segunda-feira, fevereiro 06, 2023

O senhor Catorze


Nos dias de hoje, as pessoas da minha geração andam a fugir por entre as pingas do politicamente correto. Ainda ontem, num jantar em casa de um amigo, fiquei com a sensação de que o grupo, com tantas mulheres como homens, como que esperou por uma ida à cozinha do filho do dono da casa para poder “ajavardar” (eu sei que deveria evitar este verbo…) com uma inocente graçola, de tons sociais interditos pelo ar do tempo. 

Poder ser acusado de homofóbico, racista, sexista ou coisas assim é o pão nosso de cada hora das conversas. Até ao telefone, já se assiste a pessoas reticentes em dizer, perante um amigo que faz uma tragédia de uma simples constipação, um inocente “deixa-te lá de mariquices!”

Por isso, hesitei um pouco antes de dedicar este post à palava “catorze”. Porquê? Porque, ao lembrá-la, me veio à memória uma imagem com bem mais de 60 anos: o Senhor Catorze. 

Era em Bornes de Aguiar, perto das Pedras Salgadas, onde, de Vila Real, íamos, às vezes, passar uns dias, ao tempo em que eu era miúdo, à casa onde tinha nascido o meu avô materno. 

Havia lá pela aldeia um homem que me recordo sempre de ver agarrado a um cajado, mancando fortemente ao andar. Nunca soube se era doença de infância ou o fruto de um acidente mal tratado. Sei é que, quando parava para a conversa, no largo do Cruzeiro, quase sempre encostado a uma parede, uma das pernas fletia em ângulo quase reto e assentava sobre a outra, desenhando uma espécie de 4. Ao lado, o cajado funcionava como um 1. E o homem era assim conhecido pelo “Catorze”… 

Chamava-se Francisco, mas toda a gente se lhe referia como o “Catorze”, ou o Francisco “Catorze”. E, dele, a designação passou à família: sem que a implícita similitude com a corte de Versalhes fosse evidente para a esmagadora maioria da aldeia, o irmão era conhecido como o Luís “Catorze”… 

Claro que ninguém o chamava diretamente dessa forma, salvo em discussões mais acaloradas pelo álcool na venda do Chico, onde o cajado era chamado a defendê-lo do apodo pelo qual, nas suas costas, ele sabia que era designado. 

Eu, que só o via à distância, por muito tempo não soube qual era o seu nome verdadeiro. Sei é que, por respeito à idade ou temor ao cajado, mas cavalgando o abuso sobre a deficiência motora do homem, me referia sempre a ele como o Senhor Catorze.

Por que diabo me fui lembrar hoje o Senhor Catorze? Porque só agora notei que, no passado dia 2 de fevereiro de 2023, este blogue “Duas ou Três Coisas” perfez 14 anos de publicação (foi iniciado em 2 de fevereiro de 2009), sem que em nenhum desses 5.110 dias alguma vez tivesse faltado à chamada. Foram cerca de 11 mil posts que aqui deixei, escritos a partir de 33 países diferentes, que originaram mais de 72 mil comentários, convocando 8,6 milhões de visitas, vindas de 178 países. E por aqui irei andando, “se a tanto me ajudar o engenho e arte” - e a paciência, minha e dos leitores “que tão generosamente me acolhem no seu seio”, como, lá na Várzea de Colares, A. B. Kotter dizia dos portugueses que lhe aturavam as caturrices.

O Senhor Catorze há décadas que deve ter uma cruz em cima da campa, no cemitério de São Martinho, morada derradeira onde estão muitos dos meus. Morreu sem que a internet existisse, sem saber o que era um blogue, sem que lhe passasse pela cabeça o que hoje é o politicamenre correto. Mas se alguém lhe chamasse Catorze, era o bom e o bonito lá por Bornes…

(ps - Ah! E por favor! Não tragam para aqui a discussão sobre se se escreve catorze ou quatorze…)

3 comentários:

Anónimo disse...

Existe uma família de apelido Catorze nos arredores de Coimbra, cujo patriarca se chama ou chamava Álvaro que conheci.

Francisco disse...

Para que conste das actas: estimamos vê-lo empenhado em manter viva esta candeia; em tempos de escuridão, todas as lâmpadas contam. E nós, os fiéis leitores e comentadores, lá iremos também cumprindo com denodo o nosso papel.
Parabéns.

João Cabral disse...

No fundo, não é muito diferente do antigamente, quando as pessoas se policiavam naquilo que consideravam ser os bons costumes. Voltámos ao passado e nem damos conta. Por mim, não alinho nessas tretas um milímetro.

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