Naquele final de tarde de 2009, em Paris, na residência em que Calouste Gulbenkian guardou por muitos anos a sua fabulosa coleção de arte, percebi um pouco melhor o que a nossa cultura podia representar para o mundo exterior à língua portuguesa.
Cleonice Berardinelli, a decana dos estudos portugueses no Brasil, num francês límpido e culto, com uma assertividade e um rigor que desmentiam por completo o que o calendário lhe atribuía como idade, revelou com extremo brilho, para um interessado público francês, a universalidade de Camões. Ela era ali o que do melhor a lusofilia cultural nos podia oferecer.
Eu tinha nascido para Cleonice ao tempo em que fui embaixador luso por terras do Brasil, a partir de 2005. Quem a “apresentou”, ainda antes de a conhecer pessoalmente, foi João Pedro Garcia, diretor internacional da Fundação Calouste Gulbenkian, que me havia chamado a atenção para o trabalho notável que a professora Cleonice Berardinelli vinha a fazer, por décadas, no meio académico e editorial brasileiro, pela literatura portuguesa.
Encontrando-a depois, ouvindo-lhe em muitas ocasiões o discurso solto, pontuado por um inesquecível sorriso, belo e ladino, servido por uma memória prodigiosa e um sentido raro de observação, dei-me conta de estar ali o melhor que Portugal, num discreto e às vezes involuntário proselitismo, podia receber de quem se sentia tributário da riqueza gerada através da língua que nos é comum.
Tive um dia o gosto de ver aprovada pelo Estado português a proposta que fiz para que a Cleonice fosse atribuída a mais alta distinção que, nas “artes e letras”, Portugal lhe poderia conceder: a Grã-Cruz da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada. E guardo ainda as palavras com que, no ambiente único do Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro, em 2006, ela recebeu essas insígnias, reiterando, como se tal fosse necessário, o amor à literatura a que dedicou toda a sua vida.
A sua graça e o seu humor estão bem representados naquilo que disse quando, em 2009, ascendeu a uma vaga aberta entre os 40 “imortais” da Academia Brasileira de Letras: “Mas eu sou quase uma vaga…”
A minha amiga Cleonice Berardinelli - porque tive o privilégio de ser seu amigo - desapareceu agora, aos 106 anos, depois de algum tempo já de afastamento do mundo.
Portugal honra-se em ter podido contar Cleonice Berardinelli entre as suas amizades mais fiéis. Cleonice foi, verdadeiramente, o nosso amor brasileiro.
2 comentários:
Sr. Embaixador, muito obrigada por me ter dado a conhecer essa Digna Senhora. Que a sua alma descanse em Paz!
Meu caro Francisco,
Na Terça-feira estarei no Rio de Janeiro para participar numa homenagem a uma das pessoas mais importantes da minha vida profissional e sobretudo pessoal.
Agradeço-lhe a menção do meu nome. Fui apenas um mensageiro.
Um abraço
JPGarcia
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