quarta-feira, fevereiro 15, 2023

O fim da Cultura e o meu Aurelião


Fico sempre triste quando sei do fim de uma livraria. Leio agora que a rede de livrarias Cultura, no Brasil, entrou em falência. 

Muitas e belas horas passei em algumas dessas lojas, bastando-me olhar para qualquer estante em minha casa para logo descortinar resultados dessas peregrinações.

A mais bela das Livraria Cultura era em S. Paulo, na Avenida Paulista (na imagem), espaço que eu já conhecia como os dedos das minhas mãos, sabendo onde encontrar tudo aquilo que me interessava. 

Em Brasília, onde vivia, não obstante a Cultura ser num shopping um pouco distante de minha casa, em muitos fins de semana me passeei de lá, saindo ajoujado de sacos com coisas que li e com outras que apenas tive o imenso gosto de comprar - porque, aprendi, só há uma coisa melhor do que ler um livro: comprá-lo!

Um dia, ocorreu um episódio curioso. Como sou um maníaco de dicionários, ainda antes de ir viver para o Brasil tinha a intenção de vir adquirir dois dicionários brasileiros clássicos: o Aurélio e o Houaiss. 

Numa das minhas visitas à Cultura, em Brasília, encantei-me por uma recente edição do Aurélio, o monumental trabalho de Aurélio Buarque de Holanda (a relação familiar com o Chico do mesmo nome não é próxima), num só volume, vulgarmente conhecido pelo “Aurelião”. Curiosamente, nem era muito caro nem muito pesado, dado ser em papel bíblia, não obstante as suas 2020 páginas.

Na mesma noite, depois do jantar, perdi uma boa meia hora na curiosa busca da definição brasileira para certos vocábulos bem portugueses, saltitando por aquele imenso volume. 

A certa altura, tive uma surpresa: uma palavra bastante banal faltava no dicionário! C’os diabos! Não era possível! Foi então que dei conta de que não figuravam, nesse ponto do volume, várias páginas - outras faltariam num local correspondente, na outra parte de um caderno que, por lapso, tivera essa falha.

No dia seguinte, logo de manhã, pedi ao meu motorista, ao Daniel, que, com o recibo da compra na mão, fosse à Cultura apresentar o problema e pedir a troca do livro. 

Ao final do dia, ao trazer-me de volta a casa, ele contou-me a reação do empregado da Cultura que o atendeu: “Esse seu patrão deve ser muito estranho! Veio aqui ontem, comprou um livro de mais de duas mil páginas e você vem, na manhã seguinte, dizer que faltam algumas folhas. Como é que ele deu conta disso? O homem passou toda a noite a contá-las?”

2 comentários:

manuel campos disse...


Aqui em casa partilhamos completamente esse sentimento.
E somos incapazes de nos desfazermos de um livro.
Algumas vezes caímos na asneira de emprestar livros, do que muito nos arrependemos, nem toda a gente os lê com o mesmo cuidado e era frequente voltarem com a lombada meio destroçada e folhas dobradas para servir de marca.
Depois quem ficava “destroçado” éramos nós e quem ficava “marcado” eram eles.
Seria assim tão difícil perceber que, se o livro ía em optimo estado era porque assim o tínhamos mantido, que era suposto ser devolvido no mesmo estado?

Acabámos por seguir os “ensinamentos” de um tio-avô meu por afinidade (que não cheguei a conhecer), talvez porque herdei da minha tia-avó viúva dele uma mobília de escritório antiga, das que havia um pouco por todas as casas da média burguesia de há 100 anos atrás.
Grande coleccionador de livros sobre Coimbra, a sua biblioteca foi em devido tempo doada à Universidade (certamente há mais de 60 anos).
Na estante dessa mobília que agora tenho no meu escritório, aí algures pelo país, tinha um letreiro numa prateleira a dizer “Não empresto livros, mais vale perder um amigo que um livro”.
Não sei até que ponto era uma “boutade” ou não, a realidade é que ninguém se atrevia a pedir-lhe nada, segundo contava a minha tia-avó.

Aqui há uns tempos deparei-me com um livro que comprei por 1€ ali no alfarrabista das Rua das Portas de Sto Antão, livro de um bem conhecido economista já falecido há muitos anos, comprei-o.
Ao abri-lo deparo-me com uma dedicatória a alguém que eu tinha conhecido muito bem, um nome menos vulgar e facilmente associável ao autor do livro.
Essa pessoa tinha feito uma carreira profissional interessante, sempre muito ligada ao tal autor da dedicatória, que tinha sido uma espécie de “padrinho” dele anos a fio.
A minha primeira ideia foi que o meu conhecido tivesse falecido, já não falava com ele há uns bons tempos e não havia muita gente em comum que me pudesse ter informado.
Portanto a família teria vendido “a peso” (para estar ali a 1€…) a sua também vasta biblioteca.
Mas não, soube ainda nesse dia que estava de excelente saúde.
Confesso que me faz confusão como é que alguém se desfaz de um livro, naquelas condições, de alguém a quem devia tanto na vida.
E sem sequer se dar ao trabalho mínimo de rasgar a página de abertura com a tal dedicatória.


Flor disse...

Teve graça!! Mas o Sr. Embaixador não referiu se o empregado lhe trocou o livro? Há uma edição do livro com um CD, carote mas também 2 mil e tal páginas, é obra!

Genial

Devo dizer que, há uns anos, quando vi publicado este título, passou-me um ligeiro frio pela espinha. O jornalista que o construiu deve ter ...