quarta-feira, fevereiro 08, 2023

A “branca”

Na manhã de hoje, no discurso de encerramento de uma conferência na Gulbenkian, o primeiro-ministro António Costa, voltando-se para mim, sentado na primeira fila, citou algo que eu tinha dito, minutos antes. E, ao fazer essa menção, começou a dizer “O embaixador Francisco…” e parou. O “Seixas da Costa” demorou uns segundos a sair. Ora dois ou três segundos, num momento como esse, é uma imensidão de tempo! Logo se lembrou, com um sorriso, pedindo desculpa: “Por um instante, tive uma branca!”. 

Como eu o compreendi!

Há mais de três décadas, em Londres, numa passagem pela capital britânica de Fernando Nogueira, uma das figuras mais marcantes do universo social-democrata, ministro da Defesa e número dois do governo, coube-me acompanhá-lo ao aeroporto, onde havíamos reservado, como era da praxe, uma sala na respetiva área VIP, destinada a passageiros ilustres. Lá chegados, e após termos ultrapassado as barreiras de segurança, sempre invocando o nome da embaixada, dirigimo-nos ao balcão de atendimento.

Com o ministro ao meu lado, informei quem eu era, indicando que estava a acompanhar o ministro português da Defesa. A funcionária inquiriu qual era o nome do ministro. 

Foi nesse instante que tive uma "branca" e o nome de Fernando Nogueira se me varreu por completo da memória. Fosse o cansaço ou a noite mal dormida, a verdade é que o nome não me ocorria. O meu embaraço era total. O ministro já olhava para mim, intrigado, e a funcionária aguardava a minha resposta.

- Desculpe! A reserva da assistência foi feita pela embaixada de Portugal, já lhe disse que se trata do ministro da Defesa, por que diabo precisa também do nome?

A senhora mirava-me, surpreendida com a duvidosa racionalidade da minha reação. E o ministro também:

- Por que lhe não diz o meu nome?

Tentando ganhar tempo, avancei então com uma "criativa" justificação, completamente tonta e até pesporrente:

- Senhor ministro: esta gente tem de perceber que deve funcionar com base na informação que é essencial. Imagine que era um nome chinês! Que interesse é que ela tinha em ouvir uns sons estranhos numa língua ainda mais estranha? Basta-lhes a embaixada e o título da pessoa!

O peso deste meu imaginativo argumentário de ocasião estava a começar a esgotar-se. E, na crescente atrapalhação, fui-me inclinando sobre o balcão, tentando ler, ao contrário, a folha que a funcionária tinha diante de si, com todas as reservas dos compartimentos da zona VIP. Por sorte, consegui descortinar a palavra "Portugal" numa das linhas. O nome e o título do ministro vinham a seguir… Então, com grande "autoridade", estendi o indicador e apontei-lhe a linha:

- Look! It's there!

- Mr. "Nóguêra"?

- That's right!

Ao meu lado, o ministro Fernando Nogueira, um homem cordialíssimo e de sereno sorriso, devia estar intimamente a pensar como é bizarra essa espécie profissional que são os diplomatas. 

Nunca tive oportunidade de lhe revelar este episódio. Quando isso acontecer, acho que vai achar graça.

6 comentários:

manuel campos disse...


"- Porque lhe não diz o meu nome?"

E porque não o disse ele?
Ou terá parecido ao Ministro que havia uma estranha razão de Estado para um diplomata que o acompanhava não se querer comprometer com essa informação?

Unknown disse...

Hilariante! E quando se encontra alguém que não vemos há décadas, cujo nome esquecemos por completo mas que nos trata pelo nome? Dramático!

manuel campos disse...


Que nos trata pelo nome e apelido, que se lembra dos nomes dos nossos irmãos, da rua, prédio e andar onde vivíamos e até do modelo e cor do carro que o nosso pai tinha acabado de comprar há 50 anos.
Aconteceu-me há uns 2 anos aí num centro comercial e ainda me rio sózinho da cena, mas não me desmanchei, disse a tudo que sim e mantive o ar mais natural possível por uns bons 10 minutos.
Tive muita sorte que ele não se lembrasse de perguntar se me lembrava do seu nome.
Penso que essas pessoas têm uma memória muito selectiva, creio que todos a temos numa ou noutra matéria, às vezes nem nos damos conta disso talvez por "falta de uso".

João Cabral disse...

"Esta gente", senhor embaixador?

Sérgio Nunes disse...

Fernando Nogueira também não disse o nome, porque
...tinha tido uma "branca"

Miguel Félix António disse...

Quem nunca se viu em apuros similares?
Excelente saída!

Estados de alma

Há uns anos, tivemos por cá uma amostra paroquial de um governo que detestava o Estado a dirigir esse mesmo Estado. Era a lógica de "me...