Numa livraria inglesa, em Paris, no final de 2000, um amigo chamou-me a atenção para um livro, acabado de publicar, que analisava o ambiente menos conhecido do interior dos restaurantes de Nova Iorque, cidade para onde eu iria viver, dentro de meses. O meu vício pela gastronomia nunca me tinha levado a conhecer o nome do autor, Anthony Bourdain.
Recordo-me de que li o livro aos poucos, sem uma especial atenção, mais pela curiosidade de ele me trazer a perspetiva de um “insider”, relativamente ao mundo que fica para além das portas bamboleantes de acesso às cozinhas dos restaurantes. E nisso o autor não nos desiludia: o glamour facial da restauração de luxo era ali desmistificado através das histórias sobre a cruel dureza, psicológica e física, de um métier da moda, de um negócio quase ciclotímico, nos ciclos de sucesso e desespero comercial.
Logo nos primeiros dias da minha estada em Nova Iorque, tive a curiosidade de visitar a casa onde Bourdain tinha imprimido entretanto o seu nome, o Les Halles. Tratava-se de uma “brasserie” no setor com mais vida urbana da Park Avenue. Para quem vinha da Europa, mesmo conhecendo o gosto de uma certa América por aquilo que por ali se acha ser a sofisticação francesa, o restaurante tinha algo de vulgar. Era apenas uma caricatura da Lipp ou da Closerie de Lilas, com o próprio nome a ecoar um mercado perdido de outro Paris. Comia-se bem, o preço não era excessivo para os hábitos locais, exceto os vinhos, que eram proibitivos. O menu era interessante, mas não imaginativo por aí além. Nunca vi por lá Bourdain e, confesso, comecei a interessar-me por outras experiências gastronómicas que Nova Iorque então oferecia. Mas ainda frequentei o Les Halles uma meia dúzia de vezes, quase sempre com amigos de passagem, saudosos da cozinha do velho continente. (Para a história: o Les Halles faliu em 2017, já sem Bourdain).
A imagem de Anthony Bourdain, num registo muito diferente, viria a surgir-me um dia numa televisão, num programa que se chamava “No reservations”. Aí coloquei uma cara e uma voz naquele nome. Mas, mais do que isso, surgiu-me subitamente a imagem de uma personalidade culta, atenta ao mundo, curiosa e interrogativa. O Bourdain do “Kitchen Confidential” estava ali no seu melhor, muito distante da barra comum do Les Halles. Contudo, foram poucas as vezes que vi esse programa, que agora verifico ter passado no Travel Channel.
Um outro dia, anos mais tarde, num zapping televisivo, reapareceu-me Anthony Bourdin. A agilidade fílmica da CNN dava outro enquadramento e ritmo a esta sua nova experiência televisiva. O modelo era diferente: menos intimista, mais cosmopolita, no limiar da antropologia cultural. Era muito interessante ver uma figura saída da cozinha convencional a passear-se por cenários quase “radicais”, das tascas de rua aos locais mais simples e estranhos. Devo confessar, para que não sobrevivam dúvidas, que raramente aquela exploração de culinárias raras me excitou os sentidos, particularmente ao ver Bourdain testar alguns produtos cuja bizarria fazia presumir sabores estranhos.
Mas os programas eram excelentes. Bourdin, como os seus livros entretanto haviam provado, era um homem culto, atento ao mundo, observador arguto das pessoas e dos costumes. Isso “casava” lindamente com a cultura CNN. É que, ao lado e por causa das culinárias, vinham os povos, a sua história, tudo embrulhado nas cores apelativas de quotidianos muito diferentes. Havia por ali muito de “National Geographic”, de história da cultura, na escolha hábil e sábia dos interlocutores, dos convidados e dos temas. Até Portugal lhe não escapou.
Anthony Bourdin deu-se ontem a morte num hotel perto de Colmar, uma geografia muito menos inóspita do que a esmagadora maioria dos lugares onde nos habituámos a vê-lo passear a sua curiosidade, para encanto de milhões que, como eu, eram beneficiários do seu gosto. Estou certo de que não foi tentado a testar as duas estrelas Michelin do JY’S, ali ao lado. Aos 61 anos, uma vida cheia desfez-se, subitamente, num golpe de mistério. Mas Anthony Bourdain nunca foi cliente do óbvio.