A cidade era uma capital africana, de uma língua muito comum à minha geração, num país onde os tempos de conflito alternavam com os de acalmia política. Estávamos em um desses últimos momentos, pelo que o governante português decidiu passar por lá, num périplo que fazia por África. Era importante encontrar a pequena comunidade portuguesa, ver as oportunidades de negócio para as nossas empresas, dar talvez um empurrão a um incipiente projeto de promoção do ensino do Português. Às vezes, há que fazer algo por um nosso cidadão há muito detido, outras vezes tentar desbloquear um contrato preso nas malhas burocráticas, as mais das ocasiões tentar garantir um pagamento em atraso a algum exportador luso. E coisas assim, porque a agenda raramente varia muito.
Ele era o nosso cônsul honorário local, porque por ali não se justificava haver uma embaixada residente. Chamemos-lhe “Fonseca”. Era ativo como só alguns desses cônsules são - infelizmente, nem todos, muito longe disso. Empresário, tinha vindo, em 1975, de uma nossa ex-colónia em convulsão. Teve sucesso, ganhou dinheiro, conhecia meio mundo local, dava-se com os políticos que subiam e com os que desciam nas crises, porque a vida é como os alcatruzes da nora e há que permanecer na mó de cima. Para além do “penacho” de representar o país, sentia-se bem o seu amor a Portugal.
O nosso homem - que, infelizmente, já lá vai, há bastantes anos - era, contudo, uma “pérola” rara, no universo dos nossos cônsules honorários. Nesse dia do final dos anos 80, à nossa chegada, lá estava ele, lado a lado com os dignitários locais, que tuteava, gente com quem, muito provavelmente, trocara favores em tempos difíceis. E ali estava a recompensa: o estatuto, a bandeira no carro, a confiança. O Fonseca chamava ministros a sua casa, como viémos a ter o ensejo de observar. E, maravilha das maravilhas!, o Fonseca tinha uma chave da sala VIP do aeroporto da capital, não tendo aí de esperar à porta, na dependência dos inconfiáveis serviços locais.
O Fonseca era, além do mais, um homem muito generoso. Organizou, em honra do governante português, um jantar em sua casa, com tudo o que tinha de melhor: mariscos à discrição, whiskies velhos, vinhos sonantes de anos preciosos. Convidou figuras locais e até um governante de um país de língua portuguesa, de passagem. Éramos algumas dezenas de pessoas, em mesas redondas, com uma extrema abundância de vitualhas.
A casa era estranha, para África. O dia estava ainda luminoso, mas não o usufruíamos. A imensa sala não tinha janelas para o exterior, tudo se passava sob luz artificial, como num cenário. Havia sofás de gosto bizarro e cadeiras rústicas portuguesas, misturadas como um “sideboard” contemporâneo, metalizado. O Fonseca, atento e cuidado ao extremo, circulava entre nós, expeditando os criados, preocupado com o que pudesse faltar.
Soubemos que vivia só. A família estava, há muito, “já” em Portugal. Desde a nossa entrada que notáramos a presença de uma senhora, portuguesa, que o Fonseca nos apresentara como “Madame Ramos”. Andava entre a cozinha e a sala, orientando o pessoal.
A elegância e a beleza da senhora não haviam deixado indiferentes os membros da nossa delegação. Embora de forma respeitosa, os olhares convergiam sobre “Madame Ramos”, que era uns bons trinta anos mais nova que o Fonseca, sempre que ela assomava à sala. O Fonseca, a certo passo, achou ter o dever de explicar: “Esta senhora é viúva de um português. Tenho-a ajudado depois da morte do marido e tem-me dado muito jeito”. Senti um sorriso irónico perpassar pela cara de alguns membros da delegação, mas o Fonseca fez de conta que não tinha percebido.
Houve o jantar, sem a “Madame Ramos” presente nas mesas, muito provavelmente orientando as coisas da cozinha. À saída, connosco bem comidos e bebidos, e muito bem dispostos, voltei-me para o Fonseca e disse, com um sorriso indefinido: “Agradeça por nós o trabalho da “Madame Ramos” “. Ao Fonseca, que estava numa muito boa onda pelo êxito do evento, saiu-lhe então esta: “Fantástica, não é?”. Soltou-se-me o comentário machista: “Oh! Se é! E como é que o meu amigo disse? Dá-lhe “muito jeito”, não é?”. O Fonseca rebentou numa gargalhada: “O doutor sabe-a toda!”.
Saímos para a noite quente africana. Já dentro de um dos carros, prestes a partir para o hotel, abri o vidro para me despedir do Fonseca. Este, cúmplice, com um imenso sorriso, fez-me um sinal de “ótimo” com os dedos de uma mão, acrescentando: “De primeira, doutor, de primeira!”. Um pouco atrás, modesta, entre portas, sem ter tido o ensejo de se despedir de nós, surgiu o vulto elegante de “Madame Ramos”.
3 comentários:
E, O GESTO, É TUDO... que dizer: UM TEXTO MARAVILHOSO!
E com a insistência na historieta da "Madame Ramos", conseguiu reduzir uma figura simpática, útil e fiel ao país, à condição de um burgesso que ia papando uma sujeita à custa das dificuldades desta...
Anónimo das 08.24
"A figura simpática, útil e fiel ao país" não tinha a "sujeita" algemada.
O Fonseca é que lhe dava muito jeito, pena ser tão gabarolas.
Madames Ramos há muitas...sempre tão prestáveis com os maridos de outras!
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