segunda-feira, fevereiro 13, 2023

Áfricas



Havia um divulgador de História, injustamente acusado de ser historiador, na fórmula de Baptista-Bastos para alguns ditos jornalistas, que, na televisão, mostrava os locais de relevantes eventos pretéritos, dizendo, com frequência: “Foi aqui!” 

Ontem, numa sala de uma unidade hoteleira, algures no país, tive a mesma reação, embora pensada apenas para mim próprio: “Foi aqui!”

Já passaram muitos anos desde esse dia. Estávamos num almoço com uma delegação estrangeira, chefiada pelo primeiro-ministro desse país, oferecida pelo seu homólogo português. Notei que a cara de um colega e amigo, sentado quase à minha frente na longa mesa, não era das mais felizes. 

Ele estava colocado num determinado país africano e nosso ministro dos Negócios Estrangeiros, também ali presente, tinha-o informado, horas antes, que o seu próximo destino seria... um outro país africano. Curiosamente, um país onde, anos atrás, ele já estivera colocado.

Ter já passado, em duas vezes, um total de oito anos em África, com a perspetiva de um período de mais quatro anos numa capital africana onde já servira, era uma ideia que não agradava, compreensivelmente, àquele meu colega. 

Não obstante o interesse profissional dos postos, a vida em África acarreta quase sempre problemas específicos, pessoais e familiares, pelo que, muito legitimamente, ele ansiaria ter um outro destino geográfico. O ministro, contudo, por qualquer razão conjuntural que já não recordo, fora muito insistente e não lhe dera qualquer alternativa.

A conversa ao almoço derivou, a certa altura, para a Revolução do 25 de Abril. Pedagógico, o chefe do governo português explicou ao seu convidado as motivações subjacentes à revolta contra Marcello Caetano. Dentre essas razões, elencou os problemas de carreira e as pulsões democráticas que atravessavam a tropa, para concluir: "Além do mais, os oficiais portugueses estavam cansados de fazer várias comissões de serviço em África".

Foi então que se ouviu, num sonoro aparte em português, a voz do meu colega: "Como eu os compreendo!". 

Dei uma gargalhada de solidariedade, cujo significado poucos entenderam. Talvez o nosso ministro. Do outro lado da mesa, o António sorriu.

14 comentários:

Ésse Gê (sectário-geral) disse...

Concordo, Senhor Embaixador. Tal como de burros velhos não se fazem cavalos de corrida, de um 'piqueno' contador de histórias não se faz sequer um razoável historiador.

Luís Lavoura disse...

a vida em África acarreta quase sempre problemas específicos, pessoais e familiares

Que problemas? Ter que se vacinar contra doenças esquisitas? Só beber água engarrafada, como tive que fazer quando fui à Índia?

Não vejo bem em quê África seja diferente se outros lugares.

Ao fim e ao cabo, houve muitos portugueses que viveram em África longos anos, e só saíram de lá a contragosto...

Retornado disse...

No caso de Angola, para imensos oficiais e sargentos do quadro, a partir de 1966, o que mais custava era primeira comissão com direito a segunda comissão, que agarravam dom as duas mãos.

Eles e sua prole.

Francisco Seixas da Costa disse...

Todas as carreiras diplomáticas, todas as multinacionais, consideram a generalidade daa capitais africanas (com escassíssimas exceções) como hardship posts. O Luís Lavoura nasceu assim, “do contra”, ou aprendeu?

manuel campos disse...


O Luis Lavoura "Até faz febre!"

Anónimo disse...

Fernando Neves
O Luís Lavoura terá alguma vez ido a África?
Desafio-o a passar uns dias em Mogadíscio. Ou visitar a Missão da Lixeira em Luanda

manuel campos disse...


Sempre achei graça às pessoas que vão como turistas algures e vêm de lá ou a achar que ali é que era bom para viver ou que, afinal de contas, não é assim um sitio tão mauzote como o pintam.
Lembro-me sempre de um amigo meu que viveu e trabalhou muitos anos fora e que, quando lá apareciam compatriotas com estas excitações, lhes dizia sempre que se via bem que eles só tinham que se passear e tirar fotos, não tinham que ir para a fila do centro de saúde, nem para as filas da segurança social ou das Finanças, nem se chatearem com os vizinhos que faziam barulho toda a noite e deixavam as partes comuns do prédio em estado lastimável, etc, etc, etc que todos vivemos na nossa terra e a que ninguém escapa por onde viva.



Unknown disse...

África também é mundo e que mundo!
Além de que acho justo visitar a Missão da Lixeira de Luanda, pois contribuímos para ela!

Luís Lavoura disse...

Francisco

Todas as carreiras diplomáticas, todas as multinacionais, consideram a generalidade daa capitais africanas (com escassíssimas exceções) como hardship posts

Acredito, mas isso não será também verdade em relação a outras capitais, como por exemplo Islamabade, Phnom Penh, La Paz, e bastantes outras cidades fora de África?

Quero dizer, certas capitais são "hardship posts", mas não é por serem em África, e sim por serem em países muito pobres, ou muito inseguros, ou com um clima muito duro, ou com muitas doenças transmissíveis, etc.

Ou não?

Francisco Seixas da Costa disse...

O post era sobre África.

João Cabral disse...

José Hermano Saraiva, senhor embaixador? Sabedoria e eloquência.

manuel campos disse...


Apresar de me estar a sentir cada vez mais febril, ainda tenho forças para vir aqui dizer que o Luis Lavoura não tem mesmo ideia de que, quanto mais se justifica, mais disparatado é o que diz.
Bebeu água engarrafada na India?
Teve que se vacinar contra doenças esquisitas?
Pois aqui, onde a água é de boa qualidade, é a que eu bebo e bebi toda a vida (e com esta idade tenho cinco folhas A4 de analises feitas há um mês sem um único valor fora dos limites, continuo assim sem nunca ter tomado qualquer medicação), há muito boa gente que não bebe de outra senão da engarrafada, contribuindo assim para um dos melhores negócios que existem à face da terra, devidamente induzido nas cabeças de muita gente.

Se nos dissesse quantas vezes foi a África e por onde andou seria útil, ainda que este meu pedido seja inconveniente, era só para termos noção se fala com um mínimo muito mínimo de conhecimento de causa (escrevi este fim de frase sem me rir, não foi nada fácil).
Eu fui, em meados dos anos 90, sempre em capitais do mais respeitável que há por lá, numa delas senti como nunca na vida que me ía acontecer qualquer coisa e nunca mais ninguém sabia de mim, senti pessoalmente o que era o relacionamento de algumas autoridades (os famosos pequenos poderes) com o respeito por direitos e garantias constitucionais dos outros.
Nem o facto de ter uma reunião com um conhecido ministro duas horas depois me ajudou (ouvi que “os ministros não mandam nada aqui”), fui salvo pelo gong, quase in extremis, na pessoa de um elemento da nossa embaixada que era suposto ter chegado mais cedo e se tinha atrasado.
Mas que eu só me lembro de o ver escrever sobre as suas visitas à Suiça e as estapafúrdias comparações com Portugal, é mesmo dos países melhores para isso.

Também houve muitos portugueses que viveram noutros sítios do mundo longos anos, esses terão ido para lá “a contragosto” como muitos que foram daqui para África, para fugirem à miséria que, pelos vistos, está tão longe de si que nem lhe passa pela cabeça que outros a sofram.
Talvez não saiba mas eu digo-lhe: nem todos tiveram paizinhos abastados ou razoavelmente remediados, que os sustentem e os amparem nas heranças.
Só de outros paises não tiveram que saír de lá “a contragosto”, com aquelas reticencias de mau gosto que acrescentou, tendo em conta o que tinha escrito antes.

PS- A Suiça é aquele país onde “se vires um banqueiro atirar-se da janela, atira-te também, há com certeza dinheiro a ganhar”.


Tony disse...

Senhor Embaixador. O António seria o meu saudoso amigo: António Russo Dias?.

Francisco Seixas da Costa disse...

Não, Tony. O António Dias só teve um posto em África.

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