quarta-feira, julho 24, 2024

País de marinheiros


O José, chamemos-lhe assim, tinha sido meu colega na escola primária, lá por Vila Real. Ele era aluno do professor Maduro, eu era do Pena. Mais velho do que eu, ficámos desde aí amigos para a vida.

Para quem, como ele, não era muito dedicado aos livros, os estudos tinham terminado mais cedo. Teve de fazer pela vida, com tropa africana à mistura, depois já com mulher e filhos a sustento.

Ia-o encontrando sempre, nas minhas visitas à cidade, pelos Natais e outras férias. Falávamos cada vez mais do passado e de alguns amigos dentro dele, mas também de coisas do quotidiano. Pouco mais. Ele ia seguindo a minha itinerância por algum mundo, eu perguntava-lhe pelo trabalho, pela família e pela saúde. Dava para encher muitos minutos de conversa.

Por muito tempo, eu e o José não falávamos de política, nos nossos encontros de fim de tarde, na esquina da Gomes ou, à noite, num café onde calhava passarmos, na Senhora da Conceição. Ele sabia bem por onde eu aí andava, eu não cuidava minimamente em conhecer as suas opções.

Um dia - e ja lá vão umas décadas -, num desses contactos breves, detetei na expressão do José algo de diferente, diria mesmo que algum embaraço. De súbito, disse-me, sem um evidente pretexto: "Sabes, mudei-me para a Araucária". Era um bairro social recente, de aspeto agradável, numa zona que os vila-realenses dizem ser "ao lado do circuito". Perguntei-lhe se a nova casa era simpática. Que sim, que era, era um T qualquer coisa, tudo novo, a estrear, atribuído pela Câmara.

Ao dar-lhe os parabéns, senti-o um pouco retraído. Em voz baixa, disse-me: "Sabes, lá tive de entrar para o barco..." O "barco"? Não percebi e a minha cara deve ter-lhe transmitido isso mesmo. O José foi então mais explícito: "Entrei para o partido...". Não perguntei qual. Era naturalmente aquele que então estava no poder, lá pela cidade.

O José já lá vai, há muito. Lembro-me bem do seu velório. Foi na igreja da Araucária. Era ali que o barco tinha amarado.

4 comentários:

Tony disse...

Lindo Réquiem, Sr. Embaixador.

Anónimo disse...

É assim de norte a sul.

Anónimo disse...

É assim de norte a sul.

Flor disse...

Lindo texto.

Os factos são o que são

Temos direito às nossas opiniões, não temos direito aos nossos factos. Quantos manifestantes estiveram nas manifestações de ontem, em Paris?...