sábado, julho 13, 2024

Ao gosto do freguês


Há dias, na guerra da Ucrânia, um míssil atingiu um hospital pediátrico na cidade de Kiev. 

Na comunicação social, surgiram de imediato duas teorias contraditórias. 

A primeira, e bem plausível, é a de que se tratou de um míssil russo, restando neste caso saber se se tratou de um ataque deliberado ao hospital (o que configuraria um sinistro crime de guerra) ou se foi um erro operacional, pelo facto do míssil se destinar a uma instalação de natureza militar próxima, alegadamente disfarçada em zona civil. 

A segunda teoria, menos plausível mas potencialmente credibilizada por alguns incidentes anteriores, é a de que poderia ter-se tratado de um míssil de defesa ucraniano, desviado do seu curso, por erro técnico. Mesmo se esse fosse o caso, valeria sempre a pena lembrar que este tipo de incidentes só ocorrem porque existe um contexto global de agressão russa à Ucrânia. 

Excluo ainda, por obscena, a tese (teórica) de que poderia tratar-se de um ato de "falsa bandeira" - ato levado a cabo por uma das forças em disputa, com o objetivo de inculpar a outra. (O suposto ataque bósnio ao mercado de Serajevo, 1994, para acusar os sérvios, continua a marcar o imaginário internacional como exemplo de possível ato de "falsa bandeira"). 

Entre nós, nos meios de comunicação social, assistiu-se de imediato a uma campanha de defesa de ambas as teses, com apoio de imagens que, em alguns casos, foram acusadas de serem distorcidas ou falsificadas. O apuramento da verdade ficará assim a cargo de um "rigoroso inquérito" internacional, com resultado para as calendas. 

Para o que aqui me interessa, gostava de assinalar o facto de, na nossa comunicação social, em regra geral, infelizmente não ter havido surpresas: quem regularmente se mostra ao lado da causa ucraniana não hesitou um segundo em atribuir a culpa do incidente à Rússia; aqueles que se sempre se mostram mais abertos a escutar as justificações de Moscovo, e não surgem automaticamente ao lado da Ucrânia e dos seus parceiros ocidentais, logo se abriram à hipótese de se tratar de um míssil ucraniano desviado. Muito poucos tiveram a humildade de não emitir opinião, dizendo: não sei, não há elementos seguros para opinar, sem colocar um desculpabilizante "mas" a seguir. 

Teria feito muito bem à imagem do comentariado sobre questões internacionais que anda por aí, por uma vez, ver-se alguém da ala "ucranófila" dar algum crédito à tese que isentava Moscovo de responsabilidades ou alguém do núcleo tido por mais "russófilo" admitir que a responsabilidade do ataque seria, com grande probabilidade, das forças de Putin. 

Mas não, isso seria esperar por sapatos de defunto.

1 comentário:

josé ricardo disse...

O que me espanta, no comentário televisivo sobre a guerra da Ucrânia, é não haver ninguém que nos faça refletir sobre o seguinte: Putin acordou um dia e resolveu invadir a Ucrânia? Qual o histórico sobre o qual se sustenta esta invasão (fim da guerra fria, Nato, acordos, encontros, Estados Unidos-Rússia, líderes, oposição na Ucrânia, etc.)? Decididamente, nesta fase do conflito comunicacional, é o disparate que vence.
De uma vez por todas, o sr. Embaixador é, talvez, a pessoa mais indicada para iniciar, nesta barafunda televisiva sobre esta guerra, este tipo de análise. E não tenha receio: ninguém o acusará de ser russo (penso até que, se tal acontecesse, serviria mais como medalha do que como crítica). Para mim, bastava que fosse igual na televisão ao que é aqui neste seu espaço.

Os factos são o que são

Temos direito às nossas opiniões, não temos direito aos nossos factos. Quantos manifestantes estiveram nas manifestações de ontem, em Paris?...