sábado, fevereiro 25, 2023

Guerra de mundos


O que se passa na Ucrânia fez regressar a sociedade internacional a um patamar de tensões com elevado risco. Mas só foi surpresa para quem andava desatento.

O ocidente, através dos Estados Unidos, tinha ganho a Guerra Fria. Nesse contexto, exaurida e incompetente na gestão da sua sobrevivência, a União Soviética, em pouco tempo, implodiu institucionalmente. Do lado de cá, com o comunismo soviético pelas portas da amargura, um furor otimista quase decretou a vitória eterna da democracia.

A Rússia que sobrara para Moscovo pareceu, a certa altura, poder adotar um modelo de mercado que o neo-liberalismo julgava salvífico para a criação, por ali, de um futuro regime de liberdades. Viu-se! Sem o cimento retórico dos amanhãs do socialismo real que não chegaram a cantar, o que restou da URSS acabou numa patética decadência. A regeneração, uma vez mais, veio a fazer-se em torno de um projeto de raiz proto-imperial, autoritário como sempre, marcado por uma imensa humilhação.


A ambição

No nosso mundo, a euforia deu lugar à ambição. A Europa, que no pós-guerra se unira atrás do muro de Berlim e debaixo do chapéu de segurança americano, teve arroubos de existência política, quis-se potência, encheu-se de sucessivos tratados e tratadinhos, acolhendo no seu seio, um tanto à pressa, para aproveitar a janela de oportunidade da fragilidade russa, Estados que, décadas antes, em Ialta, os aliados haviam concordado em oferecer à tutela de Estaline.

França e Reino Unido faziam de poderes, ajudados pelo nuclear e pelo usucapião no Conselho de Segurança, com a Alemanha a comprar, com a riqueza e a continuada contenção securitária, a honra e a unidade perdidas nos anos 40.

Os americanos tinham percebido, entretanto, que o principal risco, ameaçador da sua hegemonia económica e, a prazo, também geopolítica, estava algures, estava na China. A Europa era um competidor económico controlável, a Rússia era vista como um poder regional, como um dia disse um presidente americano que, nem por ser muito estimável, deixará de ficar na história com um dos mais incompetentes gestores da postura externa de Washington. Cavalgando a russofobia dos neófitos europeus, com o 11 de setembro a fornecer-lhe um alibi para pescar em águas estratégicas tradicionalmente russas, Washington foi por aí adiante.


O teste

Com a promoção do golpe político da Maiden, em 2014, a América deu uma machadada final na hipótese da Ucrânia poder gerir, enquanto Estado unitário e democrático, a sua dualidade étnica. O acordo de Minsk foi um mero arranjo de fachada, no qual ninguém acreditou, a começar por Washington, que não se tinha sentado àquela mesa. Irritada com o facto consumado da tomada da Crimeia, a América decretou a quarentena da Rússia do G8.

Putin arranjou um pretexto para se acantonar no Donbass e, à medida que Washington e Londres faziam entrar a Ucrânia para a NATO pelas traseiras, acalentou o projeto de reverter a independência ucraniana de 1991, a qual, verdadeiramente, nunca tinha aceitado. E mediu tudo mal: a determinação do opositor, o efeito do pânico nos europeus, o desejo de Biden de fazer esquecer a humilhação no Afeganistão e, surpresa das surpresas, a inadequação da sua força militar convencional.

Putin bem pode tentar disfarçar com bravata, mas o que se passou na Ucrânia neste último ano, foi uma imensa humilhação para a Rússia. A teoria do cerco externo promovido pelos Estados Unidos, com a Europa a fazer peito mas a ser um mero ajudante de campo, tem alguma coisa de verdade. Mas a voracidade territorial, bem como a barbaridade militar desproporcionada, colocou Moscovo na marginalidade da ordem internacional.

Muitas dezenas de milhares de mortos depois, de uma extensão inimaginável de material militar perdido e de uma condução errática do esforço de guerra, fica, da Rússia enquanto poder, uma imagem muito pouco lisonjeira.

E fica a trágica dúvida: se a Rússia se enganou na avaliação das suas capacidades numa guerra convencional, não poderá vir a repetir o equívoco numa qualquer aventura nuclear?


A fronteira

Em Varsóvia, Biden quis marcar a nova fronteira, democracias versus autocracias. Com isto, faz um favor a Putin, colocando potencialmente a seu lado, porque excluídos pelo país-tutela do mundo das liberdades, toda uma vasta legião de ditadores, autocratas e ditos iliberais, com quem pode não dar jeito aparecer na fotografia, mas que contam bastante no saldo político Norte-Sul. O presidente americano esquece que, na anterior Guerra Fria, foi com muita dessa gente que o ocidente contou para trilhar o caminho que levou ao colapso de Moscovo.

A guerra está aí agora, para lavar e durar. Sem "boots on the ground", ganhando nas armas, no gás e, desta vez, nos princípios, a América está mais à vontade para a tarefa de abafar a Rússia. A Europa, por muito que Macron ziguezagueie, seguirá Washington, tendo de gerir as consequências políticas e económicas das sanções. Se os cidadãos americanos não sentirem negativamente no bolso o esforço orçamental, Biden pode mesmo vir a suceder a si mesmo, travestido de Matusalém. Quem havia de dizer!

12 comentários:

Paulo Guerra disse...

Apesar de não ter qualquer interesse na arte operacional da guerra mas até o propagandista mor do proxy regime de Kiev - depois de caído em desgraça, imagine-se por dizer uma verdade - já veio desmentir por completo essa percepção da fraqueza militar russa. Que com uma força expedicionária anexou basicamente uma Inglaterra. Mas concordo que só com propaganda do tipo "Ukraine wining", sem jornalismo, estamos todos no campo da mais pura especulação e cada um escolhe as suas fontes alternativas e retira as suas conclusões. E mais uma vez confesso que as militares nunca foram as que mais me interessaram. Estão a acontecer muitas coisas no mundo além do teatro de operações. Fukuyama também decretou o fim da história! Não sei se já estará a tratar de alguma alguma errata ou não!

manuel campos disse...


Mais um excelente e equilibrado ponto histórico da situação.

"...não poderá vir a repetir o equívoco numa qualquer aventura nuclear?"

Numa aventura nuclear não há tempo nem oportunidade para equívocos, é como um desempate a penalties.

Lúcio Ferro disse...

"Putin bem pode tentar disfarçar com bravata, mas o que se passou na Ucrânia neste último ano, foi uma imensa humilhação para a Rússia." É para rir? ^_^

Lúcio Ferro disse...

"(...) faz um favor a Putin, colocando potencialmente a seu lado, porque excluídos pelo país-tutela do mundo das liberdades, toda uma vasta legião de ditadores, autocratas e ditos iliberais (...). Como Lula da Silva, Narendra Modi, Cyril Ramaphosa e outros? Todos ferozes ditadore e iliberais, não é mesmo? Sinceramente, o seu texto tem mais furos do que um coador e o seu eurocentrismo idem.

Lúcio Ferro disse...

Por último e desculpe não ter condensado tudo num único commentário: "(...) ganhando nas armas, no gás e, desta vez, nos princípios (...)". Quais princípios? Vá dizer isso em Afríca, na Ásia e na America do Sul e até ao danado do americano Chmosky que os intelectuais dessas zonas geográficas são capazes de achar piada a estas referências a "princípios".

Francisco disse...

Os EUA que foram os vencedores incontestáveis de duas guerras mundiais, que decorreram convenientemente bem longe do seu quintal, viram na conjuntural implosão do projecto de socialismo desenvolvido a Leste, a oportunidade de ouro para de novo vencerem uma guerra e, desta vez, sem utilização de armas nem disparos de artilharia. Tratava-se apenas de, equiparando a Rússia e os seus 11 fusos horários a uma qualquer república das bananas (dessas de que o império se alimenta vorazmente desde pelo menos o início do século passado, convém lembrá-lo), ali implantar "uma verdadeira democracia", facilitadora da continuação de um mundo sob regras e princípios, mas sobretudo, garantidora do livre acesso a um conjunto de recursos naturais que só ali existem e que se tornam vitais para a continuação (fala-se num lapso de 25 a 30 anos) do crescimento das economias capitalistas, nesta sua fase de declínio irreversível, motivado, entre outros aspectos, pela frenética exploração planetária que, irrecusavelmente e para além de todas as falácias verdes, tem que ser inevitavelmente interrompida. E as coisas até não corriam mal: Ieltsin e Gorbachev, poderiam bem ser os Guaidós de Leste, numa mimetização premonitória e antes do tempo. Contudo, no território da Federação Russa e a par com a emergência de neo-liberais mais papistas que os seus próprios Papas, que por ali floresceram após 1991 (tivemos os nossos, sobretudo depois de 1986 e todos convenientemente aconchegados sob o manto da social-democracia e do socialismo democrático), manteve-se presenta na memória de muitos a herança soviética com tudo o que isso implicava de permanente balanço entre ganhos e perdas quotidianas, do mesmo modo que e por outro lado, ignorar o profundo sentimento nacionalista patriótico russo, foi um erro apenas possível pela cegueira mais absoluta. Por isso e a partir de certo momento, enfraquecer a Rússia (que grande exemplo de legitimidade no quadro das relações internacionais, o propósito de destruição de um país soberano, para satisfação dos meus próprios e inconfessáveis interesses domésticos...), passou por isso e a dado passo por ser um objectivo que comportava também uma inevitável dimensão militar. A Ucrânia e o idiota útil que hoje lhe preside (como antes deles os que lhe sucederam depois de 2014), cumprem por isso o guião de uma encenação que foi montada de modo meticuloso. A Rússia, como compreendemos todos com razoabilidade, não pode, pela sua natureza de potência nuclear, ser derrotada no campo de batalha quando estão em jogo os seus interesses fundamentais. Resta por isso o desgaste económico. Contudo, também aí, a corda que se tem esticado, parece estar prestes a quebrar, mas sobretudo para o espaço europeu e, segundo alguns analistas económicos, também dos EUA, já que a China, esse elefante na sala, parece também estar cada vez menos disposta a sentar-se na segunda fila e, consequentemente, a substituição do dólar como moeda do prestamista de último recurso e referência de câmbio no comércio internacional, constituirá o golpe de misericórdia numa ordem unipolar que já ninguém quer nem deseja, salvo alguns verbos seguidistas para quem o mundo parou. É nesta fase de estertor e morte, que os monstros se tornam especialmente perigosos. Isso é que nos devia preocupar a todos e nos deveria levar ao repúdio de quaisquer narrativas simplistas e acéfalas, por cujas consequências poderemos aliás, pagar injustamente o preço mais elevado.

Anónimo disse...

Como é que está o apoio da populaçao americana ao Biden? É ir vendo as sondagens americanas, mesmo em relação aos tradicionais votantes democratas. Somos tão ignorantes da realidade americana, como os americanos são da nossa, ao contrário do que gostamos de pensar. Veremos.
Quanto à humilhação da Russia, é relativo. Ele quer o Dombass e manter a Crimeia e vai obtê-lo, e as noticias sobre o colapso económico da Russia, com as sanções, foram manifestamente exageradas, e será a Ucrânia a ter de ser totalmente reconstruida na sua economia e infraestruturas, com a ajuda externa. Nem se sabe ainda como. Logo se pensa nisso, depis dos discursos...
Portanto, veremos se as promessas americanas e europeias de cumprir o desejo do Zelensky de recuperar a soberanis ucraniana até ao último centimetro da Ucrânia, não resultará é numa humilhação para o ocidente. .

Anónimo disse...

Da Gallup
WASHINGTON, D.C. -- President Joe Biden averaged 41% job approval during his second year in office, which spanned Jan. 20, 2022, through Jan. 19, 2023. Among post-World War II presidents elected to their first term, only Donald Trump had a lower second-year average, but just barely, at 40.4%.

disse...

A ideia com que um leigo nestas matérias fica é que os EU não têm sabido gerir diplomaticamente esta guerra. Precisamente porque praticam um discurso que, em vez de isolar a Rússia do resto do mundo, a faz aproximar dos tais estados iliberais. Assim, não há forma da guerra acabar. Seria bom que Lula conseguisse ter um papel de mediação neste conflito. Saiba Biden aproveitá-lo.

josé ricardo disse...

A Biden interessa-lhe prolongar a guerra, por várias razões, mas principalmente por uma: a sua reeleição. É muito difícil um presidente em guerra, nos EUA, não ser reeleito.
Existe, a meu ver, uma guerra global: de um lado, a Rússia malvada, anti-herói dos filmes de Hollywood e, do outro, o mundo livre, encabeçado pelos EUA. A Ucrânia é cada vez mais um títere, enfiado nas admiráveis calças dos amanhãs que cantam. Acontece que esses amanhãs, agora, também não são (muito) confiáveis.
O que acontecerá quando começarmos a sair para a rua exigindo o fim das ajudas bélicas à Ucrânia? O plural, aqui, é europeu, pois não vislumbro o anti-russo-soviético-comunismo primário americano a "mexer uma palha" para pôr fim à guerra. Até porque não é nada com eles.

Arber disse...

"...à medida que Washington e Londres faziam entrar a Ucrânia para a NATO pelas traseiras..."
Putin fez a única coisa que fazia sentido, precisamente impedir que um dia pudesse vir a ter mesmo à sua porta de entrada, na Crimeia, uma base naval da NATO, leia-se dos EUA.
Mas haverá alguém que ache isso possível, que alguma vez tal seria aceite por Putin ou qualquer outro responsável da Rússia?!
Ou toda a gente já se esqueceu da crise dos mísseis de 1962, ou então acham que os EUA têm mais direito à segurança do que a Rússia ou qualquer outro país.

Erk disse...

Esta caixa de comentário tresanda a esquerdalhas anti-NATO e CE.

Curiosamente, todos barafustando ao abrigo democrata da NATO e em estilos de vida e nos tempos livres que lhes são proporcionados pela abastança financeira da CE.

Ninguém dá mostras de querer saltar o muro para o lado dos, para eles, justos.

E isso é ilustrativo.

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