sábado, outubro 07, 2017

A Catalunha entre nós

Há meia dúzia de meses, entre nós, a questão catalã não era conversa fora dos círculos especializados. Mobilizar a abertura para o tema, junto do público ou mesmo da academia, era uma tarefa complexa, a que pacientemente se ia dedicando, num esforço de notável empenhamento, esse grande "embaixador" informal da Catalunha em Portugal que dá pelo nome de Ramon Font.

Não posso precisar a data, mas foi algures em 2015 que recebi uma chamada telefónica de um amigo inglês. Tinha acabado de chegar a Lisboa e queria almoçar comigo. Durante o repasto, explicou-me que fazia parte de uma empresa de lóbi, paga por entidades catalãs, que preparava a independência da região. Ironizei, perguntando por que não tinham sido contratados pelos escoceses. Imagino que tenha desviado a conversa. Esse amigo voltaria a Lisboa, meses mais tarde. O seu trabalho continuava: medir o "sentimento" internacional sobre o processo pró-independentista catalão era o seu caderno de encargos. 

Recordo-me muito bem do que lhe disse. Por um lado, que não esperasse - nunca! - uma postura de qualquer governo português favorável ao secessionismo catalão. Lisboa, dependendo do "mood" que conjunturalmente prevalecesse na chefia da sua diplomacia, oscilaria entre uma postura favorável ao unionismo madrileno e uma espécie de "neutralidade colaborante" com o governo espanhol. Nada mais. 

Coisa diferente, porém, seria o sentimento da opinião pública. A meu ver, se e quando a questão acaso viesse a agudizar-se, estava seguro de que iria emergir em Portugal um sentimento popular de simpatia pela causa catalã: por uma atitude sincera face a uma vontade de auto-determinação, somada a um endémico anti-espanholismo (melhor, uma tradicional síndrome anti-Castela). 

Não me enganei. Emocionalmente, a causa catalã ganhou muitos adeptos entre nós, nas últimas semanas. E, nos dias de hoje, criou-se na opinião pública portuguesa, mesmo em parte da que não despreza a legitimidade de uma Espanha democraticamente unida, uma avaliação negativa do modo como se processou a tentativa de boicote físico do processo referendário e, igualmente, do tempo e do modo da posterior reação de Filipe VI. 

Dependendo embora da evolução do processo no terreno, e não contando com efeitos de eventuais futuros erros independentistas, fica a sensação de que a posição oficial espanhola tem mais condições de poder vir a degradar-se no juízo popular português do que a causa independentista. Contudo, isso não não deve afetar a preservação da postura do executivo de Lisboa, pelo que não é de excluir que esta se possa vir a tornar crescentemente impopular no país. Mas, repito, antevejo que a atitude oficial de Lisboa continue a ser sempre a mesma, até ao fim, qualquer que venha a ser esse fim.

(Artigo no “Público” hoje)

sexta-feira, outubro 06, 2017

O sol

Chamada telefónica de S. Bento: “O senhor primeiro-ministro pede para passar por cá, ainda hoje, com urgência, por favor”. Saiu à pressa do Ministério. No carro, calou logo o início da conversa do motorista sobre o trânsito (agora que o Medina foi eleito, o homem já se permitia dizer mal) e pôs-se a imaginar o que lhe ia ser dito: a compreensão para a necessidade de um “refrescamento” no ministério, o início de um “novo ciclo”, depois das autárquicas, a caminho das legislativas, a lembrança das “condições particularmente difíceis” em que o “excelente trabalho” foi executado, o “profundo agradecimento” que lhe era devido mas, também, o “inevitável desgaste”, a imprensa, os lóbis. Telefonou ao cônjuge: “Olha! seja o que deus quiser!”. É isso, afinal as coisas não são para sempre, a experiência até fora interessante, mas talvez fosse mesmo a hora de regressar à base de onde partira. Era preciso serenidade, não mostrar agaste, muito menos desilusão. Era preciso, afinal, saber “sair bem”. No fundo, caramba!, quantas vezes já pensara que isto iria, mais dia menos dias, acontecer. Talvez fosse mesmo melhor assim, partir num momento “alto” do governo”, bem preferível a um tempo de crise, marcado pelo acossamento mediático. Pensando bem, o cansaço já se acumulava, desde há tempos. De certo modo, ia ser uma “libertação”. Lembrou a metáfora do “pássaro a sair da gaiola”, de Soares, quando foi “despedido” por Eanes. A ideia, por um segundo, trouxe-lhe um “blue”: feitas as contas, o que lhe ia acontecer era uma espécie de “despedimento”! No cimo da escadaria, em cujas paredes ainda andavam a colocar os últimos quadros que os tipos da Cultura trouxeram de Serralves, procurou, num segundo, interpretar o leve sorriso da Sãozinha, mas ela, esfíngica, apenas lhe abriu a porta da salinha, com um “olá, como vai?”. Da Rita, barómetro seguro do sentido das coisas da casa, nem rasto. Já o David, que cruzara no páteo, lhe parecera algo estranho, quase translúcido. “Vamo-nos sentar”, disse o primeiro-ministro. “Achei que era bom falarmos pessoalmente sobre a viagem da semana que vem. Vão ser muitos quilómetros em dois dias. Afinal, que encontros é que vamos ter? Temos de os preparar muito bem”. Entendia, finalmente e com alívio, a razão da convocatória. E, a partir daí, a voz do chefe do governo pareceu-lhe como que a esvair-se pela sala, orquestrada com uma melopeia de fundo, num harmonia de violinos. Do sofá azul, já num recosto quase lânguido, espraiou o olhar para fora, pela janela, em direção à calçada. O sol brilhava. Caramba, como a vida é bela!

O Porto e o poder



Salazar não gostava do Porto. Nos lugares cimeiros da governação da ditadura, durante várias décadas, os portuenses não chegam aos dedos de uma mão. Seria o republicanismo remanescente do 31 de janeiro que o irritava? Ou o fechamento quase maçónico das famílias, a impenetrável discrição dos clãs do "Portuense", o jeito reivindicativo do empresariado que o encanitava?

Sá Carneiro conseguiu trazer o Porto para a ribalta da democracia. Com ele, a cidade voltou a ter um "share" de poder em Lisboa, o qual, no entanto, se foi esvaindo ao longo do cavaquismo, que progressivamente se confinou a algum tecnocratismo lisboeta, às vezes universitário, outras com um toque de “social” Lapa-Linha, complementado pelos fiéis de aparelho, muitos de extração provinciana. Antes, o soarismo só havia feito “os mínimos" na promoção do Porto. Depois, PS (Guterres e Sócrates) e PSD (Barroso e Passos) também não foram muito mais longe. Fica mesmo a ideia de que, quando se forma um governo, à esquerda ou à direita, chega um momento em que alguém faz pergunta: "e do Porto, quem é que se põe?". Parece não haver consciência de se estar perante um fator de deslegitimação: a importância relativa do Porto, em termos económicos, culturais ou societais justificaria uma muito maior presença de figuras da cidade nos lugares de topo do poder nacional. O fenómeno Rui Moreira, a meu ver, é uma direta consequência desse sentimento de injustiça.

A tese é discutível, e é só minha: na política portuguesa, em regra, só têm sucesso pleno as figuras do Porto que, de tanto andarem por Lisboa, já são vistas como "quase lisboetas". Alguém que traga o "letreiro"'do Porto colado à imagem, por muito competente que possa ser, sofre, não raramente, de uma rejeição, expressa ou subliminar, nos corredores lisboetas, agravada pela falta de um "networking" capaz na capital (e, às vezes, também, por erros próprios, claro). Querem exemplos flagrantes? À esquerda, Fernando Gomes, à direita, Miguel Cadilhe. E alguém duvida que figuras com a dimensão e a competência de Valente de Oliveira ou Silva Peneda, de um lado, ou de Elisa Ferreira ou Teixeira dos Santos, do outro, não teriam tido já outro percurso, à escala nacional, se não trouxessem consigo o rótulo portuense?

Tudo o que escrevi teve como objetivo olhar, prospetivamente, para a sorte que pode vir a ter uma liderança do PSD titulada por Rui Rio ou Paulo Rangel. Sem querer parecer Cassandra, sou de opinião de que a imagem do Porto que está gravada no perfil dessas figuras pode vir a limitar o seu êxito nas ambições nacionais que visivelmente alimentam. Cá estaremos para ver.

quinta-feira, outubro 05, 2017

Coincidências

Há pouco, coloquei por aqui a imagem do menu de um frustrado jantar que o rei dom Manuel ("segundo e último", como diz um amigo jacobino) deveria ter tido no dia 5 de outubro de 1910, na Quinta da Raposeira, em Vila Real. Herdei do meu pai esse precioso documento, que lhe foi oferecido por alguém. 

A Revolução Republicana havia nascido na véspera, em Lisboa, embora, aqui por Vila Real, os conjurados se tivessem já reunido no dia 3 de outubro de 1910, no n° 44 da rua Avelino Patena. 

Por ocasião dos 100 anos da República, foi aí colocada uma placa comemorativa e foi-me pedido, pelo município, que evocasse, numa sessão no meio da rua, a herança republicana. Assim fiz, aproveitando para notar algo que ninguém sabia (nem tinha de saber): é que seria nessa mesma casa que eu iria nascer, algumas décadas depois...

Mas há mais um coincidência. Fui hoje almoçar a um novo restaurante, na rua Teixeira de Sousa, em Vila Real. Isso fez-me lembrar a razão pela qual o rei dom Manuel tinha decidido vir a Trás-os-Montes, antes da República lhe ter estragado os planos e enviado, via Ericeira, para a Inglaterra, onde morreria 25 anos depois.

O rei veio ao Norte para inaugurar o Hotel Palace, no Vidago. Quem era o proprietário do novo hotel? O primeiro-ministro de então, Teixeira de Sousa! 

Podemos imaginar o escândalo que seria, nos dias de hoje, um chefe de Estado ir inaugurar um hotel propriedade de um primeiro-ministro em exercício! Seria mesmo caso para uma revolução ou, num registo menor, para um post indignado de algum auto-proclamado justiceiro.

Viva a nossa República!

O povo saiu à rua, o rei não jantou e a República ficou para sempre.



Testemunhas

Desde a infância, ouvia o meu pai dizer uma fase cujo sentido, durante anos, me intrigou: "testemunhas para isso não há!". Usava essa expressão para significar, perante uma determinada situação em que era necessário alguém se "chegar à frente", para a execução voluntária de qualquer tarefa, se constatar a indisponibilidade de todos os presentes.

Um dia, perguntei ao meu pai a razão de ser do dito. E ele explicou-me que, desde a sua infância, a minha avó usava a expressão nesse sentido, bem distante do original. Mas de onde é que ela provinha?

A história não deixava de ser curiosa. No início do século XX, havia em Viana do Castelo um fulano, “habitué” dos tribunais, cuja função consistia em arregimentar testemunhas falsas para os julgamentos, a pedido dos advogados. O homem tinha artes de recrutamento muito apuradas, fazendo o "casting" de acordo com o perfil dos acusados e do tipo de delito, mantendo dezenas de potenciais testemunhas em agenda. Naturalmente que a coisa tinha o seu preço e os valores cobrados eram divididos entre o homem e as testemunhas, sendo tanto maiores quanto a complexidade do processo. Havia sido o meu avô, que morreu muito novo e muito cedo, em 1925, quem um dia trouxe para casa, dos seus dias de trabalho nos tribunais, essa expressão, que lhe havia sido contada por um advogado. Ao que parece, em face de um processo "impossível", em que era muito arriscada para as testemunhas praticarem um perjúrio, o experiente recrutador terá dito ao causídico: "Testemunhas para isso não há, senhor doutor!"

Porque é que me lembrei disto agora? Sei lá! Mas, como dizem os franceses", "j'en passe"!

quarta-feira, outubro 04, 2017

Audição na Assembleia da República


Embora este seja um blogue pessoal, não desejo convertê-lo num espaço excessivamente dedicado àquilo que me respeita. Porém, alguns amigos mostraram curiosidade em saber o que se passou na audição a que ontem estive presente na Assembleia da República. Aqui fica o video dessa audição.

terça-feira, outubro 03, 2017

Ter opinião

Durante mais de uma hora, estive hoje na Comissão Parlamentar que, nomeadamente, se ocupa das questões da Comunicação Social. Este era o último passo antes de ingressar no Conselho Geral Independente (CGI) da RTP.

Relembro que compete ao CGI nomear e exonerar a administração da empresa e, em termos gerais, velar pelo cumprimento do serviço público de televisão e radiodifusão.

Apresentei a minha leitura dos principais desafios que, na perspetiva de quem ainda não assumiu funções, a empresa enfrenta, destacando várias dimensões que entendo prioritárias do respetivo serviço público, dando especial ênfase às questões que se prendem com os canais internacional e para a África, da RTP e da RDP. Sublinhei, neste contexto, a importância que atribuo à radio pública e à sua missão à escala global.

Falei igualmente da necessidade da RTP se posicionar perante as novas plataformas tecnológicas de informação, do binómio exigências do serviço público/audiências, dos desafios provocados pela evolução do perfil etário dos atuais telespetadores, dos equilíbros no triângulo informação / cultura / entretenimento, dos interesses das comunidades portuguesas e do mundo da língua portuguesa em geral, da especifidade da dimensão regional, da abertura da RTP à sociedade civil organizada, da importância do serviço público de televisão e rádio na atenção às minorias e às comunidades estrangeiras residentes em Portugal, bem como à generalidade das culturas que se exprimem em português. A questão da valorização e formação dos quadros da RTP/RDP foi também abordada.

Durante o construtivo diálogo que mantive com os diversos representantes partidários na Comissão, tive ocasião de esclarecer sobre o que entendo ser a completa irrelevância das minhas atividades profissionais atuais relativamente às funções no CGI. Expliquei ainda que, aquando da minha audição na Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), tinha deixado bem claro que a aceitação do convite que me fora feito para integrar o CGI - no pressuposto de, com isso, não ter direito a qualquer remuneração -, tinha também implícita a minha indisponibilidade para cessar a colaboração que atualmente mantenho em alguns órgãos de comunicação social, ou mesmo a atividade que desenvolvo nestas redes sociais. Essa fora, aliás, a única questão suscitada perante mim pela ERC. Não prescindia, em absoluto, do direito a ter uma opinião e dela dar conta pública, quando e da forma como o entendesse.

segunda-feira, outubro 02, 2017

Listopad


Há dias, falei por aqui de Jorge Listopad, referindo ter sido seu aluno em aulas de russo, no final dos anos 60. Perdi-o pessoalmente de vista desde então, apenas o cruzando, esporadicamente, no barbeiro comum de quem éramos clientes e amigos.

Foi hoje anunciada a morte de Jorge Listopad, aos 95 anos. Era checo, adotou o atual nome depois de vir viver para Portugal, onde, nomeadamente, trabalhou em teatro e na comunicação social. 

Para sempre ficará a sua secção "O Coelhinho", no JL, onde Listopad se consagrou como um "dos nossos". É que só se consegue fazer humor capaz numa língua que amamos e na qual nos sentimos plenamente "em casa". E a casa de Jorge Listopad, para nosso bem (e, pelos vistos, também dele) era Portugal.

Álvaro Mendonça e Moura


Hoje é um dia feliz para o Palácio das Necessidades. Tomou posse como secretário-geral da "casa" o embaixador Álvaro Mendonça e Moura. 

Entrámos no mesmo dia para o MNE, sendo desde então bons amigos, quase só divididos pelo futebol: o Álvaro é um portista fanático. Há que estar atento, não vá ele ter a tentação de pintar de azul as paredes das Necessidades...

Trata-se de um dos mais qualificados diplomatas portugueses, com uma carreira ímpar, uma experiência bilateral e multilateral riquíssima. Inteligente, preparado, sabedor e com trato humano excecional, é uma ótima e consensual escolha. Melhor era impossível! 

As esperanças da Carreira estão agora nele colocadas, na superação das dificuldades e das insuficiências que, com leal frontalidade, elencou no seu discurso de posse.

Augusto Santos Silva, ao apresentar a "carta de missão" do novo nomeado, referiu querer contar com ele, para além do registo funcional tradicional (muito voltado para as tarefas de gestão), também para um papel de aconselhamento político. Trata-se de uma atribuição que tem escola naquela função, mas que estava distante daquilo que, nas últimas décadas, vinha sendo pedido aos secretários-gerais do MNE. Mas Santos Silva tem razão: muito poucos diplomatas, sendo o novo secretário-geral um deles, poderiam assegurar com êxito essa tarefa. Por isso, a escolha não podia ser mais adequada.

Parabéns e felicidades, Álvaro!

Catalunha

O modo infeliz como as coisas correram na Catalunha afetou a autoridade do governo central espanhol e estimulou a causa independentista.

Nada que não fosse expectável.

América

Deve haver algo de doentio na sociedade americana que conduz à regular ocorrência de atos de violência indiscriminada.

De comum, tais ocorrências têm sempre o "espetáculo", as imagens da cobertura televisiva. Será esta (inevitável) visibilidade uma das razões que motiva os criminosos? Ou o culto nacional das armas terá também alguma coisa a ver com isto?

Poluição visual

Deveria começar a contar hoje o período (digamos, de uma semana) para a retirada completa da propaganda eleitoral, findo o qual passaria automaticamente a haver uma multa diária, deduzida da subvenção pública que o Estado dá aos partidos. 

Porém, o conluio existente entre todas as forças políticas, que conduz à paisagem terceiro-mundista de cartazes a apodrecerem e a degradarem o cenário quotidiano, parece impedir que se legisle e regulamente sobre isto. É que são juízes em causa própria.

Em oito pontos

Desde que comecei a deixar algumas coisas escritas, nas redes sociais e nos jornais, quando me meto a falar sobre o futuro, dou-me conta de que, nas coisas da política, me engano bastante. É que a realidade é muito mais imaginativa do que as pessoas e prega-nos imensas surpresas. O resultado das eleições autárquicas levou-me a tirar algumas conclusões. Pelo que atrás disse, elas valem o que valem, mas aí ficam:

1. Fiquei surpreendido com a dimensão da vitória socialista. Não esperava este resultado, obtida "pró-ciclo". Mas o país está "bem disposto" com o governo e quis dar a António Costa um "sorriso" eleitoral. Espero que o PS não embandeire em arco, num triunfalismo que leve parte do seu aparelho a tentar "explorar o sucesso". António Costa e, em especial, Ana Catarina Mendes (mas também Vieira da Silva e outros "powers that be") devem ter o maior cuidado na travagem de algumas tentações que possam vir a surgir.

2. Acho importante refletir no discurso de Jerónimo de Sousa, na noite eleitoral. O PCP "nunca perde" eleições, arranja forma de as "ganhar sempre". Mas, desta vez, o seu líder pôs uma iniludível cara de enterro, percebendo uma coisa muito simples: muito do seu eleitorado, satisfeito com as políticas do governo, deu o crédito delas ao... governo, isto é, ao PS. Quer isto significar que os socialistas capitalizaram para si os efeitos da "geringonça", não dando os votantes ao PCP os louros (verdadeiros, aliás) de ter sido ele a forçar o governo do PS a tomar algumas medidas que os beneficiou. O PCP terá constatado nesta ocasião os efeitos nefastos da "geringonça" sobre a estabilidade do seu eleitorado. Perder Almada é um terramoto que deve ter sido sentido na Soeiro Pereira Gomes em registo de tragédia. Irá o PCP tender a abalar a "geringonça"? Talvez o não faça imediatamente, mas as negociaçōes do Orçamento vão já ser um inferno. Por mim, não acredito que o PCP possa aceitar ir até ao fim da legislatura. Entretanto, irá pôr na rua as suas "tropas" sindicais, como anda a fazer.

3. O PSD perdeu ainda mais do que aquilo que se pensava possível. O resultado em Lisboa revela que Miguel Relvas tinha razão quando falava da "ruralização" do partido. Nunca pensei, contudo, que uma certa base urbana (que deveria andar nos 15 a 20%) abandonasse o PSD, nem que fosse apenas por "clubite" (há um certo PSD que encanita com o CDS). Os social-democratas apenas reagiram bem nos escassos locais onde tinham presidentes fortes (Braga, Cascais, Guarda), isto é, onde o trabalho, visto como positivo, dos seus autarcas conseguiu não ser poluído pela imagem nacional de declínio que o PSD de Passos Coelho hoje projeta.

4. Acho que Passos Coelho se vai embora. Vai, contudo, tentar gerir a transição, para evitar que o partido caia na mão dos seus inimigos internos. Procurará talvez deixar no seu lugar Luis Montenegro, para travar Rui Rio. Mas não será candidato a um congresso, que talvez tenha de ser antecipado - caso contrário o seu "phasing-out" será devastador. Mas não subestimemos em absoluto a sua teimosia...

5. O Bloco de Esquerda tive um dia mauzote. Salvaterra voltou a escapar-lhe, não elegeu o seu excelente candidato no Porto e apenas um lugar em Lisboa e alguns fogachos irrelevantes pelo país não chegam para dar um mínimo de corpo a uma, ainda que mínima, ambição autárquica. Assim, encarando as coisas com um ar mais alegre do que o PCP, o Bloco também terá percebido que a "geringonça" lhe traz um certo desgaste: parte do seu eleitorado, habituado a olhar para o PS como uma "direita da esquerda", terá sido entretanto seduzida por António Costa e por este "novo PS". E começa a votar PS...

6. O CDS fez a festa em Lisboa. Cristas legitimou a sua liderança, num CDS onde as contas pós-Portas não estavam ainda fechadas. O PSD não lhe vai perdoar tão cedo a humilhação, mas o seu estilo truculento começa a render. O CDS só pode crescer à custa dos votantes flutuantes entre ele e o PSD. A luta, portanto, vai ser sobre a liderança retórica da direita, a partir do momento em que o substituto de Passos Coelho surja. Vai ter graça.

7. Uma nota para o Porto. Um estranho candidato do PSD levou uma monumental "abada", por uma razão bem simples: a direita no Porto vota Rui Moreira, que é visto como uma figura conservadora, com a vantagem de não ser ligado à governação Coelho-Portas. O PS, não obstante um crescimento notável de Manuel Pizarro (atenção a ele!), ficou à porta da Câmara, mas o futuro anda por ali.

8. Em Oeiras, um certo país provou que pertencer a um nível social com elevada educação académica e de rendimentos não significa necessariamente ter padrões morais e cívicos recomendáveis, na hora de votar. O que, felizmente, não aconteceu em Gondomar. E em Loures provou-se que não vale tudo e que, se os candidatos não têm escrúpulos, os eleitores ainda parecem tê-los. Este Portugal dos candidatos marginais tem de ser estudado e prevenido. Como? Com uma forte exigência de decência.

sábado, setembro 30, 2017

É isto!

Uma excelente entrevista do ministro Augusto Santos Silva a Teresa de Sousa, no "Público". Esta posição de Portugal no debate europeu, naturalmente consonante com aquilo que António Costa disse há dias em Bruges, é, na minha opinião, a atitude mais responsável e em sintonia com os reais interesses nacionais. Trata-se de uma política que se nota que tem vindo a ser maturada no seio do governo e que apresenta, para quem acompanha com atenção estas coisas, algumas novas (e muitos corretas) "nuances".

Imagino que PCP e BE continuem a não se rever nesta perspetiva europeia. Outros setores soberanistas também não. Nada que espante. Contudo, posso crer que - politiquices conjunturais à parte - esta posição não cause dificuldades programáticas significativas a áreas responsáveis do PSD e do CDS. E, com imensa certeza também, ao presidente da República.

A política europeia, tal como desejavelmente a política externa em geral, deve projetar uma vontade maioritária do país, o que só ajuda a reforças a posição de Portugal na ordem internacional. Infelizmente, este não será nunca um tema comum no seio da "geringonça". É a vida!

Uma Graciosa surpresa


A quem interessar, aqui deixo o link para o meu blogue Ponto Come, onde insiro uma "crítica gastrófila" à Marisqueira José João, texto que ontem publiquei na revista "Evasões", distribuída com o "Diário de Notícias"e o "Jornal de Notícias".

sexta-feira, setembro 29, 2017

"Global Challenges"


Um belo debate, ao final da tarde de hoje, com Marina Costa Lobo e Jaime Nogueira Pinto, sobre o tema "The European Union between integration and nationalism", no âmbito de mais um curso anual "Global Challenges", do ISCTE. Alunos de mais de uma dezena de países, com troca de opiniões muito animada com a audiência, no final. 

A síntese deste debate ficou registada pelo engenhoso desenho de Daniel Perdigão, que a imagem mostra.

Os partidos e o poder autárquico

A democracia criada pelo 25 de abril entregou grande parte do exercício do poder político aos partidos. No pós-Revolução, as « internacionais » inundaram de dinheiro, através de disfarçadas fundações ou por outras vias, os seus protegidos no espetro político português, com isso vindo a fixar o essencial do leque partidário que aí está. Depois, o condomínio partidário encarregou-se de colocar o orçamento do Estado a financiá-lo, atento o monopólio consagrado na Assembleia da República. E assim chegámos aos dias de hoje.

Não sei se houve alguma racionalidade subjacente a esta opção, que aliás não se afasta muito de modelos congéneres lá de fora. É normal que, atenta a diabolização a que a ditadura sujeitara as forças políticas clandestinas, estas, logo que estruturadas em liberdade, quisessem garantir-se como os principais mediadores da vontade cívica dos cidadãos. E também pode ser compreensível que, tendo sido aprendida a lição da fulanização caciquista da I República, as forças políticas tivessem adotados mecanismos de proteção centralista, que evitassem o “rapto” da representação política por personalidades capazes de controlar os “sindicatos de voto”. A experiência, contudo, veio a provar que esse meritório objetivo nem sempre foi conseguido.

Uma coisa é certa: o monopólio parlamentar pelos partidos, no eixo de quem gera e gere os governos, criou entidades fechadas, sujeitas a regras próprias, feitas de mecanismos de cooptação que, como não podia deixar de ser, estruturaram aparelhos de capilaridade política. Nos partidos com ambições de governo, as “jotas”, as assessorias de governantes e a mão-cheia de lugares nas empresas públicas e no aparelho de Estado deram pasto às ambições carreiristas e aos “jobs for the boys”, e cada vez mais, “girls”.

Podia ter sido de forma diferente? A democracia não existe sem partidos e, com todas as suas disfunções, e contrariamente à opinião de alguns, acho até que o modelo funciona basicamente bem, desde que permaneça sujeito a “accountability” e a um forte e transparente escrutínio, nomeadamente mediático.

Domingo, vamos ter a possibilidade de escolher os nossos autarcas, um dos mais notáveis factores de democraticidade e proximidade política que o 25 de abril nos trouxe. Sei que não é simpático para ouvidos partidários ouvirem isto, mas entendo saudável que esta dimensão do Estado envolva, cada vez mais, cidadãos vindos de fora dos partidos – embora não necessariamente os trânsfugas deles. Olhando para a campanha que aí anda, não me agrada esta visível acaparação da vida autárquica pelas máquinas partidárias, numa espécie de “remake” daquilo que é uma eleição legislativa. Há mais vida cívica para além dos partidos.

quinta-feira, setembro 28, 2017

Clubite

Na história da democracia portuguesa, o envolvimento dos líderes partidários nas eleições autárquicas varia sempre na razão direta da expetativa que os protagonistas locais possam ter do efeito potenciador de voto desses mesmos líderes. Isso é válido para quem está no poder ou fora dele. E esse raciocínio é também relevante no que toca à convocação dos "barões" dos partidos, quase sempre chamados a "dar uma mão" na retas finais de campanha. 

Mas, neste caso, a pergunta pode fazer-se: Passos Coelho, com uma imagem de liderança fraca na oposição, será mesmo um "trunfo" para os autarcas do PSD? E Portas? Que sentido tem chamá-lo "a los tercios", agora que está num percurso empresarial que suscita reticências a muitos? 

A explicação parece óbvia. Passos ou Portas carreiam para os respetivos partidos muito poucos votos oriundos de fora desse seu universo partidário. Mas podem contribuir, num tempo de contagem desesperada de "espingardas", para mobilizar os votantes tradicionais dessas mesmas formações, gente que, por desânimo, poderia ter a tentação cómoda de ficar em casa. É o apelo à "clubite", à "camisola", ao "emblema", à fidelidade ao partido. 

Ontem, ao ouvir o desesperado e triste apelo aos "militantes e simpatizantes do PSD" por parte dessa figura patética de anti-carisma que é o seu candidato à Câmara do Porto, percebeu-se isso muito bem. Como se entende o esforço feito por Passos Coelho em apoio à sua candidata em Lisboa (aliás, sua escolha pessoal), a qual, já não conseguindo evitar a "banhada" histórica que irá ter no domingo, tentará (e é plausível que o possa conseguir, atenta a diferença abissal de implantação dos respetivos partidos) não sofrer a humilhação suprema de ser ultrapassada pela lider do CDS. E cada voto de cada militante "de carteirinha" conta para isso.

É que não é só no futebol que a "clubite" funciona.

quarta-feira, setembro 27, 2017

Blogs do ano


Acabo de saber que o "Duas ou Três Coisas" foi selecionado como um dos quatro finalistas na categoria "Política e Economia" no concurso "Blogs do Ano".

Satisfaz-me que este exercício solitário, iniciado vai para nove anos, sem uma única falha diária ao longo desse tempo, mereça esta atenção. E agradeço a quem a teve.

Agora, vamos a votos: quem quiser votar no "Duas ou Três Coisas" pode fazê-lo acedendo aqui.

Este blogue foi criado com o objetivo, simples e claro, de servir de espaço para comentários pessoais sobre o quotidiano, à luz do que vai surgindo na atualidade, chamando à colação algumas memórias - de episódios familiares, da minha profissão ou mesmo da política onde, há muito, passei. Aqui entre nós (que ninguém nos ouve...), quero confessar que, muitas das vezes, deixo por aqui algumas historietas mais como "gaveta" para delas me não esquecer do que com a finalidade de as ver lidas por uma ampla audiência.

Acabo, dizendo aquilo que me parece uma evidência: o tempo dos blogues desta natureza está a passar. Não só há hoje outras plataformas mais ágeis e atrativas, como sinto que a média etária dos leitores é cada vez mais elevada - e isso não é uma retrato com futuro. Por ora, vou mantendo este exercício. Quando um dia me der "na gana" suspendê-lo, fá-lo-ei. Sem angústias, sem nostalgias e, essencialmente, de bem com a vida - que é como gosto de me sentir.

Quem quer regueifas?


Hoje já não se ouve este pregão, mas ele era comum, há umas décadas, nas paragens do comboio, na linha do Douro. E, igualmente, da boca de uma senhora, com forte bigodaça, que sempre assomava à porta das camionetas do Cabanelas, à passagem por Valongo, nas viagens entre Vila Real e o Porto. Imagino que a circunstância dessas vendedoras trazerem as regueifas - um pão furado ao meio - enfiadas no braço provocasse hoje enfartes aos agentes da ASAE. Mas era assim, então, esse Portugal.

Há pouco, comi de novo regueifa, em Valongo. Dizem-me que agora só se fabrica ao domingo. E recordei aquele pão macio, de crosta estaladiça, que há que consumir em escassas horas, caso contrário torna-se "borrachoso" e sem graça. É como muitas coisas na vida...

A imagem? Não tem nada a ver com a regueifa, mas com o belo Outono que aí já está.

O candidato

O candidato que o PSD apresenta em Loures - a quem não repugna a pena de morte, a prisão perpétua e outras medidas de idêntico jaez, formalmente rejeitadas no programa do partido que lhe dá guarida - não ficou constituído arguido, depois da queixa de racismo e xenofobia que sobre ele havia sido feita pelo Bloco de Esquerda.

Ainda bem. Era só o que faltava que pudesse ter essa "medalha" de vitimização. Tal como Paulo Baldaia disse ontem no DN, só espero que ninguém caia na asneira de lhe pregar entretanto um par de estalos. É que uma "Marinha Grande" era mesmo o que lhe dava jeito para potenciar e coroar a campanha politicamente mais obscena que, em nome de um partido decente, com uma história democrática profundamente respeitável, como é o PSD, se assistiu desde o 25 de abril.

Não tenho a certeza de isso ir acontecer, mas, para bem da sociedade portuguesa e dos seus valores de tolerância, que são um magnífico património humanista que sempre nos caraterizou como povo, só posso desejar que esta inqualificável aventura política acabe naquilo que Marx qualificou como o "caixote do lixo da História".

À la Hopper


Estação de serviço de Vagos, há pouco

terça-feira, setembro 26, 2017

Eleições na Alemanha


Convidado pela TVI, conversei ontem com Judite de Sousa sobre o resultado das eleições legislativas na Alemanha.

Pode ser visto ver aqui.

segunda-feira, setembro 25, 2017

Portugal pensa que...

A maioria dos andares do edifício da Avenida Visconde Valmor onde, a partir de janeiro de 1986, data da nossa entrada para as Comunidades Europeias, estava instalada a Secretaria de Estado dos Assuntos Europeus, era num modelo de "open space", dividido por armários que davam uma muito escassa privacidade ao nosso trabalho. 

No meu caso, que nunca consegui estudar em cafés e que tenho dificuldade de me concentrar se ouvir o voo de uma mosca, aquele meu destino de trabalho, ainda por cima com uma acústica muito má, constituia um martírio diário. Por muito tempo, éramos só dois homens - o Alfredo Magalhães Coelho e eu - num "mar" de mulheres. E eu era o único diplomata, aliás o primeiro, da história do MNE, que estava sob a chefia de uma técnica não diplomata, coisa que, à época, era quase um escândalo - circunstância que, como é sabido, sempre encarei "na boa". Os telefones tocavam a toda a hora, as conversas à distância eram o pão nosso de cada dia e eu, para escrever qualquer coisa de jeito, ficava às vezes em casa a trabalhar. 

Um dia, entrou uma terceira figura masculina para o serviço, um jovem diplomata. Tinha acabado de ingressar na carreira, era bem falante, inteligente e articulado, embora um tanto arrogante. Talvez porque enebriado pela "glória" de ter ultrapassado as exigentes provas do concurso de admissão - naquela que é, a grande distância, a mais exigente prova de ingresso em toda a Administração Pública portuguesa - o jovem estava ainda "cheio de si". Costumo chamar a estes espécimens os "adidos plenipotenciários de primeira classe"...

Repito: era um elemento muito promissor, mas não tinha um pingo de humildade. Como dizia o meu colega (e escritor) Paulo Castilho, trata-se de gente que, de manhã, ao acordar, devem achar que o mundo teria de fazer uma ação de graças pelo privilégio deles existirem...

O rapaz falava alto, mandava bitaites de doutrina sobre questões várias no complexo universo das relações económicas externas da então CEE, área que tínhamos a nosso cargo. Para quem tinha muito mais experiência, técnica ou diplomática, o "espetáculo" diário do "puto" era um tanto irritante. Mas, um tanto à solta como então todos nós andávamos, acorrendo aos "incêndios" nesses primeiros meses da nossa aventura europeia, ele prosseguia, com alguma impunidade, o seu "show".

Um dia, tinha o rapaz pouco mais de um mês de casa, não pude deixar de ouvir uma conversa sua, em inglês, com alguém da embaixada holandesa em Lisboa, que havia telefonado a pedir uma informação sobre uma posição portuguesa. Foi então que o ouvi, também para espanto e sorrisos dos colegas em volta, num súbito silêncio que casualmente se criou, dizer: "Sobre esse assunto, é preciso que a Holanda tome bem nota da nossa posição, que é "crystal clear". Portugal pensa que..." e passou a desenvolver uma doutrina que estava muito longe de estar estabilizada entre nós e que era, muito simplesmente, uma dedução que ele próprio se permitia fazer, em torno de um tema em si muito complexo, que não havia sido sujeito à necessária arbitragem interministerial. O que ele fazia era uma irresponsabilidade. Não se dar conta disso, era uma evidente falta de maturidade profissional.

Estávamos todos siderados! Quando desligou o telefone, tinha a sala a olhar para ele. Eu, que tinha por ali um lugar de chefia, embora não o tutelando diretamente, era, com ele, o único diplomata no seio daquele serviço, no oceano de técnicos de várias especialidades que nos rodeavam. Não pude assim deixar de lhe mandar um amigável "Você está maluco?" O rapaz, que era pouco dado a recuos de modéstia, como a vida viria a demonstrar, aliás sem grandes vantagens para o próprio, tentou justificar a sua "performance" e a assertividade usada na conversa. Eu fui muito claro: "Vá já falar com a diretora de serviços e ponha-a a par do que disse aos holandeses". Foi. Veio de volta um tanto murcho. 

"Parece que o diretor-geral irá falar ao embaixador da Holanda, para explicar melhor o assunto", disse-me, horas mais tarde. "Melhor?", gozei eu. "Mas então na Haia não sabem já, detalhadamente, o que Portugal pensa?"...

domingo, setembro 24, 2017

António Costa Lobo (1932-2017)


Acabo de saber que morreu Antonio Costa Lobo. Foi um magnífico diplomata, um embaixador que cruzei várias vezes na minha vida profissional e de quem, no plano pessoal, me tornei amigo. 

Era um homem suave, educado, com uma graça muito subtil e uma fina inteligência. Olhava o mundo de uma forma realista, quase "possibilista", sem deixar de manter uma postura ética muito apurada, onde não fazia cedências. Creio que a fama de hesitante que alguns lhe colavam tinha menos a ver com qualquer dificuldade nas escolhas e, muito mais, com o seu permanente esforço em obter compromissos e tentar que o interlocutor fosse conduzido pela razão e menos pela instrução hierárquica ou pela pressão negocial. Nunca o vi deixar de ser firme naquilo que era essencial.

Em Paris, nas vezes em que por lá passou já na sua reforma, contou-me histórias deliciosas da carreira, onde chegaria a secretário-geral do MNE e a embaixador em Pequim, Moscovo e Londres, o que qualifica um percurso profissional. Depois de reformado, faria ainda uma carreira académica de mérito na Universidade Católica, atenta a sua particular qualificação na área do Direito Internacional Público, onde o multilateralismo o apaixonava.

Nunca tive coragem para lhe perguntar, ponderando a sua proverbial discrição, se era verdadeira a história, que sempre correu nos corredores das Necessidades, de que o "Lobinho" - como carinhosamente era referido entre muitos colegas -, quando encarregado de negócios em Havana, havia roubado uma namorada a Fidel de Castro. É pena, se não for verídica, porque era uma bela "medalha"...

Tive muita pena de não poder aceitar o convite que António Costa Lobo me fez, em 1989, para ser seu "número dois" em Genebra, onde então chefiava a nossa missão junto dos organismos internacionais. O convite terá surgido por virtude da experiência de trabalho em comum que havíamos tido, dois anos antes, aquando da Unctad VII - uma bela aventura, de algumas semanas, com o Frederico Alcântara de Melo, o Rui Felix Alves e o João Niza Pinheiro. 

Posso revelar que Costa Lobo, com Leonardo Matias e Paulouro das Neves, era um dos embaixadores com quem sempre lamentei não ter trabalhado em posto no estrangeiro.

Foi em 1976 que conheci pessoalmente António Costa Lobo, em Nova Iorque, onde ele era encarregado de negócios, quando José Manuel Galvão deixou de ser representante português junto da ONU. Anos mais tarde, em Lisboa, tive o gosto de o acompanhar na criação da Associação para Cooperação com as Nações Unidas em Portugal - sob o impulso do Carlos Eurico da Costa, com Rui Machete, dom José Policarpo e João Palmeiro, entre alguns outros.

Em 1994, aceitei o convite de Costa Lobo para membro do concurso para Conselheiros de Embaixada e do concurso de acesso à carreira diplomática, neste último onde estavam também Marcelo Rebelo de Sousa e Miguel Beleza.

É do processo deste último concurso que quero deixar uma história, verdadeiramente edificante, que nos atesta o caráter impoluto de António Costa Lobo.

Como secretário-geral, o embaixador Costa Lobo presidia ao júri. Como sempre acontece nestas ocasiões, as dúvidas dos examinadores sobre os candidatos a selecionar concentram-se, na parte final, num grupo muito pequeno de nomes. Havíamos hesitado muito, mas, finalmente, acordámos na lista dos excluídos, encabeçada por um determinado nome. 

Costa Lobo em nenhum momento utilizou a sua posição de secretário-geral para impor a sua vontade nas escolhas do juri - e podia tê-lo feito sem o menor problema. Recordo-me muito bem de que, quando, finalmente, as listas dos aprovados e dos excluídos foram finalizadas e assinadas, ele nos comentou, com a voz baixa e serena que era a sua: "É curioso, mas eu, praticamente, não conhecia nenhum dos candidatos a este concurso. Ou melhor, com uma exceção: conhecia o candidato que encabeça a lista dos excluídos". 

É assim que se comportam os homens de bem, como era o embaixador António Costa Lobo, que agora nos deixa. 

sábado, setembro 23, 2017

Afinal, quando é?

Estava um grupo sentado na mesa do Procópio, a meio dos anos 90. Três membros do governo de António Guterres, recém-nomeado, faziam parte da tertúlia, numa dessas barulhentas sextas-feiras. Eu era um deles.

Veio à conversa uma determinada política pública, de natureza social, e, perante uma reivindicação sobre a urgência na sua implementação, um dos nóveis governantes comentou que havia que dar mostras de contenção, que era irresponsável estar a "pedir o céu", que devíamos ser gradualistas nas nossas ambições.

Foi então que um menos contido membro do nosso grupo, um homem que desportivamente arquiteta a alegria da vida com voz grossa e gesto largo, que se havia entretanto juntado à "mêlée" da Mesa Dois, interpelou os governantes que por ali estavam, de copo à ilharga:

- Eh pá! Desculpem lá! Durante os últimos 13 anos, andámos a "levar porrada" do Cavaco, que se marimbava para tudo o que nós defendíamos. Nessa altura, pronto!, nada era possível e a malta tinha de amouxar. Agora que o PS chegou ao poder, porque o país estava farto das políticas "do gajo", surgem-me vocês a dizer que temos de ser "modestos", que não é prudente colocar excessiva pressão sobre um governo que "é nosso". Então respondam-me lá: quando é que podemos, sem qualquer limitação, pedir e obter financiamento para uma política que é necessária, justa e que o país compreende como essencial? É que assim não se percebe para que serve mudar de governo, a não ser para estarem lá vocês e não os outros? 

Às vezes, nestes tempos de Geringonça, lembro-me disto.

Passado presente


Foi ministro de Salazar (sim, de Salazar!) e académico prestigiado. (Creio que há apenas dois ministros desse tempo vivos). Cruzei-me com ele ao início da tarde de ontem, no Chiado. Só lhe posso desejar, com a maior sinceridade, uma longa vida nesta democracia que sempre tão generosamente o acolheu no seu seio.

sexta-feira, setembro 22, 2017

Estatística


Será esta a tradução rural do quadro de redução do nosso défice?

Diretas ainda?

No Brasil, noutros tempos, ficou crismada a expressão "Diretas já!". (Verdade seja que, nessa conjuntura de ditadura, não chegou a haver nem diretas nem "já").

Alguns partidos hesitam, como agora se vê com o debate interno no PSD, entre a eleição do líder em congresso ou através de eleições por voto direto dos militantes. 

O escrutínio em conclave tem a peculiaridade do resultado ser a conjugação da vontade ponderada das estruturas locais, somado ao "psicodrama" do evento, onde os tribunos levam teórica vantagem. No passado, todos fomos testemunhas televisivas desses curiosos embates no PSD, onde um partido "sulista, elitista e liberal" se confrontou com um aparelho mais provinciano e basista. Era um público "contar de espingardas", com grande mérito para o espetáculo e algum suspense.

O voto direto traz outras incógnitas e é bastante mais laborioso, implicando "circuitos da carne assada" por parte dos candidatos a líder. Trata-se, além disso, de um processo menos controlado. Pergunto-me se a ocorrência de um certo deslizar populista interno no seio do PSD, de que o racista de Loures é o exemplo mais preocupante, não poderá estar na origem deste recuo para formas de eleição mais aparelhísticas. Se for essa a razão, congresso já!

O discurso da América


Não partilho a visão de quantos se chocaram com o discurso de Donald Trump nas Nações Unidas. Nem entendo que alguma coisa do que afirmou possa ser lida num registo de escândalo. Aquilo que o presidente americano expressou no plenário da Assembleia Geral acabou por ser uma boa mostra do que é a agenda atual da sua administração, estabilizadas que foram algumas variáveis que o tempo obrigou a redefinir, a principal das quais, naturalmente, tem a ver com a Rússia.

A agenda americana começa a fixar-se na expressão arrogante do seu poder nacional perante o mundo, ao serviço da consagração de uma obsessiva diplomacia de interesses próprios. O "America first" significa a prevalência dos negócios sobre os valores, mesmo que isso coloque em questão algum património moral que os EUA, com altos e baixos, tenham conseguido historicamente criar. A dimensão multilateral dessa agenda será sempre feita "à la carte", seguindo essa poderosa lógica de interesses. Se há algo que "ganhamos" com Trump é a clareza, o fim dos eufemismos legitimadores com que, muitas vezes, vimos a América embrulhar algumas das suas políticas mais brutais, disfarçando o seu poder.

A candura com que Trump diz que cada país deve lutar pelos seus interesses, como os Estados Unidos se propõem fazer, é uma cínica falácia que esconde que, num mundo de poderes em competição aberta, não mediado por estruturas multilaterais que regulem a diferente capacidade de expressão dos interesses, o poder dominante é aquele que dita as regras do jogo. 

Nesta conjuntura, a Coreia do Norte dá a Trump um belo pretexto para revelar a matriz jingoísta do seu discurso. E permite-lhe juntar, no elenco de ameaças, os inimigos de Israel (o Irão e o Hezzbolah), sossegando de caminho uma assustada Arábia Saudita (a que Obama tinha voltado as costas), com a Síria, o Daesh e os talibã afegãos, com naturalidade, a comporem o resto do pacote da diabolização. Com esta agenda, o complexo militar-industrial tem assegurado o essencial do "procurement", em casa e nos balcões de venda externa de armamento. Venezuela e Cuba compõem o ramalhete dos ódios – terreno que, aliás, foi objeto de uma singular incursão ideológica no texto lido por Trump.

Um parêntesis para assinalar que ficou mais do que aberta a porta para um afastamento do EUA face ao laborioso compromisso nuclear com o Irão, nunca aceite por Tel-Aviv e por Riade. Isso pode abrir uma tensão nova com as potências europeias que nisso se empenharam, como Macron já expressou de forma clara. Mas a Europa, cuja unidade Trump despreza e teme, esteve praticamente ausente do discurso, que apenas se preocupou com uma vaga referência ao Reino Unido e à Polónia, bem como às tensões com Moscovo que, por via da Ucrânia, fazem fervilhar o seu Leste.

A Rússia, com a qual Trump sonhou um “deal” estratégico, com consequências no Médio Oriente, talvez mesmo à custa da Ucrânia, foi um tiro pela culatra face às intenções originais de Trump. Uma grande parte da América olha ainda para Moscovo pelo filtro da Guerra Fria e Putin seria sempre o mais improvável novo “amigo americano”. As trapalhadas com a Rússia revelaram-se o principal “faux pas” de Trump.

E a China, onde fica? Washington percebeu, de há muito, que o seu verdadeiro adversário estratégico se chama China. Sabia-se que era a China que preocupava uma possível administração Clinton e uma agenda tão “business-oriented” como aquela que levou Trump ao poder deu a isso um elevado grau de atenção. A lógica de abordagem do problema chinês era, contudo, diferente, entre Clinton e Trump. A primeira iria privilegiar o tecido de alianças económicas na região, através da Parceria Transpacífico. O segundo, indisponível para aceitar as concessões que o jogo multilateral implica, preso aos compromissos imediatistas da agenda protecionista que a sua base empresarial e laboral de apoio lhe impôs, foi por outro caminho. Um caminho mais confrontacional e muito menos confortável para os aliados americanos na região.

Conluio


Esta campanha autárquica veio confirmar, uma vez mais, o estafado conluio das televisões com os partidos políticos, que faz com que a tomada de imagens das açōes de rua seja sempre feita através de planos próximos, que, com o cenário de bandeiras por detrás, criam sensações de multidão que estão muito longe de existirem no locais.

A verdade das reportagens, que seria desejável levar aos espetadores, porque tem um real significado político, implicaria a execução de planos à distância, que transmitissem uma ideia mais real da dimensão das mobilizações. 

Há muitos anos que esta triste prática continua, ludibriando quem vê as reportagens nos noticiários. Isto é, todos nós, telespetadores e eleitores.

As Nações Unidas têm futuro


As Nações Unidas são uma "criação" americana, como já o havia sido a sua antecessora Sociedade das Nações. No termo da Segunda Guerra mundial, de que foi o mais destacado vencedor, a América considerou que um órgão regulador dos poderes à escala global seria a solução mais eficaz para a preservação da paz e da estabilidade. E convenceu disso o mundo. Claro que pretendia que fosse uma "pax americana", porque o "America first", lá no fundo, sempre sobredeterminou todos os gestos de Washington, o que, convenhamos, não deixa de ser natural.

A Guerra Fria transformou a ONU numa espécie de arena diplomática, com lugares marcados. O espetáculo principal tinha dois lutadores e acabou com a exaustão de um. As lutas secundárias foram, quase sempre, reflexo do prélio central, da Coreia ao Vietnam, do Afeganistão a Angola. Sob o ponto de vista do seu papel resolutivo de crises, a ONU passou por alguma obscuridade até à queda do muro de Berlim.

Mas, entretanto, a ONU não foi apenas isso. Na constelação das suas estruturas e agências, as Nações Unidas revelaram-se um formidável instrumento da História, na construção do sistema multilateral que hoje estrutura toda a ordem internacional. Foi nesse universo onusino que o "terceiro mundo" encontrou expressão institucionalizada depois da Conferência de Bandung, foi através dele que conquistas de modernidade, como os temas ambientais ou as grandes questões de desenvolvimento, encontraram o seu espaço, onde a defesa dos Direitos Humanos garantiu um terreno de prestígio, por maiores que sejam as limitações que ainda condicionam a respetiva implementação. 

Com todas as suas deficiências, o património – não hesito em escrever “moral” – das Nações Unidas não deixa de ser enorme e essencial para um ciclo importante do percurso da humanidade. O mundo deve imenso à ONU, isto é, deve congratular-se consigo mesmo por ter conseguido estruturar e manter esta instituição “do bem”.

Ao terem impulsionado a criação da ONU, os Estados Unidos geraram  um “monstro” que já não conseguem dominar, quanto mais não seja pelo facto da “ideologia” multilateral já não ser reversível na consciência universal. É-lhes possível, nos intervalos da sua história nacional em que a decência é raptada pela prevalência de uma agenda escandalosamente egoísta, bloquear a capacidade resolutiva da organização e enveredar pelo unilateralismo. Mas o resto do mundo continua lá, não dá a mínima mostra de deixar de acreditar em que aquele é o caminho – desde o acordo climático de Paris à proteção dos refugiados, passando por milhares de outros dossiês da modernidade civilizacional. 

As Nações Unidas não apenas têm futuro como são, elas mesmas, o futuro da ordem internacional. Um futuro depois de Trump, claro.

quinta-feira, setembro 21, 2017

A Madonna da nossa imprensa


Continua o deslumbramento, foleiro e medíocre, na nossa comunicação social, em torno da visita "clandestina" de Madonna à "very typical" Disneylândia humana por onde agora decidiu passear as suas crianças.

A Catalunha e nós


A questão catalã não tem surgido como um tema relevante para os portugueses. Por opção em favor da autodeterminação, mas também por algum anti-espanholismo, certos setores nacionais manifestam simpatia pelo independentismo catalão. Há ainda uma gratidão pelo facto de, em 1640, a concentração das atenções madrilenas no conflito com Barcelona ter permitido à aristocracia portuguesa, descontente com o modo como Castela tinha começado a tratá-la, passar a re-titular a plena soberania de Lisboa sobre o nosso território europeu e colónias. E, vamos ser claros!, há também por aí muito quem, íntima ou abertamente, pense que um cenário de “balcanização” da Espanha poderia ser útil a Portugal. Uma agenda onde, curiosamente, se junta gente da extrema-direita à extrema-esquerda, passando por alguns moderados úteis à ideia.

Uma independência serena da Catalunha não constituiria uma tragédia para Portugal. Teria, no entanto, duas consequências óbvias: Lisboa passaria a ser, em termos de importância, a terceira capital da península ibérica e haveria um inevitável efeito-dominó sobre o complexo sistema autonómico do país aqui ao lado. Para uns, a primeira circunstância é irrelevante, porque outros valores mais altos se alevantam na sua análise; para outros, para os que gostam de “muitas Espanhas” (como alguns gostavam de duas Alemanhas, lembram-se?), esse seria mesmo o cenário ideal. E seria mesmo?

Caso mais bicudo se tornaria uma independência catalã obtida “a pulso”, depois de um conflito mais ou menos grave com Madrid. A estabilidade dos nossos vizinhos (neste caso, do nosso único vizinho) é uma questão que nos não pode ser indiferente. Ver uma Espanha convulsa e tensa não seria uma boa notícia, no nosso principal parceiro comercial, de cujo crescimento em estabilidade somos “free riders”. 

Dito isto, e quanto a nós, Portugal, por ora, o que fazer? Oficialmente, rigorosamente nada. Apenas aguardar. Compete-nos aceitar a resultante final deste complexo debate, qualquer que ela seja. Não se peça a Lisboa para tomar uma posição: nem a favor do anti-independentismo de Madrid, nem simpatizando com a secessão catalã. A seu tempo, e perante cada passo que por lá vier a ser dado, Portugal decidirá o que tiver (se tiver) que fazer.

E na Europa? É simples. Se e quando a Catalunha vier a ser independente e pedir adesão à UE, Portugal deverá analisar o assunto à luz dos seus méritos próprio. Como nos outros casos.

quarta-feira, setembro 20, 2017

"Excuse me?!"

Fui hoje almoçar ao Penha Longa Hotel, entre Cascais e Sintra. Estacionei o carro no parque e dirigi-me ao edifício principal. À porta, devidamente fardado, estava um funcionário, um rapaz de cerca de vinte anos. Perguntei-lhe: "Pode dizer-me onde é o restaurante, por favor!". A resposta, numa pronúncia "arranhada" deixou-me siderado: "Não falo português"! 

Mirei o tipo com um olhar translúcido, de furibundo que fiquei, virei-lhe as costas, já a caminho do balcão, onde uma senhora gentil me deu a indicação pretendida. Nem lhe referi o facto, porque estava com pressa.

Fiquei portanto saber que, no meu país, há pelo menos um hotel que contrata pessoal estrangeiro que, não apenas não fala português, como, pelos vistos, tem carta de alforria para o dizer alto e bom som.

Uma coisa é haver algum pessoal estrangeiro contratado que ainda não fala bem o português, mas que faz um esforço para falar. Outra coisa é ter alguém numa portaria de um hotel a dizê-lo ostensivamente, como se isso não estivesse sequer nos seus objetivos e obrigações profissionais. Acho isto verdadeiramente escandaloso!

Em tempo: falam-me da hipótese de se tratar de um estagiário. Nesse caso, não deveria estar na portaria

terça-feira, setembro 19, 2017

Armando Trigo de Abreu


O Armando Trigo de Abreu, que foi ontem a enterrar, tinha uns bons anos mais do que eu. Por tantos amigos que tínhamos em comum, pelos ideais que partilhávamos e pela excelente relação pessoal que de há muito mantínhamos, acho que sempre nos vivos na mesma faixa geracional - a que esteve presente nas lutas académicas contra a ditadura, a que exultou com o 25 de abril e participou politicamente no quadro democrático. 

Ligo muito o Armando ao José Mariano Gago, mas também a Manuel Heitor - esse núcleo que deu à ciência em Portugal um impulso sem paralelo, com o efeito notável no reforço do país nesse domínio.

É mais um que se vai, desta nossa "colheita" que fez abril, que ajudou a reforçar a democracia, a sonhar uma sociedade diferente. A sua serenidade discreta, o seu permanente sorriso e a sua simpatia deixarão de andar por aí. 

"Abril e outras transições"


José Cutileiro acaba de publicar um pequeno livro de recordações da sua vida, onde, com a graça e a imensa inteligência que são as dele, reflete um pouco sobre o mundo e o país. 

Disse um "pequeno livro" porque não passa das 128 páginas, dimensão editorial que, no passado, nos habituámos a ser a regra dos utilíssimos "Que sais-je?", que ainda hoje enchem as estantes de muitos de nós. 

E também escrevi "recordações", e não memórias, no seu sentido clássico, porque Cutileiro deliberadamente não pretendeu atribuir essa dimensão a este volume - e quanto ganharíamos se isso tivesse acontecido! 

José Cutileiro é um homem de grande cultura, sagaz observador, cruel caraterizador dos homens e das situações, pouco propenso a ter paciência para gente assim-assim. Há nele, e ele assume-o, um elitismo estrangeirado que transparece a espaços, e esse pano de fundo ajuda-nos a perceber melhor o porquê de algumas das suas observações. Ao longo da vida interessante que teve, Cutileiro viu muito, conheceu de perto gente curiosa, alguma com impacto no mundo e no país. Teve então ocasião de comparar imensas figuras, de julgar as suas fraquezas e esporádicas grandezas. E isso anda um pouco por todo o livro.

Como todos os conservadores céticos, José Cutileiro olha o país como se este estivesse condenado a deslizar num inexorável declive (que ele interpreta como um declínio), condenado a um futuro incerto e em cujo desfecho não participa e, com toda a segurança, não muito glorioso, à luz dos seus padrões pessoais. Portugal surge, nestas páginas, povoado por gente cuja ambição é apenas ir sobrevivendo "tant bien que mal", numa existência sujeita à lei do menor esforço, baixada que foi a exigência e a "accountability", graças a lideranças em geral medíocres, que não se elevam muito acima desse padrão.

Dito isto, acho imperdível este livro - que projeta muitas ideias com que não concordo, que parte de muitos pressupostos que não partilho e onde também encontro muitas coisas em que me revejo. 

Mas a inteligência e o brilho não têm "partido", nem têm mesmo que se confrontar necessariamente com um qualquer teste de verdade, porque cada um tem a sua. E a forma de José Cutileiro expressar a sua verdade é feita de argúcia, sarcasmo e ironia, que ele aplica aos episódios que testemunhou, que é visível na seleção dos ditos que anotou, que dão uma cor única aos seus textos.

Este "Abril e outras transições" é uma obra cujo principal defeito é, talvez, ficar a saber a pouco. O que já diz muito, creio, deste pequeno livro que imagino tenha dado algum gozo ao autor escrever. Embora na consciência, que também será a sua, de que fica a dever a si próprio (e a nós, por tabela) um outro trabalho com mais fôlego. Mas posso imaginar que talvez ele não tivesse paciência para o escrever.

segunda-feira, setembro 18, 2017

A falha


Estávamos em 2012. O governo Passos Coelho tinha nomeado uma comissão encarregada de rever o Conceito Estratégico de Defesa Nacional, um documento cuja versão anterior tinha mais de uma década e que era urgente adaptar às novas ameaças e à significativa mudança da conjuntura internacional.

O grupo, algo heterogéneo, era chefiado por esse grande e entusiasmado homem de bem que se chamou Luis Fontoura.

Por ali estiveram, creio, 20 pessoas a quem se pediram reflexões, textos, ideias. Tive o gosto de integrar esse grupo e acho, sem modéstia, que fizemos um excelente trabalho - que aí está para ser lido, na sua versão original ou no modelo, mais sintético, que o governo entendeu adotar. 

Vim de Paris a Lisboa várias vezes para reuniões e tive umas férias "estragadas" com noites de redação de capítulos, a pedido do Luís Fontoura. A Maria Regina de Mongiardim, que trabalhou de perto com o Luis (e a quem o Conceito muito deve, convém dizer), lembra-se, com certeza, de alguns desses episódios.

O Luis Fontoura entendeu, para apoio aos nossos trabalhos, facultar-nos acesso a vários "conceitos estratégicos" de outros países. Foi utilíssimo, porque nos permitiu confrontar metodologias e perspetivas, não obstante se tratar de realidades diversas. 

(Quando elaboramos um Conceito Estratégico, sabemos que ele vai ser tornado público. Redigimo-lo sabendo isso, o que é uma limitação - democrática, eu sei! - terrível. Devo dizer, com toda a franqueza, que teria muito gosto em ajudar a produzir, para o poder político português, qualquer que ele seja, um Conceito Estratégico que eu tivesse a garantia de que nunca seria publicado. Posso garantir que seria muito mais útil ao interesse do país...)

Acho que não cometerei uma indesculpável indiscrição se disser que, numa dessas reuniões, abordámos o Conceito Estratégico espanhol. Lembro-me que intervim, elogiando o texto, tendo nele sublinhado dois ou três aspetos em que me parecia útil refletirmos.

Um dos participantes no grupo, figura avisada e atenta, falou a seguir a mim. Concordou no essencial com o que eu disse, mas acrescentou: "É, de facto, um bom texto. Mas tem uma falha. Os espanhóis iludem, creio que deliberadamente, duas hipóteses de evolução da sua situação interna: a possibilidade da monarquia vir progressivamente a fragilizar-se, sem capacidade de recuperação do seu papel institucional, e a implosão da unidade espanhola".

Bem visto! Tenho-me lembrado disto nestes dias da Catalunha...

domingo, setembro 17, 2017

Ainda a Ucrânia


Tenho imensa pena de não saber falar russo. 

(Nos anos 60, ainda andei numas aulas de Jorge Listopad, mas acabei por desistir e oferecer o Linguaphone (lembram-se?) a um colega que ia para Moscovo. Se soubesse, teria aproveitado bem melhor os tempos em que andei pela Ásia Central, depois, várias vezes, pelos Cáucasos. Ter conversas interessantes em inglês de aeroporto não é a melhor solução. Mas chegaria o meu russo, alguma vez, a muito mais do que esse nível?)

Lembrei-me disso ontem, ao tentar perceber de alguns ucranianos, numa noite de alguns copos e muitas conversas sobre a Rússia ("what else?", como diria o Clooney), um pouco mais do sentimento deste país no fio da navalha. 

Este país é hoje dirigido e dominado por quem representa os que detestam abertamente a Rússia, o que, a meu ver, torna totalmente inviável um compromisso com os setores russófilos, maioritários no Leste do país, que a Rússia armou e apoiou militarmente para a secessão "de facto" do Donbass (aproveitando, na passada, para "meter ao bolso" a Crimeia). 

De que lado está a razão, já que a verdade parece clara? O ocidente apoiou um golpe de Estado contra um presidente que era um "homem dos russos", é certo, mas que havia sido eleito com toda a legitimidade. Fez isso para "desequilibrar" a Ucrânia para o "lado de cá", mas só conseguiu mudar o poder em Kiev e levar Putin a um golpe de força - porque era evidente que a Rússia não ia permitir um sobressalto geopolítico. 

A Ucrânia acabou por ficar numa "terra de ninguém", na soleira de uma Nato onde não existe a coragem (e o consenso) para a mandar entrar, e ainda mais longe de uma União Europeia, em que os alargamentos deixaram de ser um tema "sexy" para o projeto.

Não foi cómodo ter de ser realista para os meus (novos) amigos ucranianos, explicando-lhes que a sua entrada para a Nato não traria mais segurança para a aliança (pelo contrário, seria a "importação" pela organização de um complexo conflito) e que as portas da UE parecem entreabertas apenas pelo "politicamente correto" das coisas, mas que tudo será cada vez mais difícil nesse domínio (e a resposta recente à Turquia aí está para o comprovar)

"Mas não podemos ser os únicos donos do nosso próprio futuro, decidindo de que lado queremos estar? Somos eternos reféns da nossa vizinhança com um país mais forte?", perguntava-me um universitário, espírito 1000% ocidental, num perfil antropológico inconfundivelmente de Leste, anti-russo até às raízes dos cabelos. 

Não tive coragem de lhe dizer que, infelizmente, talvez não tivesse esse direito absoluto, tragédia de quem vive nas "grey zones" da geopolítica (a Finlândia do pós-guerra é um bom exemplo). E, claro, também não lhe perguntei o que poderíamos nós responder com sinceridade a um cubano que nos colocasse idêntica questão...

A Ucrânia no Reino Unido...

Teve imensa graça ouvir ontem, aqui na Ucrânia, o "minister for Europe" (?) da senhora Theresa May, um dos cangalheiros do Brexit, apelar à manutenção do interesse ucraniano para ingressar na União Europeia. 

À medida que a sala caçoava do ridículo dessa proposta, por ser titulada por quem estava voluntariamente de saída, o homem, sentindo isso, atrapalhava-se de tal forma que acabou por lhe sair esta pérola: estava seguro de que a Ucrânia, cedo ou tarde, seria benvinda "in the United Kingdom"... 

A sala foi abaixo, claro!

Uma estranha obsessão


Há uma semana, nestas mesmas colunas, deparei com um artigo que configurava um raro e insólito exercício de ódio, que me era pessoalmente dirigido. Escrevo "insólito" porque, não conhecendo o autor do texto, me pareceu estranho que de tão vitriólica peça pudesse exsudar uma acrimónia similar àquela que costuma resultar das tensões pessoais mal resolvidas. 

O texto ecoava, basicamente, um exercício feito dias antes na CMTV. Ficava evidente que essa pessoa, valendo-se das tribunas pagas que lhe estavam abertas nesta casa, destilava um abundante rancor e acrimónia a meu respeito. O porquê dessa atitude permanece um mistério.

Nunca na vida tive o menor problema em confrontar-me com opiniões discordantes. No caso vertente, entendo perfeitamente legítimo que alguém considere menos adequada a minha indigitação para o lugar "pro bono" que eu havia aceitado, como missão de serviço público, no Conselho Geral Independente da RTP. E nunca me mostrei fechado a discutir isso. 

Não se tratou, contudo, de uma crítica serena, substantiva, na urbanidade educada em que estas coisas devem ser debatidas. Foi, como quem leu pôde constatar, uma furiosa diatribe "ad hominem", com graves insinuações de caráter, suspeições conspirativas e até uma malévola incursão por um incontroverso episódio do passado, com mais de quatro décadas.

Adiante. A minha aceitação do convite para uma colaboração benévola com a RTP não teve como objetivo ganhar mais uma linha curricular, que creio óbvio não necessitar, mas corresponder a um amável convite para prestar uma contribuição voluntária de serviço público, área que muito prezo e à qual dediquei mais de quatro décadas da minha vida profissional – sem o menor sacrifício e com imenso gosto. 

Entendi que a experiência diplomática que possuo poderia ser considerada útil na contínua reflexão que deve ser feita sobre o papel da RTP e da RDP na área internacional, em especial junto dos países de língua portuguesa e das nossas comunidades - tendo nomeadamente exercido funções de embaixador em dois países onde elas são das mais relevantes.

Uma palavra quanto à recente opinião do regulador sobre este caso. A ERC expressou uma clara posição atestando o que entende ser a adequação do meu perfil à função para que fui indicado. Entre os três membros da ERC um deles entende, contudo, que pode haver uma incompatibilidade entre a minha colaboração com alguma comunicação social e a pertença ao CGI da RTP. Não é essa a minha opinião e, para mim, trata-se de uma "linha vermelha": não prescindo de ter uma voz pública onde e quando me apetecer.

Satisfez-me muito constatar que houve um ponto não controvertido na reflexão que a ERC fez sobre as minhas eventuais incompatibilidades para o cargo. O regulador entendeu que a minha colaboração profissional com as três empresas portuguesas com maior expressão internacional, no âmbito do aconselhamento estratégico para o investimento, não suscitava a menor dificuldade à assunção daquelas funções. Isso sempre me pareceu óbvio, mas foi importante que ficasse claro.

Pergunto-me, aliás, se não é apenas a espuma dos dias de tensão política que se vivem que transforma isto num desproporcionado “casus belli”. Se, afinal, como disse Shakespeare, não é “much ado about nothing”.

(Artigo hoje publicado no "Correio da Manhã")

Bebinca

Há já um tempo que não comia bebinca. Imagino que tenha sido por me ouvirem dizer que tinha saudades desse doce goês que tive o privilégio d...