terça-feira, maio 29, 2018

Ainda pensar

No último post, falei por aqui da palavra “penso”, numa perspetiva um tanto bizarra. Mas há mais vida para o conceito, como verão. Deixo uma história verdadeira, passada num Centro de Saúde, contada por quem assistiu à cena.

A telefonista do Centro atendeu uma chamada de uma senhora. Parecia aflita. Queria falar com o seu marido, que tinha ido lá a uma consulta. Explicaram-lhe que era difícil chamá-lo ao telefone. “Por que lhe não liga pelo telemóvel?”, foi-lhe perguntado. “Nós não temos dessas coisas”, explicou a senhora, que era claramente de alguma aldeia das redondezas. Foi decidido ligar para um telefone fixo perto do balcão e chamar o marido da senhora. E assim foi feito.

O telefone, contudo, ficava ainda a uns metros do balcão. Do outro lado da linha, a senhora explicou que, na verdade, não precisava de ser ela a falar com o marido, queria apenas fazer-lhe uma pergunta. “Até pode ser a senhora a perguntar-lhe. Eu só queria saber se ele pensou ou não”. A funcionária do Centro estava perplexa: “Se pensou ou não?”. “Sim, pergunte-lhe só isso”. 

A conversa, entretanto, “socializou-se” aos utentes à espera. Um tanto atrapalhada, perante o olhar da sala, a funcionária, de dentro do balcão, perguntou, alto, ao senhor, um homem de aldeia, já idoso, muito simples de modos: “A sua senhora pergunta se já pensou”. O homem foi rápido: “Diga-lhe que sim, que já pensei”. A resposta foi transmitida de volta, mas a maioria das pessoas ficou intrigada, alguns sorrindo.

O homem foi sentar-se no lugar, à espera da consulta. E comentou, também alto: “Atão eu ia lá sair de casa sem pensar o gado!”. 

É que, nas aldeias, “pensar” significa dar comida, o penso, ao gado. A língua portuguesa, além de traiçoeira, é muito rica.

7 comentários:

Majo Dutra disse...

~~~
Interessante.
Não fazia ideia!
~~~~~~~

Anónimo disse...

Artigo 1124.º do Código Civil
(Na parceria pecuária) «O parceiro pensador é obrigado a empregar na guarda e tratamento dos animais o cuidado de um pensador diligente.»

dor em baixa disse...

Ora aqui está uma história que me levou a pensar coisas novas, não obstante tratar-se de coisas antigas.

Anónimo disse...

palavra provavelmente relacionada com pensão (o hotel e a que se recebe no final do mês)

Anónimo disse...

E ainda dizem que o acordo ortográfico deve ser aplicado. Quem ler isto em África ou Brasil o que entenderá o que significa este "pensar.

dor em baixa disse...

O Acordo é exclusivamente ortográfico, nada tem que ver com o léxico, nem com a sintaxe e muito menos com aspetos semiológicos.

João Cabral disse...

"dor em baixa", a questão não é essa, é que mesmo com o acordo ortográfico, persistem diferenças na língua que nenhuma pretensa unificação ortográfica eliminará. Ou seja, o acordo é uma falácia.

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