segunda-feira, outubro 31, 2022

Lula e o traumatismo ucraniano


O mundo ocidental reagiu positivamente à vitória de Lula. Trata-se de alguém reconhecido como nunca tendo posto minimamente em causa a estabilidade democrática, no seu país, nos oito anos em que passou pelo poder. Alguém que, durante esse período, levou à prática, sem a menor turbulência, um corpo de políticas sociais sensatas, que as instituições internacionais reconheceram ir no sentido certo. Alguém que desenvolveu uma ação externa tida como altamente responsável, quer bilateralmente, quer nos quadros regionais ou multilaterais em que se envolveu. 

Muitos, inevitavelmente, continuarão a alimentar para sempre reticências sobre o seu percurso controverso pelos terrenos da justiça: essa é uma sina que não o abandonará, para sempre. O efeito Bolsonaro foi, contudo, tão negativo, tendo tornado de tal modo infrequentável o Brasil por todos estes anos, que o regresso de Lula ao Planalto, através da legitimação pelo voto, como que acaba por absolvê-lo em definitivo, sendo uma notícia a festejar.

Este ambiente vai manter-se? Posso estar enganado, mas não é de excluir, em absoluto, que esta possa ter sido uma alegria breve, em que emergirão “mixed feelings”. Por que é que digo isto? Porque o mundo em que o Brasil de Lula se moveu, entre 2003 e 2011, já não existe, nos seus equilíbrios básicos. O tempo sereno dos BRICS e do IBAS, dos abraços à hora do café do G7, dos consensos fáceis no G20, já lá vai. Hoje, há por aí uma guerra, sedeada na Ucrânia, na qual os EUA, os seus amigos íntimos europeus e outros Estados dependentes estão de um lado e, do outro, está uma Rússia acossada, com grande parte do sul a abster- se de tomar posição. 

Para os EUA, bem como para uma União Europeia que hoje vive sob a sua, uma vez mais óbvia, tutela de segurança, não parece haver espaço para dúvidas: quem não está por nós está contra nós. A Lula, que já emitiu sinais de que o seu Brasil desejaria poder permanecer sobre o muro (nisso não diferindo muito dos sinais emitidos por Bolsonaro), apoiado em alguma ambiguidade, vai ser pedido, seguramente, que desça dessa posição equívoca e que diga, com total clareza, em qual dos dois lados se situa. Posso estar enganado, mas a diplomacia brasileira vai, nos tempos mais próximos, ser sujeita a um traumatismo ucraniano.

8 comentários:

Anónimo disse...

Nisso, o Lula segue toda a América Latina e a maioria do resto do mundo. É a União Europeia que deve ter bom senso e reconhecer que o que acontece na Ucrânia não tem tem necessariamente de provocar no resto do mundo as paixões assolapadas que surgiram na Europa.

Lúcio Ferro disse...

Nos últimos meses o presidente eleito falou pouco sobre o assunto e das poucas vezes que falou foi para apontar o dedo a zelenski, como em Maio e à revista Time, sendo por tal alvo de críticas severas pelos senhores de kiev, se não estou enganado. Concordo com a pessoa que comentou acima, o próximo executivo brasileiro vai manter-se à margem, não vai abrir mão do curso seguido até agora e até pode e deverá reforçar discretamente os laços com a Rússia e remanescentes BRICS, até bolsonaro percebera que esse é do interesse do Brasil; se a Arábia Saudita faz o manguito aos EUA, o Brasil de Lula irá prestar vassalagem? Olhe que não, olhe que não.

Anónimo disse...

O Lula tem mais em que pensar e quem está a sofrer um traumatismo ucraniano é a Europa. Na diplomacia é melhor que não se ponha a dar diretivas ao resto do mundo. Esses tempos, desconfio, estão a acabar.

Antonio

manuel campos disse...


Para além do feliz "jeu de mots" do "traumatismo ucraniano". não vejo porque é que Lula há-de dizer, com toda a clareza, em que lado se situa só porque a UE e os EUA dizem não ter dúvidas (ainda que isso mesmo esteja em "evolução", vêm aí tempos para uns e outros que a História decerto considerará bastante interessantes).
Para a semana tudo leva a crer que os EUA não estejam exactamente como estão hoje, talvez não se note logo mas já há quem se tenha dado conta que o voto dos jovens, que se empenharam em correr com Trump, não está agora empenhado do mesmo modo em defender Biden.
Lula tem que defender os interesses do seu povo e não me consta que por lá se pense como por cá se pensa (não pensa, mas não vou por aí).
E se a América Latina não anda muito entusiasmada com o que se passa na Europa, porque é que o Brasil haveria de estar?

Unknown disse...

Acho que se o Lula tiver um surto de " esquerdismo" nesse capítulo, o Ocidente não vai perdoar. Os tempos não estão de feição.

Luís Lavoura disse...

Países tão importantes e tradicionalmente tão dependentes dos EUA e da Europa como Israel e a Turquia têm-se mantido "sobre o muro" desde o início da guerra; por que é que o Brasil não poderá continuar a fazê-lo também? Se vão pressionar o Brasil, que irão fazer a Israel e à Turquia?

João Cabral disse...

«não tem tem necessariamente de provocar no resto do mundo as paixões assolapadas que surgiram na Europa»
Há quem pareça esquecer-se de que poderá estar em causa um conflito nuclear ou uma guerra mundial...

Luís Lavoura disse...

João Cabral,

você está a trocar a causa com o efeito. Não é a possibilidade de uma guerra mundial que provoca paixões assolapadas; é exatamente o contrário.

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