sábado, janeiro 28, 2023

Ele há cada drama!


Por um instante, fiquei na dúvida sobre o estado de espírito daquele meu amigo. Na quinta-feira, a meio da tarde, vi-o surgir, com passo apressado e um ar que parecia como que angustiado. Íamos em sentido contrário, na rua de São Paulo, perto do fundo do elevador da Bica.

Por coincidência, o aniversário desse amigo é hoje, sábado. Ele passou já da fasquia dos setenta, por uma mão cheia de anos. Nunca o vi muito preocupado com isso, mas, às vezes, as pessoas disfarçam os estados de espírito. Seria o que justificava a sua cara fechada, aquele olhar um pouco ansioso?

Eu sabia que a vida não lhe corria mal, salvo os azares inevitáveis que fazem parte da existência de quem por cá anda e se preocupa com os que lhe são próximos, mas onde os ventos (eu sabia!), sopravam agora no bom sentido. 

Reformado há muito, sempre o vi ocupado com imensas coisas que o interessavam, algumas que lhe davam “para os alfinetes” (como ele dizia, acho que por “understatement”), outras que lhe davam apenas muito gozo e entretem. 

Sabia-o feliz com os muitos amigos que tem. Muitos livros, alguma escrita, viagens agora q.b. e frequência regular de mesas de comezainas, tudo isso, à evidência, o divertia e alimentava o corpo e o tempo. Um dia, esse amigo tinha-me confessado que a existência lhe tinha dado muito mais do que aquilo com que alguma vez sonhara. 

E, no entanto, lá vinha ele, com ar estranho, como que a tentar escapar à leve chuva de molha-tolos que lhe humedecia o cabelo branco, já ralo. 

Não gosto de me meter, sem necessidade, na vida dos outros, mas aquele fácies preocupado, pouco conforme com o tipo quase sempre com humor que eu me habituara a conhecer nele, deixou-me curioso. 

Travei-o no passo, nem tinha reparado em mim, demos um abraço e perguntei-lhe: “Olha lá! Há algum problema? Vejo-te esquisito.”

Respondeu: “Claro que estou! Não consigo arranjar um táxi e tenho de estar num sítio daqui a pouco”. Era esse então o “drama”? Felizes os que chegam àquela idade e têm essas coisas como visível preocupação. 

E, com uma súbita alegria a despontar-lhe no rosto, vejo-o levantar o braço: “Lá vem um, finalmente! Bolas, que susto!, pensei que não conseguia”. E, para me compensar, deixou cair: “Temos de almoçar um destes dias! Eu ligo-te!” E o táxi arrancou. 

Como eu sei que esse meu amigo adora restaurantes, sobre os quais até chega a escrever, para nos abrir o apetite e, às tantas, também a inveja, acho que, um destes dias, ele vai cumprir. No dia de hoje ele só vai cumprir 75 anos.

6 comentários:

Manuel Pacheco disse...

Eu eu também neste dia faço setenta e quatro. Não tenho o cabelo tão ralo mas tenho-o da cor da neve.
Cumprimentos

AV disse...

Muitos parabéns :-)

Unknown disse...

O amigo está muito bem! Muitos Parabéns!

manuel campos disse...


Não sei se a frase é dele, provavelmente não será, mas é sempre dele que me lembro, cada vez mais vezes ao dia.
O Paul Simon (o da dupla com Art Garfunkel) teve uma notável carreira a solo depois disso.
No seu álbum “There Goes Rhymin' Simon” de Maio de 1973 e que tenho aí em LP, está uma canção a fechar o lado A que tem como título "One Man's Ceiling Is Another Man's Floor", que não é a melhor nem a mais conhecida canção desse álbum (nem sequer a 2ª).
Há outro álbum dele cujo titulo uso muitas vezes, assim justificando não dar em maluco porque pelos vistos já o era, é o "Still Crazy After All These Years" de Outubro de 1975, que também tenho por aí em LP, um álbum muito premiado e que tem uma canção de enorme êxito (a única number-one hit dele a solo), o que se percebe porquê dada a evidente utilidade prática do tema, é a "50 Ways to Leave Your Lover".

“Felizes os que chegam àquela idade e têm essas coisas como visível preocupação”.
"One Man's Ceiling Is Another Man's Floor" aplica-se a tudo na vida, todos os dias somos apanhados por inúmeras situações destas.
E o que acontece muitas vezes é que as pessoas habituadas a viver nela, não sabem a sorte que têm e, quando algo de mau lhes acontece, passam para o extremo oposto, porque nunca a vida lhes deu as ferramentas de defesa e, a partir de certa idade, já não costuma dar, como qualquer outra defesa.
Não será o caso da falta pontual de um táxi, mas é genericamente assim.

A situação mais complicada é quando temos à nossa volta casos de saúde mais complexos e, quando nos perguntam como estão as coisas, caímos na asneira de responder, pela minha parte deixei-me disso, só com os amigos de sempre que sei que se preocupam vou falando.
Há logo um tio duma prima do vizinho que teve algo de muito mais grave, nem eles sabem o que é que teve nem sabem do que é que estamos a falar mas nunca falha, há sempre alguém não se sabe onde, de que o nosso interlocutor ouviu vagamente falar, que passou por muito pior e nem percebem bem qual é o nosso problema e porque havemos de estar tão preocupados com os nossos quando há tanto drama aí no mundo com os outros (Caricaturo? Não me parece).
A conversa acaba connosco a ouvir que “vai correr tudo bem” mesmo quando se sabe de fonte certa que não vai ser assim, uma frase feita a preceito para não adiantar nada de útil à vida de ninguém, excepto à boa consciência de quem a diz.
Por isso o melhor é à pergunta “Como é que isso vai?” responder logo com um categórico “Tudo bem!”, se o outro não disser “Óptimo” e insistir algo do tipo “Mas então você não tinha … com um problema qualquer?” o melhor é responder a esses que “Tinha e tenho, depois falamos, até logo”, de todo o modo os outros só querem ser simpáticos ou delicados e, ao virar da esquina, seriam incapazes de reconstituír seja o que fôr do que lhes dissemos.

Os problemas dos outros são sempre “um problema qualquer”, ao contrário dos joanetes da nossa sogra que são um problema terrível, não porque a gente se rale com isso mas porque ela não se cala com aquilo.


Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Muitos Parabéns, Sr. Embaixador.
Muitos e bons anos pela frente!

manuel campos disse...


Muitos parabéns atrasados um dia.

Com a história dos cabelos brancos ralos fomos bem apanhados, o nosso amigo Sousa Rodrigues é que está sempre atento.

Fico assim na dúvida se há um amigo seu que faz os mesmos anos no mesmo dia ou se o "drama" de precisar urgentemente de um táxi lhe põe os cabelos ralos a si nesse interim.

Carlos Antunes

Há uns anos, escrevi por aqui mais ou menos isto: "Guardo (...) um almoço magnífico com o Carlos Antunes, organizado pelo António Dias,...