sábado, fevereiro 11, 2023

Na cesta…


Há um mito rural, na minha família materna, segundo o qual uma das minhas bisavós era bastante rica. 

É rural porque a senhora, depois de uma existência em Lisboa, onde fez amizades que lhe frequentavam umas festas famosas que organizava no “chalet” do parque das Pedras Salgadas, acabou placidamente os dias na Casa do Pereiro, em Bornes de Aguiar, numa rusticidade cómoda e simples, mas sempre com uma bela vida alimentada por cabedais de propriedades várias.

É também um evidente mito porque, pelo menos a este seu bisneto, nunca chegaram sólidas provas, com relevância contabilística para os fins que contam, desses tais supostos teres e haveres, que, imagino eu, se devem ter esvaído pela caterva de filhos, de dois casamentos, que terão herdado o mesmo jeito para o negócio que este seu descendente até hoje (não) tem. Um desses filhos, reza a lenda, perdeu ao jogo, numa noite, no casino das Pedras, uma bela quinta à volta da qual a aldeia de Bornes de Aguiar ainda hoje se espalha.

Fosse a senhora rica ou não, e para o que aqui hoje me interessa, ficou na memória familiar que tinha uma língua afiada e franca, uma graça viva e muitas vezes mordaz.

A historieta que vou contar ouvi-a repetida, por anos, à minha mãe e aos meus tios, nas conversas em noites de família. Por esse tempo, esses e tantos outros episódios interessavam-me pouco. Eram conversas de velhos, que não me diziam quase nada. Até um dia, até ao momento em que eu próprio passei a assumir, embora involuntariamente, esse mesmo estatuto etário. E foi então que me dei conta de que, para satisfazer uma cada vez maior curiosidade sobre um passado de que afinal eu era já um residual depositário, já não tinha ninguém a quem recorrer.

Um dia, vindo de Oura, dos lados do Vidago (quem é dali diz “do Vidago”, quem é de fora diz “de Vidago”), chegou a Bornes, para uma visita, um primo da senhora minha bisavó. Vinha a cavalo, porque era assim que, nesse século XIX, essas coisas se faziam.

À sua chegada à Casa do Pereiro, já depois da hora do almoço, constatou-se ser ele portador de uma gentil cesta de oferendas - com queijos, enchidos e algum estimável apoio alcoólico. 

Posta a conversa em dia, durante algumas horas, e porque entretanto a tarde se fazia tarde, a minha bisavó montou uma mesa para um lanche familiar, com coisas que por lá tinha. A elas juntou, com naturalidade, para a degustação desse momento, e quanto mais não fosse para lhes honrar a qualidade e a simpatia do gesto, os produtos que o parente lhe tinha aportado.

O que se seguiu, conta a nossa memória familiar, foi um pouco inusitado. O parente nem terá atentado no que a dona da casa lhe oferecia e, quiçá enlevado pelo gosto seguro daquilo que horas antes ofertara, avançou por essas vitualhas adentro, alambazou-se com elas de forma lampeira, quase as esgotando, num manifesto acesso de fome, quiçá potenciado pelo esforço físico da viagem. Os da casa, com a minha bisavó no farol da observação da cena, acharam bizarro esse tropismo para o auto-consumo, mas, com cerimonial elegância, engoliram o riso.

Ao final da tarde, quando o cavalo do primo trotava já pelo Fundo de Vila, de regresso às retas de Sabroso, que iam anteceder as curvas do Reigaz, a minha bisavó crismou, para sempre, uma frase que faz parte da memória risonha dos Seixas, para caraterizar o comportamento do seu lambareiro primo: “Na cesta o trouxe, na barriga o leva”…

4 comentários:

Flor disse...

Adorei o texto. Seguramente a cesta era para o primo comer. Talvez com receio da avó ter pouca coisa para oferecer-lhe e ele ser comilão. Muito bom!!:)

Fernando Martins disse...

O aforismo da sua bisavó é apenas uma versão do ditado popular beirão e transmontano do "Trouxe-o na panelinha, levou-o na barriguinha"...

tempus fugit à pressa disse...

não, nunca tinha ouvido esse dito, ficou só no clã presumo

Júlia Borges disse...

Leio com frequência o que escreve e desta vez não posso deixar de comentar o quão me alegro ler e reler as suas memórias
. Pois também eu cresci a ouvir muitas histórias parecidas a esta da família Seixas . Sim pois não é mito o que relata sobre o tal filho que perdeu numa noite a tão famosa quinta de Bornes . a sra sua visaavó materna era a minha visa avó paterna . O filho a qu se refere era oei avó paterno . ( O Filipinho )
Havia depois o seu avô materno o tio ( Francisco , o tio Zezinho e a tia Jeju ) . A minha memória está cheio dessas imensas histórias ( reais ) da família Seixas . .

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