quinta-feira, outubro 20, 2022

Pérfida Albion


Como não será de estranhar, foi um francês, no século XVIII, quem crismou a Inglaterra como a “pérfida Albion”. Por cá, depois da humilhação do mapa cor-de-rosa, às loas ao “mais velho aliado”, que nos tinha poupado do “abraço do urso” de Castela e dos seus sucedâneos, a acidez face a Londres só podia crescer.

Muitos portugueses não sabem, mas quando berram, masoquistamente, “contra os canhões, marchar, marchar!”, estão a entoar uma patriótica corruptela. O texto original era “contra os bretões, marchar, marchar!”. Para os menos iniciados, esclareço que “bretões” não significava habitantes da Bretanha mas, simplesmente, os ingleses.

Não deve haver classe política mais “fria” e “pérfida” do que a britânica. 

Thatcher foi arrumada numa noite de conspiração, substituída por um genérico que dava aos conservadores esse bem essencial que era a continuidade no poder.

Depois de todas as confusões e equívocos de Cameron, com Theresa May de instável permeio, Boris Johnson assegurou, em 2019, uma muito confortável maioria ao seu partido. Mesmo assim, algumas trapalhadas e poucos anos depois, esse mesmo partido pô-lo com dono.

Pela primeira vez na história dos conservadores, o sentimento maioritário no grupo parlamentar, que fora responsável por afastar Johnson, tido como uma “liability” para uma futura eleição geral, não ia coincidir com o dos militantes do partido.

Os primeiros queriam um “safe pair of hands” e, conservativamente, escolheram Rishi Sunak. Os militantes, dessa estirpe de onde saiu o Brexit, preferiram Liz Truss, uma figura que já se revelava patética mas que iria ter os seus quinze minutos de fama (“I guess under this government everybody gets to be prime-minister for 15 minutes”, disse ontem, ironicamente, o líder da oposição, Keir Starmer, citando inviamente Andy Warhol) para ter oportunidade de mostrar, em pleno, o descalabro político que representava.

Pensando ter descoberto a pólvora, com propostas de um radicalismo liberal suicida, Truss acabou por descobrir a porta de saída, em escassas semanas, nem sequer lhe tendo valido o facto de ter presidido a um funeral nacional que lhe poderia ter dado uma unção para a chefia do país.

Os mercados, essa mão visível dos poderes fáticos do mundo, mostraram quem, na realidade, manda nestas coisas e, em especial, explicaram, com a libra a cair e os juros a subir, que, em política, só permanece quem eles entenderem que deve ficar.

Sócrates, por cá, já tinha experimentado a receita, num outro contexto. Truss iria ter um curso acelerado sobre o significado da expressão bíblica “the powers that be”.

Ontem, depois de dias de “facas longas” e de uma demissão artificial de uma ministra, que conseguiu desafiar os limites da deslealdade, a crueldade, associada ao bom senso, puseram Liz Truss fora do jogo.

Agora, temerosos da convocação de uma eleição geral que, tudo o indica, os arrasaria, face a um Partido Trabalhista que sabe que vai ser governo “só não sabe é quando”, como alguém um dia disse por aí, e que se limita a esperar o esboroar do outro lado, os conservadores britânicos vão fazer a sua escolha - desta vez, no seio do grupo parlamentar, porque um regresso à longa consulta da vontade das bases seria a receita para novo desastre.

Quem será o “John Major” de turno? Rishi Sunak, para voltar à “square one” da sua vontade? Penny Mordaunt, para uma mulher com qualidades e algum apelo nas bases, embora muito divisiva entre os seus pares nos Comuns? A opção mais à mão, o atual primeiro-ministro “de facto”, Jeremy Hunt? Ou o ministro da Defesa, Ben Wallace, um nome que reune algum consenso mas com pouco carisma?

Ou, afinal, a “solução” pode ser bem mais simples: o regresso de Boris Johnson, querido das bases conservadoras e que, por vontade destas, nunca teria caído. Quando Johnson se despediu dos Comuns, deixou uma frase enigmática: “Hasta la vista, baby!”. A expressão era de um filme de Schwarzenegger. Poucos notaram que, na película, a ela se seguia outro dito: “I’ll be back!” Boris Johnson poderá querer testar o velho dito: “Atrás de mim virá quem de mim bom fará”.

Logo veremos. Uma grande frieza vai seguramente imperar, desta vez, na busca da melhor solução. Resta saber se quem aí vier terá ainda tempo para conseguir reverter a tendência, que todas as sondagens apontam, no sentido dos trabalhistas virem a mudar, daqui a tempos, para a bancada do governo na Câmara dos Comuns.

9 comentários:

Unknown disse...

Se me fosse possível escolher, escolhia Penny Mordaunt, uma senhora que não é incompetente e é bem mais agradável à vista

Anónimo disse...

«Os mercados, essa mão visível dos poderes fáticos do mundo, mostraram quem, na realidade, manda nestas coisas e, em especial, explicaram, com a libra a cair e os juros a subir, que, em política, só permanece quem eles entenderem que deve ficar.»

Sendo assim ( e é assim...), para quê perder tempo a debater quem será o funcionário de turno ? E já agora: ainda perdemos tempo a ir votar em eleições para quê ?

MRocha

Nuno Figueiredo disse...

a mão invisível.

rsc disse...

Truss apresentou propostas de um radicalismo liberal suicida.
Truss criou um delicioso incómodo aos liberais.
Logo, os liberais não defendem um radicalismo liberal suicida

AV disse...

O comentário sobre a frieza e a perfídia faz sentido no que respeita ao Partido Conservador, um partido de poder e uma máquina de ganhar eleições. Não me parece que possa ser generalizado para o resto do sistema político britânico, que é complexo e mal entendido fora do RU em geral. O Partido Trabalhista, por exemplo, é um partido ideológico, ao contrário do Partido Socialista português, que é um partido de poder.

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Desengomem-se! E que venha o Labour em tempo favorável.

Luís Lavoura disse...

propostas de um radicalismo liberal suicida

Segundo um artigo de João Caetano Dias no Observador de ontem dia 22, a principal proposta de Kwarteng e Truss não era de um radicalismo liberal suicida, mas sim de um socialismo radical suicida. O que eles pretendiam fazer era comprometer o Estado britânico a pagar todo o custo de energia dos lares britânicos durante dois anos. Ou seja, o Estado pagaria as contas da luz e do gás durante dois anos. Isso é tudo menos liberalismo. E essa é que era a proposta mais ruinosa para as finanças públicas que Kwarteng / Truss fizeram.

AV disse...

Luís Lavoura, a proposta de Kwarteng e Truss não era pôr o estado a pagar as contas de energia dos cidadãos. Ela deu subsídios para ajudar os cidadãos a pagar a energia, independentemente dos seus rendimentos. Na realidade, e apesar disso, as contas de energia duplicaram para muitos, num país em que os mais desfavorecidos já tinham que escolher entre alimentarem-se ou aquecerem-se, e em que o número de pessoas a dependerem dos bancos alimentares é impressionante.

O que eles propuseram foi, entre outras medidas, cortar impostos na faixa mais alta de rendimentos e subsidiar isso à custa do endividamento do Estado. Foi isso que pôs os mercados em alvoroço, fez descer o valor da libra, e aumentar a inflação para cerca de 10%, empurrando ainda mais pessoas para condições de vida muito difíceis.

Cortar os impostos dos que mais ganham à custa do endividamento do Estado não é.uma política socialista. Nem tão pouco é conservadora. É uma política liberal selvagem.

AV disse...

Para clarificar o meu comentário anterior, os subsídios dados pelo governo de Truss foram para as empresas porem um limite ao preço da unidade de gás e de electricidade. Não foram atribuídos directamente aos consumidores.

João Miguel Tavares no "Público"