Há cerca de um ano, no início das hostilidades na Ucrânia, a revista Visão pediu-me um artigo sobre a conjuntura. À época, não o reproduzi aqui, porque, naturalmente, ele só estava acessível a quem adquirisse a revista. Publico-o agora, para testar se o texto resistiu ao tempo.
O que correu mal?
Passaram já 30 anos. A nacionalidade dele era inglesa. A sua ascendência, pelo nome, era de muito longe dali, de um país báltico. Estávamos em Londres, na “Chatham House”, o instituto britânico de relações internacionais, num intervalo para café, durante um seminário onde se discutia algo que tinha a ver com o fim da União Soviética, que tinha ocorrido poucos meses antes. Era o primeiro semestre de 1992.
“Eles não vão esquecer. E vão voltar, mais violentos do que antes. Nós conhecemo-los bem”. O meu interlocutor não tinha ilusões quanto aos russos. “Moscovo”, para ele, era o poder que tinha esmagado a sua nacionalidade originária. Uma coisa tinha ele por certo: a nova Rússia nunca seria democrática, por muito que tentasse fazer passar-se por isso. E olharia sempre para a sua periferia com um misto de arrogância, de desconfiança e desejo de fazer voltar as coisas atrás.
Quatro anos depois, em Varsóvia, fui visitar o chefe da diplomacia polaca, Bronislaw Geremek. Um curto encontro de cortesia transformou-se, de um momento para o outro, numa longa lição de História, quando estimulei a sua opinião sobre a evolução da nova Rússia.
A Polónia, por essa altura, ainda não fazia parte da NATO e da União Europeia. A fé de Geremek na capacidade de regeneração democrática do regime russo era basicamente idêntica à do meu anterior interlocutor de Londres. “Historicamente, a liberdade não mobiliza os russos. A alma da Rússia é a autoridade”.
Por estes dias, lembrei-me de uma outra frase que o MNE polaco então me disse: “O futuro da Ucrânia é a grande preocupação da politica externa da Polónia”. Na altura, achei aquilo algo excessivo. Olhando o mapa e o correr dos tempos, percebi. O papel axial que Varsóvia tem vindo a desempenhar na tentativa de ancoragem da Ucrânia ao mundo ocidental está na linha dessa preocupação.
Ao longo da vida, tive a sorte de conseguir falar, sem a capa das conversas oficiais, com gente de quase todos os países que foram gerados pela implosão da União Soviética, bem como de quantos dela havia sido parceiros no mundo do “socialismo real”.
A atitude face à Rússia de todas essas pessoas não foi a mesma, mas tinha quase sempre um ponto comum: a ideia de que lhes era essencial reforçar as respetivas nacionalidades, como forma de evitar que uma pulsão centrípeta de Moscovo pudesse fazer voltar atrás o relógio da História. Naqueles que partilhavam a nossa geografia continental, vi uma vontade, praticamente unânime, de integrar as instituições europeias e euro-atlânticas, como escudo para o futuro.
Muitas vezes, confesso, impressionou-me a imediata acrimónia que alguns exalavam quando o nome da Rússia vinha à baila, dando comigo a reagir intimamente ao que interpretava com um exagero nacionalista. Com o tempo, contudo, fui dando por adquirido que é praticamente impossível colocarmo-nos no lugar de quantos passaram por experiências históricas de grande dimensão traumática.
Nas poucas ocasiões em que estive na Rússia, em conversas fora dos circuitos oficiais que consegui ter, ou com russos que fui cruzando pelo mundo, mantive sempre uma imensa curiosidade em tentar perceber como viviam os seus novos tempos. Anotei o quase embaraço como, às vezes com grande humildade e até algum esforçado humor, me relatavam as desventuras da sociedade russa contemporânea, quase sempre sem apostarem uma grande esperança num melhor futuro. Raramente lhes consegui arrancar elogios a Gorbachev, sentia-os hesitantes a valorizarem Yeltsin, notei-os sempre divididos quanto a Putin. Mas todos reconheciam que era neste último líder que muitos dos seus compatriotas depositavam alguma esperança. E que daí vinha muito da força de Putin.
O fim da distensão
Passaram já 20 anos. Quando, em 2002, fui para Viena dirigir a então presidência portuguesa da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) sabia que a Rússia constituía, com os Estados Unidos, o “duopólio” que determinava o andamento da organização.
Vinha de Nova Iorque, de uma cidade marcada pelo recente “11 de setembro”, tragédia que, por algum tempo, tinha feito abater bandeiras no seio da ONU, onde eu era embaixador. Portugal fazia ali parte da “troika” de observadores do processo de paz em Angola, precisamente com os EUA e a Rússia. O último almoço a três que tinha organizado em minha casa correra num ambiente simpático. O convidado russo chamava-se Sergei Lavrov.
O ambiente que fui encontrar em Viena tinha uma tensão bem maior, polarizada nos representantes dessas mesmas duas potências.
Como tínhamos chegado até ali? O que é que tinha corrido mal?
Nos anos 70, entre o mundo ocidental e a União Soviética, dois poderes que, por décadas, tinham mantido entre si uma forte rivalidade militar no quadro da Guerra Fria, de paralelo com um esforço de proselitismo dos seus projetos à escala global, havia começado a desenhar-se o terreno de algum diálogo.
Em 1975, como saldo desse esforço diplomático de aproximação, foi assinado o Ato Final de Helsínquia, um texto de compromisso, com medidas geradoras de confiança entre as duas partes, recheado das ambiguidades semânticas com que os diplomatas conseguem ganhar tempo e, às vezes, alguma paz.
Ironicamente, para nós, portugueses, 1975 seria precisamente o ano em que, na nossa política interna, se viveu um “Leste-Oeste” e, em algumas das nossas antigas colónias, a Guerra Fria continuou acesa.
O declínio da URSS, como potência, foi-se acelerando, desde então. Incapaz de sustentar a rivalidade económica e tecnológica com os EUA, o poder soviético entrou em crise e, em 1991, o país implodiu, dando origem a 15 Estados diferentes.
A ordem liberal parecia ter uma passadeira à sua frente, mas o “fim da História”, prognosticado por quem não percebe que dela nunca nos libertamos, era um falso bom alarme.
Moscovo tinha passado, entretanto, a capital do país sucessor da URSS, a Rússia. Era um Estado herdeiro daquele outro que fora visivelmente derrotado pelos EUA, numa Guerra Fria onde ambos os lados só tinham combatido através de terceiros, em zonas de confluência dos respetivos poderes.
O inesperado “flirt” da nova Rússia com o mundo vencedor foi breve e, quase sempre, algo equívoco. Os EUA terão prometido à Rússia que a NATO, depois do Pacto de Varsóvia ter sido dissolvido, se não expandiria para Leste. Não foi isso que veio a acontecer. Porém, a verdade é que a Rússia à qual o ocidente fizera essa promessa também já não era exatamente a mesma.
A Rússia era agora Vladimir Putin, um homem que terá concluído que tinha mais vantagens em ser temido do que em ser respeitado. O seu poder, quase unipessoal e democraticamente mais do que duvidoso, deu razões à sua vizinhança imediata a Oeste para se manter “de pé atrás”, quanto ao futuro. E esses países procuraram atenuar os seus receios com a obtenção da integração na NATO e na União Europeia.
Voltemos a Viena, a esse ano de 2002. A OSCE, a que Portugal presidiu durante esse ano, tinha sido o porto de chegada do laborioso processo de distensão entre o Leste e o Oeste. Mas muita água tinha corrido entretanto sob as pontes do Danúbio. Longe se estava já dos dias em que o diálogo fluía, a confiança era ainda possível e tudo parecia encaminhado para um futuro de cooperação. Pelo contrário, as tensões eram cada vez mais fortes.
A Portugal, que era e é conhecido como um eficaz “honest broker”, competia procurar conciliar as leituras da realidade política internacional que ia “de Vancouver a Vladivostok”, como então se dizia. Sabíamos que havia por ali duas culturas de segurança em evidente contraste: um mundo que era chamado de “a Oeste de Viena” que a Rússia acusava de querer, cada vez mais, dar lições de democracia aos países “a Leste de Viena”. Moscovo era o óbvio “protetor“ de quantos eram vistos como infringindo o “template” democrático, dos Balcãs à Ásia Central, passando pelo Cáucaso.
Nesse ano de 2002, no Porto, em dezembro, todos os então 55 países membros da organização subscreveram os mesmos textos, preparados por nós. Colocar Washington e Moscovo de comum acordo numa perspetiva sobre conflitos e outras situações de instabilidade foi obra! Nunca esse entendimento voltou a ser reeditado na história da OSCE.
Voltei à OSCE, em duas ocasiões recentes, a última há menos de um ano: o ambiente da relação entre Washington e Moscovo, inquinado pela conjuntura pareceu-me já dificilmente insuperável. A atual situação só confirma isso.
E agora?
No momento em que escrevo, não faça a menor ideia de que forma a situação internacional, decorrente da invasão russa da Ucrânia, evoluirá.
Uma coisa tenho por certa: alguma aquietação da crise atual acabará por fazer-se, com um saldo final, justo ou injusto, em que uns pagarão mais custos do que outros. E também sabemos que daí decorrerão ressentimentos, que irão adubar o futuro, nem sempre num sentido positivo.
A História sempre nos mostrou que, por maiores que tenham sido as tragédias ocorridas entre os Estados, o tempo tende, em geral, a desaguar em tempos de alguma acalmia E que, cedo ou tarde, irão surgir “pontes” entre os adversários de hoje, por necessidade da acomodação mútua.
A alguns, pode parecer chocante, num tempo de mobilização emocional como a que se vive, estar a sublinhar a necessidade da restauração do diálogo diplomático entre o ocidente e a Rússia, com Putin ou com outro líder no Kremlin.
A geografia, contudo, tem determinantes que forçam sempre a realidade. A Rússia, seja ela o que vier a ser, nunca vai deixar de ser vizinha desta Europa. Um lado do continente a que as últimas décadas, somadas aos acontecimentos iniciados em fevereiro de 2022, tornou ainda mais coeso dentro de si, quer na sua aliança militar, quer na interligação económica que as instituições comunitárias potenciaram.
Quando haverá condições para re-inaugurar uma nova “détente”, envolvendo Moscovo, é impossível de prever. Mas como sempre aconteceu na História, a hora da diplomacia acabará por chegar.
5 comentários:
Tudo o que escreveu, Senhor Embaixador, é muito interessante. Há trinta anos como há vinte.
Mas foi precisamente há 20 anos que tudo correu mal. O Mundo viu o que os EUA são capazes de fazer para dominar o mundo. Porque do Vietname ao Iraque, à Síria e à Líbia, ou ainda ao Afeganistão, tudo gira à volta do único objectivo que valha para os EUA: Dominar o Mundo, manter a sua hegemonia através da sua moeda, das suas armas, das suas bases militares disseminadas por toda a parte. Por isso não resistiram à tentação de levar a NATO para lá de Berlim, até à Ucrânia. E amanhã até onde? Com a ajuda dos lacaios da EU até Moscovo? Madame Nuland sabia o que dizia quando pronunciou a frase célebre : “Fu.k a EU”.
Mas vão precisamente 20 anos que eles demonstraram o que valem…
5 de Fevereiro de 2023 marca o 20º aniversário do discurso do secretário de Estado dos EUA, Colin Powell, ao Conselho de Segurança das Nações Unidas, onde ele, diante de uma audiência global, mentiu para justificar a decisão criminosa do governo Bush de invadir o Iraque.
Colin Powell segurando um frasco modelo de antraz durante o seu discurso mentiroso perante o Conselho de Segurança das Nações Unidas justificando a invasão do Iraque.
Entre as declarações enganosas de Powell estão: “Temos descrições em primeira-mão de fábricas de armas biológicas sobre rodas e trilhos.”
“Nossa estimativa conservadora é que o Iraque hoje tem um estoque de 100 a 500 toneladas de agentes de armas químicas.”
"Ele [Saddam Hussein] continua determinado a adquirir armas nucleares... Ele está tão determinado que repetidamente tentou adquirir secretamente tubos de alumínio de alta especificação de 11 países diferentes."
“O que quero chamar a vossa atenção hoje é a ligação potencialmente muito mais sinistra entre o Iraque e a rede terrorista Al-Qaeda... As autoridades iraquianas negam as acusações de ligações com a Al-Qaeda. Essas negações simplesmente não são confiáveis”.
As mentiras de Powell, que foram escritas pelo presidente George W. Bush, vice-presidente Dick Cheney, secretário de Defesa Donald Rumsfeld e outros criminosos políticos, abriram caminho para a invasão do Iraque em Março de 2003.
Isso começou com o ataque “Choque e Pavor” de Bagdad, que destruiu grande parte da cidade.
A guerra resultou na morte de centenas de milhares de iraquianos e na destruição de um país altamente desenvolvido.
A CIA e os militares travaram uma campanha brutal de tortura e assassinato. Nenhum dos responsáveis por esses crimes jamais foi punido.
A media americana não comemora esse sinistro aniversário. Preferem não relembrar os crimes de um passado não tão distante, pois inventam as mentiras necessárias para promover a escalada da guerra que travam contra a Rússia.
Só tenho pena, caro embaixador, que não aplique a sua lúcida visão sobre as relações internacionais em geral e sobre o conflito entre a Rússia e o chamado Ocidente (já podemos denominá-lo deste modo) em particular, nos seus debates televisivos. Torno a lembrar a frase mais lúcida que li sobre este conflito militar e que é da sua autoria: fazer a guerra com os mortos dos outros!
O que o presidente da Ucrãnia deseja é que o conflito abra as portas da NATO. Os responsáveis desta organização, estranhamente, parece que desejam o mesmo, como seu apurado discurso belicista. Sejam, então, coerentes: enviem militares para a Ucrânia. Não acredito que isso seja possível por uma simples razão: em democracia, o povo continua a ser quem mais ordena. Na verdade, é mais fácil fazer a guerra com os mortos dos outros.
O futuro da Ucrânia é a grande preocupação da politica externa da Polónia
Confesso que não entendo por quê. Observo que isso é verdade, mas não sei por que razão.
A Polónia tem mais fronteira com a Bielorrússia do que com a Ucrânia. Porque é que a Polónia se preocupa mais com a Ucrânia do que com a Bielorrússia?
É verdade que uma parte razoável da atual Ucrânia foi em tempos território polaco. Mas julgo que já não haja muitos polacos a viver na Ucrânia, nem que a Polónia se preocupe especialmente com os polacos que vivem na Ucrânia.
Penso que a Polónia se deveria preocupar muito mais com a Bielorrússia e com o enclave de Kalininegrado, do que com o futuro da Ucrânia.
Caro Embaixador
Já tinha lido o seu artigo na revista VISAO, que agora reproduz.
Uma excelente análise da evolução das relações entre a Rússia e o Ocidente, o que não admira vinda de um diplomata que, por força das diversas missões que foi exercendo e em contacto com privilegiados interlocutores por dentro da questão, emitiu uma opinião abalizada sobre o tema.
Questiona se o texto resistiu ao tempo?
Não tendo conhecimentos aprofundados sobre o assunto, ouso, ainda assim, dizer dentro das minhas limitações, que ele me surge, cada vez mais, como plenamente actual.
Tudo o que refere sobre os receios dos russos por parte dos Países Bálticos e da Polónia «O futuro da Ucrânia é a grande preocupação da política externa da Polónia», «Historicamente, a liberdade não mobiliza os russos. A alma da Rússia é a autoridade», donde advém «muito da força de Putin», parecem ter plena acuidade perante ao que temos vindo a assistir na guerra da Ucrânia.
O problema é que até à invasão russa da Ucrânia, os países europeus, designadamente os mais distantes da fronteira oriental da Rússia, vivendo em democracia e em estabilidade e paz pós-guerra fria, ignoraram que a Rússia nunca desistiu dos seus desígnios históricos, do imperialismo e totalitarismo.
O Embaixador termina o seu artigo, com um tom optimista, afirmando que chegará o momento e as condições «para re-inaugurar uma nova “détente” envolvendo Moscovo».
Espero é que tal não se faça à custa da derrota da Ucrânia e do sangue derramado pelo heróico povo ucraniano.
Cordiais saudações
O que correu mal?
Até por toda as aguerras de energia que só tendem a agravar-se senão se implantar rapidamente uma Ordem Mundial multipolar outra vez, eu diria definitvamente a Ordem Mundial unipolar baseada em regras com o Xerife em Washingtoton que emergiu da dissolução da URSS! Estávamos muito melhor na Ordem mundial multipolar que emergiu da WWII baseada na Carta das ONU e no direito internacional! Em que muitos ainda pensam que vivem! Uma Ordem Multipolar por mais erros que possamos apontar a todos os protagonistas tem a sempre a vantagem de um mundo muito mais equilibrado. Senão pensemos que apaesar do bloco soviéticos, as guerras que não tinham sido possíveis no tempo da URSS!A começar pelo saque do petroleo no Iraque que desestabilizou o Médio Oriente e o mundo até hoje!
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