Todos nos lembramos daquele período, após o colapso da União Soviética, durante o qual se criou, no mundo ocidental, a ilusão de que uma espécie de onda democrática se iria abater inevitavelmente sobre o planeta, num “template” de bem-estar, cooperação e respeito coletivo por uma ordem pactuada e dialogada. Era o “fim da História”, uma espécie de “amanhãs que cantam” liberais.
A ilusão foi breve, como são sempre todas as ilusões. A desaparição de alguns fatores constrangentes que a Guerra Fria tinha imposto ao mundo viria, afinal, a trazer ao de cima certas tensões abafadas, revelando feridas que não estavam fechadas, potenciando mesmo novos conflitos. Desde logo, no próprio continente europeu, como foi o caso da antiga Jugoslávia.
Por algum tempo, a Europa – ou quem falava em nome dela – achou que o seu projeto económico integrador, de inegável sucesso nos seus “trinta anos gloriosos”, estava à altura de todos esses desafios e podia finalmente transmutá-la, no novo circunstancialismo, numa potência política, não poupemos nas palavras, num grande poder mundial.
Acrescia que, do lado de lá do Atlântico estava um parceiro que, com ela, partilhava os mesmos valores civilizacionais, embora não deixasse de ser um forte concorrente económico. Mas a globalização, isto é, o capitalismo feito projeto mundial, aí estava para potenciar, quase sem limites de ambição, as vantagens da liberdade das trocas de tudo, numa fórmula em que “todos ganhavam” - desde o mundo desenvolvido àquele que procurava desenvolver-se. Além disso, surgia uma interessante janela de oportunidade estratégica: a Rússia estava em óbvia fragilidade, podendo mesmo ser objeto de alguma “cooptação” pontual e, lá longe, a China aparecia como um formidável mercado, cheio de oportunidades, com o ligeiro “senão” do seu intratável regime. Mas a Europa, e muito mais os EUA, já tinham dado amplas mostras de que, por “realpolitik”, os princípios não lhe atrapalhavam os negócios – das ditaduras petrolíferas do Golfo à África, da América Latina a alguma Ásia.
A ambição da Europa era legítima: aproveitar o declínio de Moscovo para fazer coincidir, cada vez mais, o seu projeto integrador com a sua geografia. Isso levou aos alargamentos – que se pensava irem ser uma espécie de “colonização” política do centro e leste do continente, mas que acabariam por ser, como quase todos os anteriores alargamentos tinham afinal sido, a importação de diversidades idiossincráticas que iriam influir na unidade funcional do projeto. E essa ambição fez mesmo caminhar os mais ousados para um aprofundamento com uma moeda comum no seu centro. Tocava-se assim já o “core” das soberanias e isso, para alguns, foi “a bridge too far”.
O mundo, contudo, não teve a gentileza de parar para deixar maturar o projeto europeu. Uma crise financeira mostrou as suas insuficiências estruturais, as vantagens distribuíam-se de forma não equilibrada, o gigantismo conduziu à emergência de crescentes clivagens internas. Medos vários, perceções diferentes sobre regras, vizinhanças próximas vistas de forma diversa, lutas pelo poder decisório, tudo isso abalou o projeto – o qual, repita-se, era magnífico. Enfim, nada de novo face a um passado, feito da prevalência de poderes nacionais, que alguns ingenuamente pensavam remetidos para o caixote do lixo da História, para usar a fórmula de Marx.
Com outros cenários a entrarem em convulsão, do Magreb ao Machrek, neste caso por evidente irresponsabilidade americana, com ondas terroristas, tensões migratórias, crises de refugiados e pulsões identitárias, a Europa acabou por ser fortemente sacudida. Um dia, Londres decidiu fazer o último dos “opt-outs” que sempre tinham deliciado os britânicos. Os EUA elegeram um líder que favorecia abertamente a desunião europeia, desprezava a aliança transatlântica e punha em causa o sistema multilateral. A Rússia torna-se mais agressiva e ameaça ser mais intrusiva. E, cereja no bolo da crise, as lideranças da França e Alemanha fragilizam-se. Com que Europa pode a Europa vir a contar?
3 comentários:
ninguém apresenta soluções?!
Se calhar o erro é continuar a pensar que esta dita "União" Europeia é a Europa.
Nunca o foi. E pelos vistos cada vez menos o será.
Curioso é que na própria mentora de esta "união" já aparece quem defenda o "opt-out" germânico, gerxit.
Que tal propor a "Europa dos Afectos" ?!
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