentos

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...