Passei lá a pé, esta manhã. No Jardim de S. Lázaro, no Porto, junto à biblioteca. E, de repente, lembrei-me! Foi ali, exatamente ali, naquele passeio, como diria, enfaticamente, Hermano Saraiva, para os lugares da sua história com letra pequena.
Deve ter sido em 1967. À época, andava pelo Porto, a fingir que estudava. Numa matinée de sábado, no Cinema Trindade, vi-a. Era lindíssima, uns olhos verdes como nunca mais encontrei, cabelo loiro a cair pelos ombros. No resto, muito bem “desenhada”. Ao lado, um pai de farto bigode, pelo porte e peito saído era talvez militar, olhar perscrutante, mirando em redor. E uma mãe, de quem me não ficou réstea de nota na memória. Eu e ela (a filha, não a mãe, claro) trocámos um olhar breve, com aquele segundo a mais, no intervalo da fita. Pareceu-me que sorriu, mas pode ter sido só “wishful thinking” (na altura, eu ainda não conhecia essa expressão da perceção ao sabor do desejo). À saída, tentei segui-los, mas perdi-os ali pela Picaria.
Passaram meses. Num outro sábado, na Praça, no Imperial, lá estava ela com o duo paternal à ilharga, numa mesa logo à entrada, logo depois de se passar sob a águia. Belíssima, tal como antes. Nos notáveis vitrais do fundo da sala, o casal em tête-à-tête que por lá está era já eu e ela. Dessa vez, tenho a certeza de que me sorriu um pouco mais, embora ao de leve (mas já passou tanto tempo, que nem sei bem...).
As tardes de sábado, naquele café, eram sempre de enchente (hoje é um McDonald’s...). Bem tentei arranjar uma mesa que me permitisse “to catch the eye” da jovem, para marcar terreno. Mas não consegui.
Entretanto, chegaram dois comparsas com quem eu tinha marcado encontro por ali, para irmos já não sei onde, compromisso que não podia desconvocar.
Minutos depois, casal e filha levantaram-se e saíram. Pedi um minuto aos meus estupefactos camaradas e fui atrás do trio. Atravessaram a Praça e, em frente à Sá Reis, apanharam o 6 para Monte dos Burgos. Ela não me viu e, por instantes, fiquei especado no passeio.
“Fui” pela linha do elétrico. Viveria lá pelo Rosário, onde ele passava a toda a hora e eu passava a pé todos os dias? Ou pela igreja de Cedofeita, já perto do Diu, no cruzamento com a Boavista, onde eu perdia as tardes à conversa? Ela tinha aí uns 16 ou 17 anos. Andaria no Carolina? Às tantas, morava jácna Ramada Alta, onde eu tinha uma tia. Ou em Oliveira Monteiro, onde eu recebia a minha mesada. Ou então lá para a Prelada, onde, quando abonado, eu ia a umas festas noturnas inconfessáveis? Ou seria no fim da linha, já na Circunvalação? Não saberia. Desolado, regressei ao Imperial.
Um dia, ia por S. Lázaro, num autocarro, precisamente com um desses amigos, a quem eu tinha entretanto contado a história do meu romance virtual com aquela ilusiva pequena, quando a vi, sozinha, a caminhar pelo passeio. Estudaria no Esperança? Dei um salto (lembras-te, Albano?), pedi ao motorista para parar fora da paragem (uma emergência é uma emergência, caramba!) e fui ter com ela. Não faço ideia se me reconheceu dos olhares passados, mas lá corar corou, quando lhe falei. Manteve-se de cabeça baixa, sorridente mas silenciosa, até aos Poveiros, enquanto eu tentava sacar-lhe conversa. De repente, reagiu. Embora sem grande convicção, disse-me que o pai não gostava que falasse com estranhos.
Mas nem imaginam como me disse isso! Com uma voz aflautada, a gaguejar imenso. Era gaga! Mas gaga a sério! Da-da-que-que-las que lhe não lhe sai uma palavra direita. E, além disso, tinha um tom de voz impossível, agudo, bem desagradável. Pela Passos Manuel abaixo, eu já não sabia o que havia de fazer. Ela continuava a ser muito bonita, embora então, confesso, já um pouco menos. Aí pelo Coliseu, começava claramente a dar-me uma “abébia”, deixando claro que as coisas iriam no sentido que eu quisesse. Mas, meu deus!, aquela maneira de falar, estragava tudo!
Já não sei como saí de cena! Sei que não fui cruel, que fui correto e que inventei qualquer coisa para zarpar sem chocar aquela beleza soluçante, cujo nome, que então me disse, já esqueci há muito. Confesso que este episódio me ficou para sempre, como um imenso “balde de água fria”. Contá-lo, nos dias que correm, é talvez politicamente incorreto, mas a realidade é o que foi.
Um dia, bastante tempo mais tarde, relatei a história num grupo, no Porto. Uma amiga disse-me: “Bonita, olhos verdes, voz aflautada e imensamente gaga? Conheço-a! Sei quem é!” A conversa com a minha amiga também já teve lugar há muito, mas como ela passa muitas vezes por esta página, pergunto-lhe agora: lembras-te da história, Milú?