segunda-feira, julho 01, 2024

Na morte do Fausto


Tinha então o ar típico de um menino "certinho", acabado de aterrar em Lisboa, vindo da Angola onde nascera para a música e concluíra o liceu. Projetava uma imensa simpatia, um sorriso sereno que, com naturalidade, construia amizades. Tínhamos exatamente a mesma idade (nós, a malta de 48, não é, Zé Ferreira Fernandes?), os mesmos 20 anos que Paul Nizan achava que não eram "a idade mais bela da vida", mas estava errado.

Naquele ambiente universitário atípico, há 56 anos, naquele que era o Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina - leram bem, "ultramarina" -, uma escola de formação de quadros para a administração colonial, que Adriano Moreira esforçadamente procurava transformar numa incipiente escola de ciências sociais, recordo-me dele se ter integrado muito bem, fazendo mesmo a "ponte" entre os filhos, mais ou menos rebeldes, de uma Lisboa "social" que por ali andavam a queimar os dias nas mesas de "king" e a turbamulta associativa que então se divertia a subverter a ordem salazarenta que se respirava na maioria dos setores da casa. 

Pelos muitos poisos de conversas no Palácio Burnay, à Junqueira, tal como em noitadas da Rua da Paz, essa nova e improvável versão meio anarca da "Casa dos Estudantes do Império", onde imperavam a política, os copos e grandes tainas, construí com ele uma amizade para a vida.

Não nos víamos muito. Antes da pandemia, com o João Paulo Guerra, calhou irmos almoçar na sua "Tertúla do Silêncio", no Paço do Lumiar, e também jantar, com famílias, no "Miudinho", em Carnide. Há uns anos, consegui juntá-lo com alguns outros amigos do tempo da Junqueira num animado almoço em minha casa. Um dia, telefonou-me a desculpar-se por ter utilizado o meu nome, sem antes me consultar, num programa da Fátima Campos Ferreira. (Ora eu tinha ficado "flattered" pela lembrança dele). Mais recentemente, liguei-lhe a saber da saúde, que sabia debilitada. 

A pessoa que motiva este texto chama-se Carlos Fausto Bordalo Gomes Dias. Todos o conhecem: é o Fausto, do "Por este rio acima". Morreu hoje, ao que me diz agora Viriato Teles, que sobre ele está a fazer um livro e com quem falara há semanas sobre o Fausto.

Nesse mesmo e inesquecível ano de1968, ambos fizemos parte da mais radical lista associativa que aquele venerando ISCSPU vira nascer. E ganhámos, numas eleições divertidas, bem coloridas, com gente muito diversa, mulheres lindas, sob uma bandeira programática que fora beber o essencial ao maio parisiense, escassos meses antes. Quem, por esse tempo, leu o (proibidíssimo!) n° 1 da revista "Ibis" sabe do que estou a falar.

A nossa vitória, contudo, viria a ser algo pírrica: semanas depois, o Ministério da Educação Nacional informou que toda a lista eleita fora "não homologada", porque, como era a regra da época, a democracia parava à porta da vontade arbitrária da ditadura. E o ditador de turno, precisamente por esses dias, até mudara: chamava-se Marcelo Caetano. A Associação viria mesmo a ser saqueada, à nossa frente, pelos esbirros do capitão Maltez e o sonho lindo foi adiado, com a raiva a subir.

O Fausto, já por essa altura, compunha coisas musicais bem interessantes, embora ele talvez se reconheça menos numa canção em que se falava de "meninos com olhos de cratera", com letra do João Bettencourt da Câmara, que então gravou num (hoje raríssimo!) 45 rotações. O mesmo Fausto que cantava nos "convívios" da Junqueira, em tardes em que o Tossán e o José Carlos de Vasconcelos declamavam o neo-realismo empolgado das poesias das "notícias do bloqueio". O Fausto que então namorou a Rita Vinhas, a mais bonita colega das nossas tardes do magnífico jardim e da "sala verde". (Um beijo para ti, Rita, que ainda há pouco tempo me perguntavas pelo Fausto).

Dois anos mais tarde, o Fausto e eu voltámos a ganhar as eleições para a Associação. E, dessa vez, para alguma surpresa nossa, o ministério não ofereceu quaisquer objeções à lista. Eu era presidente da Assembleia Geral e o Fausto era membro da direção. O ano académico foi muito turbulento. No meu caso, tinha mesmo sido objeto de um processo disciplinar.

No ano seguinte, apresentámos uma nova candidatura. E voltámos a ganhar. Só que, dessa vez, o presidente da Assembleia Geral cessante (isto é, eu) recebeu uma carta do Secretário-Geral do ministério, num tom muito formal, informando "V. Exa. de que a lista vencedora nas eleições para os corpos gerentes da Associação Académica do ISCSPU foi homologada por despacho de S. Exa. o Ministro da Educação Nacional". Tudo igual ao ano anterior? Não. O texto não acabava aí e acrescentava "... , com exceção dos senhores Francisco Manuel Seixas da Costa e Carlos Fausto Bordalo Gomes Dias, que estão superiormente impedidos de tomar posse".

A "medalha" de termos sido "não homologados" pelos dois ministros da Educação da ditadura já na sua versão marcelista, Hermano Saraiva e Veiga Simão (este último que o destino me levaria a cruzar à mesa do mesmo governo, um quarto de século mais tarde), ninguém nos tira, ao Fausto e a mim.

O Fausto, além de se dedicar ao ensino, teve a carreira musical brilhante que o país conhece. Construíu alguns dos álbuns mais notáveis da música portuguesa contemporânea e, amizades à parte, faz hoje parte desse (julgo) indiscutível "top five" que integra com Sérgio Godinho, José Afonso, José Mário Branco e Jorge Palma.

Lembro-o com muita saudade, na hora da sua morte. 

4 comentários:

Anónimo disse...

Uma pena, uma enorme perda. mas vamos continuar a ouvir como até aqui.

Flor disse...

Belíssimo texto. Não fazia a mais pequena ideia do que escondia atrás do seu nome artístico FAUSTO. Grata.

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

O Sr. Embaixador sempre a celebrar a amizade em grande, é um gosto imenso ler.

Um grande viva a Fausto!

Francisco de Sousa Rodrigues disse...
Este comentário foi removido pelo autor.

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