segunda-feira, julho 29, 2024

O meu romance


Há mais de quarenta anos, comecei a escrever um romance, meio policial, meio de intriga política. Por essa época, eu era diplomata em Angola e, ingenuamente achando que a tudo podia chegar na vida, lancei-me uma noite à escrita. Uma noite, porque foi só isso e nada mais.

A trama era ousada. Um comando da Unita tinha-se introduzido em Luanda, durante a guerra civil que então se vivia em Angola, com vista a executar um golpe de mão no palácio presidencial, dali roubando o cadáver do "guia imortal da revolução angolana", Agostinho Neto. À época, era ali que estava guardado o seu corpo, embalsamado pelos soviéticos. Fazer desaparecer o símbolo central do regime constituía um imenso desprestígio para o Estado angolano, demonstrava a fragilidade do poder do MPLA e tinha um efeito de escândalo à escala mundial.

A operação envolvia um diplomata português, forçado a colaborar por via de uma chantagem, bem como uma empresa de transportes, também portuguesa mas com ligações aos serviços secretos franceses, que se encarregaria de "exfiltrar" o cadáver. Havia também pelo meio um ex-Pide, uma "Mata Hari" luso-angolana e outra gente desse género, entre o exótico e o pretensamente interessante. O esquema estava desenhado. Só faltava ... preenchê-lo com palavras escritas.

Disse acima que comecei a escrever o romance. Esse começo foi breve: há dias, no meio de papelada antiga, encontrei as suas únicas quatro páginas manuscritas. O romance começou e acabou ali. Não prossegui na escrita porque, posso hoje imaginar, num oportuno e feliz ataque de bom senso, devo ter percebido que aquela não era, decididamente, a minha vocação. E se assim pensei, melhor o fiz: passei a dedicar-me a outras coisas.

A cena inicial do frustrado romance, a única que havia sido passada a papel, tinha lugar no conhecido cruzamento de dois corredores que atravessam o terceiro andar do Palácio das Necessidades, junto ao gabinete do ministro. O nosso diplomata tinha sido chamado a Lisboa e, enquanto fazia horas para a audiência com o ministro, ia encontrando por ali vários colegas, que há muito o não viam. Enquanto falava com um, outro aproximava-se e o trio prolongava-se, por instantes, à conversa. Até que o primeiro interlocutor ia à sua vida. O nosso diplomata continuava então a trocar impressões com o segundo colega. Porém, nesse entretanto, aparecia um terceiro colega, lá vinha um novo abraço, e a cena repetia-se. O homem, coitado, retido por esses reencontros sucessivos, quase não conseguia sair do sítio! Uma das figuras retratadas na descrição, conhecida por expressões de genuína cordialidade mas com um inescapável vigor físico, era a caricatura do embaixador Gaspar da Silva. Outra, pelo odor a álcool que sempre lhe marcava o bafo pós-pandrial, desenhava um outro colega cujo nome o texto optou por não revelar. A cena tinha, aliás, foros de colar bem com a realidade: é que tinha realmente acontecido comigo, naquele mesmo lugar.

Costuma ser na praia, de pé à beira-água, ao deparar com alguns conhecidos que quase só encontro uma vez por ano, que esta primeira cena do meu "romance" ganha, a cada verão, foros de realidade. Mas, felizmente, por aqui ninguém o leu. Sorte a minha! 

1 comentário:

amadeu moura disse...

Gaspar da Silva, no inicio dos anos setenta, foi consul geral em Montreal. Foi uma lufada de ar fresco no bafiento MNE da epoca. Durou pouco tempo no cargo. Os salazarentos da epoca fizeram-lhe a folha com queixas para as Necessidades.

Gaspar da Silva teve a ousadia de contactar os membros do MDPM (Movimento Democratico Portugues de Montreal) para uma troca de ideias sobre o futuro de um Portugal Democratico. Honra lhe seja feita pela ousadia da epoca.

Foram raros os diplomatas portugueses que se afirmavam como resistentes ao salazarismo.

Tarde do dia de Consoada