quinta-feira, setembro 13, 2012

"E agora cheira a setembro"

O João Paulo Guerra lembrou, há pouco, no seu blogue, o clássico "agora cheira a setembro", de José Carlos Ary dos Santos. É verdade, sinto-o bem aqui, nesta noite em Vichy, na França profunda, no meu derradeiro dia de férias.

A chuva ronda, já se hesita em ficar nas esplanadas, agradece-se, pelo entrar da noite, "une petite laine". A bem dizer, confessemos ou não, já chegava de verão, de calor, de sol, de suor, de ar condicionado. Setembro rima bem com o estimulante (e saudável?) regresso ao trabalho, com "paletes" de coisas atrasadas para fazer, com as chamadas telefónicas em dívida, com a necessidade de resposta aos e-mails que foram "caindo" pelas páginas abaixo, com os convites para almoço aos amigos com quem estamos em falta, com muitos jantares "sociais" para retribuir. E com alguns textos para rever, com algumas palestras para preparar. E com algumas atitudes a tomar...

Este é o tempo do conhecido "agora é que é", das clássicas manias de uma qualquer "rentrée", da feitura de intermináveis listas (mais ou menos "moleskinizadas") que padecem sempre de erros de prioridade que as acabam por tornar inúteis, da promessa de não falhar as exposições que por aí vêm (quando, ao final daquela tarde, só vamos pedir sopas e descanso), da vontade de não perder alguns concertos e peças (que nos esqueceremos de reservar), de acabar dezenas de livros que jazem (e jazerão, para a eternidade) na estante, sem deixar de estar atento aos muitos que vão saindo, sempre cada vez mais caros (ou seremos nós que, afinal, ganhamos pouco e cada vez menos?).

No meu caso, este é um mês de setembro muito especial, talvez porque a vida que agora vivo se assemelha também, ela própria, um pouco a um setembro. É um tempo para fechar dossiês, para tentar arrumar assuntos em escassos meses, para fazer os "check-up" antes que nos "gaspem" a ADSE de cena, de planear uma nova vida, a aguentar com as reformas dos tempos da "troika" a que temos dever (já não temos direito..), de fazer (muito bem) as contas para (tentar) sustentar o futuro. E também para preparar, com real vontade e (talvez pateta) otimismo, um 2013 já sem horários e compromissos rígidos, com concertos na Gulbenkian, com idas ao CCB e aos teatros, com passeios e comezainas pelo país, com o jardim para tratar, talvez mesmo com alguma escrita para encadernar. E, principalmente, com amigos para rever, conversar e a quem dizer alto o que penso.  

Relembro sempre o mês de setembro, em toda a minha vida, como um mês peculiar. Eram finais de tarde chuvosos, na adolescência, em Vila Real, quando apressávamos a saída dos bilhares do Excelsior, depois das "explicações". Poucos anos mais tarde, eram as luzes de Cedofeita a acenderem-se, ao sair de um "martini" no Bissau, comigo ainda convencido de que tinha jeito para vir a ser engenheiro eletrotécnico. Eram também as sete e meia da tarde por um Montecarlo quase deserto, no anoitecer lisboeta, à procura do 21 para os Olivais, com o "Lisboa" debaixo do braço. E lembro muito bem os setembros gelados e escuros, mas muito estimulantes, de Oslo ou de Viena, os setembros que o não eram, em Luanda ou em Brasília, ou a insuperável beleza londrina dos fins de tarde, já bem iluminados, em Knightsbridge, as cores e os sons inconfundíveis da 2nd avenue, no regresso a casa, em Nova Iorque.

Os setembros, na minha memória, assemelham-se muito à recorrente ilusão dos janeiros, quando, passadas as festas, sempre arregaçamos psicologicamente as mangas, apenas por alguns dias, na miragem fátua de que basta querermos para podermos recomeçar tudo de novo, porque "hoje é o primeiro dia do resto da tua vida", como cantava o Godinho. Podia ser assim, para toda a gente, se acaso nós não fôssemos exatamente os mesmos que éramos na véspera, quaisquer que sejam as datas colocadas à nossa frente. As quais, aliás, se vão reduzindo, dia após dia. O que, não sendo uma tragédia, é, valha a verdade, uma boa chatice. 

terça-feira, setembro 11, 2012

"Libération"

A liberdade tem limites. A liberdade de um embaixador em posto ainda mais, como é natural.

Serve isto para dizer que bem gostava de poder comentar aqui, em pormenor, os deliciosos títulos de primeira página do jornal "Libération", nas edições de anteontem e de ontem, onde é feita a "releitura" de duas frases que, nos últimos anos, ficaram famosas na "petite histoire" francesa. Mas não posso fazê-lo, pelo menos de uma forma clara.

E tenho muita pena, porque o engenho e a arte com que o jornal se refere, através desses títulos, à decisão do empresário Bernard Arnaud de pedir a nacionalidade belga são verdadeiramente de antologia. A fantástica criatividade do "Libé", em matéria de capas e de títulos, é já legendária. As capas de ontem e de anteontem vão ficar nesse património. Como o ficou o velho "lettering" do título do primeiro número do jornal, que deixo aqui, "for the record".

segunda-feira, setembro 10, 2012

... encore un effort!

Não era bem uma livraria, era uma daquelas lojas de terra pequena, onde se vende tudo, desde lotaria a jornais, de tabaco a coisas de papelaria. E até livros. Foi ontem à tarde, em Tarascon (exatamente!, a terra do Tartarin que Daudet colocou a caçar leões no Norte de África). O título do livro de Sade (não, não é a cantora, é o marquês) chamou a minha atenção. Sinal dos tempos?

Num impulso súbito, embora soubesse que, em qualquer estante, em qualquer sítio, tenho um exemplar, tive a tentação de comprar o "Français, encore un effort...". Mas logo cheguei a uma conclusão: se achamos quase natural que alguns pareçam ter elegido Sade como seu clássico, então, definitivamente, só merecemos Sacher-Masoch.

domingo, setembro 09, 2012

Férias

Em 1971, quando entrei para a função pública, não existia subsídio de férias. Ele seria instituído no ano seguinte, em 1972.

O ano de 2012, o último em que usufruo de férias enquanto ao serviço ativo do Estado, deixei de ter direito a subsídio de férias.

Precisamente quatro décadas depois, o ciclo fecha-se. Não tem graça nenhuma, mas não deixa de ser curioso.

(Na imagem: as primeiras férias dos trabalhadores franceses, em 1936, decididas pelo "Front Populaire")

Próximo Oriente

Havia um velho aforismo que se costumava utilizar a propósito do Médio Oriente (mas cada vez gosto mais da precisão com que os franceses distinguem o conceito de Próximo Oriente do de Médio Oriente) segundo a qual, por aquela área geopolítica, "não há guerra sem o Egito nem paz sem a Síria". Lembrei-me de como esse tipo de afirmação está já datado quando ouvi o novo presidente da República egípcia denunciar abertamente o regime de Damasco, favorecendo uma alternativa democrática para o país.

Quem haveria de dizer que iríamos, um dia, assistir a uma coisa assim! Nunca, no passado, uma liderança egípcia se havia contraposto de forma tão aberta à família Assad, apesar das tensões entre o Cairo e Damasco não serem raras, antes pelo contrário. A verdade, porém, é que este é um novo Egito (seja lá o que isso venha a significar), chefiado por uma figura com um perfil legitimado democraticamente, com fragilidades económicas que, não obstante as suas renovadas tentações de protagonismo regional, o obrigam a continuar a respeitar uma dependência da Arábia Saudita sunita, que hoje tem o regime sírio, mais do que nunca, como inimigo jurado. E o herdeiro de Assad conseguiu perder, por efeito externo ou culpa própria, todos os "trunfos" com que o seu pai, de forma magistral, desenhara, por décadas, a estratégia nacional da Síria. Todos, não! Ainda lhe restam o apoio do Irão e a embaraçada proteção russa, para além da capacidade de destestabilização no Líbano.

As relações entre os países árabes sempre foram um labirinto de ambiguidades. No passado, eram "federadas" equivocamente por um apoio à causa palestina, que levava a uma oposição de princípio a Israel . Escrevo "de princípio" porque não houve nenhum país árabe com proximidade geográfica com Tel-Aviv que, num momento ou noutro, não tivesse enveredado por uma realpolitik de interesses, sempre disfarçada por uma forte retórica.

As diferentes "primaveras árabes" baralharam, contudo, todo este cenário e ninguém parece estar mais "baralhado" que Israel, que já se havia habituado a lidar com as ditaduras circundantes, as quais, na sua equação de segurança, funcionavam como constantes que conseguia ir gerindo. A suprema ironia é que Tel-Aviv, que sempre fez passar a ideia (real) de ser a única democracia da região, está agora em palpos de aranha com o facto das ideias democráticas, cuja ausência denunciava na sua periferia, estarem a atingir esses Estados da sua vizinhança. E, quem sabe?, levando ao poder governos, agora legitimados pelo voto, que, a prazo, lhe podem vir a tornar-se bem mais detrimentais que as "velhas" ditaduras. Qual é a "solução" para Israel? Aparentemente, tudo indica que pode ser tentado a fazer uma fuga em frente, desencadeando um ataque às supostas instalações nucleares do Irão. Desta forma, ao dispor-se a fazer um "dirty work" que espera que o Ocidente (no fundo) lhe agradeça, o Estado judaico compra tempo e complacência. Mas, uma vez mais, não ganha a paz. 

sexta-feira, setembro 07, 2012

A chave-mestra

A delegação portuguesa àquela reunião internacional, num país africano, ficara reduzida a dois elementos - eu e uma colega. Não obstante os trabalhos prosseguirem por mais dois dias, os restantes quatro elementos tinham partido, de regresso a Lisboa, porque havia eleições no dia seguinte. Pensando bem, tenho a sensação de que, se tivessem ficado, o equilíbrio eleitoral ter-se-ia mantido. E eu desisti de ir, por sabia que a minha opção nesse sufrágio ia sair derrotada, com ou sem o meu voto. Uma demissão cívica pouco defensável, confesso.

Fomos ambos jantar onde era possível, naquela cidade algo inóspita, num país que o não era menos. Depois de darmos uma olhada à discoteca do hotel, cheia de delegados à conferência, regressámos aos quartos, um ao lado do outro. Despedimo-nos. Quando entrei no meu quarto, verifiquei que havia um nele um envelope, da organização da conferência, que era destinado à minha colega. Bati à porta do seu quarto e entreguei-lho. Nesse instante, a porta do meu quarto fechou-se. Comigo fora, com a chave lá dentro.

Do quarto da minha colega, liguei à portaria do hotel, para alguém trazer a chave-mestra, que abre todos os quartos. Notei uma incomodidade do outro lado da linha. O "responsável", única pessoa com essa chave, saíra, não se sabia por quanto tempo. "E levou a chave-mestra consigo?", indaguei. Assim era.

A situação não era muito confortável. Eu estava "despejado" do meu quarto e não tinha onde dormir, se acaso a chave-mestra não aparecesse. Mas não nos passava pela cabeça que não aparecesse, claro. Fomos conversando, eu ia ligando à portaria, por duas ou três vezes passei por lá. Mas nada. O homem nunca mais regressava. Já passava bastante para além da meia-noite. Eu já não tinha "cara" para olhar para a minha colega, que via a televisão local, a fazer horas. E eu por ali ia estando, sem graça...

Até que, lá para as duas da manhã, bateram à porta. Era a chave-mestra! E lá fomos dormir, cada um no seu quarto. A minha colega, nos dias de hoje, confessa que chegou a pensar "fazer-me" a cama na banheira ou no chão do largo armário...

Há vários anos que, divertidos, ambos costumamos contar este episódio - que passou a chamar-se a "história da chave-mestra" - às respetivas famílias e amigos, com alguns a mostrarem-se menos crédulos com a precisão deste relato dos factos, às vezes com comentários mais provocatórios, sugerindo que eu, no fundo, estava, nem mais nem menos, que a "fazer a folha" a essa minha colega...

Ora bem: as coisas passaram-se como se passaram. Porquê? Porque se não se tivessem passado assim, seguramente que nunca tínhamos contado a história. Não é? 

quarta-feira, setembro 05, 2012

LusoJornal

O "LusoJornal" fez oito anos de vida. Acompanhei quase metade desse período e posso testemunhar que, com todas as limitações de um órgão de informação que subsiste com recursos escassos, o "LusoJornal" se transformou num instrumento de grande valia para a Comunidade portuguesa em França. Sem sectarismos nem posições radicais, o "LusoJornal" fornece uma informação equilibrada e atenta às grandes questões que atravessam a vida dos portugueses que por aqui vivem.

Quero daqui deixar uma palavra de homenagem e de estímulo ao Carlos Pereira e à pequena equipa em quem a feitura do "LusoJornal" se apoia. E porque a intervenção da Câmara de Comércio e Indústria Franco-Portuguesa se revelou essencial para assegurar a subsistência do jornal, desejo também saudar a CCIFP, na pessoa do seu presidente, Carlos Vinhas Pereira, por mais este serviço prestado à Comunidade.  

terça-feira, setembro 04, 2012

Moral

Ontem, foi o primeiro dia do ano letivo francês. O novo ministro da Educação nacional (sim, em França é "nacional") indicou pretender introduzir, futuramente, no ensino que é ministrado nas escolas, algumas normas de "moral republicana".

(Antes que entrem na praça os próceres monárquicos, convém que, pela enésima vez, fique claro que, em França, o termo "republicano" nada tem de oponível a "monárquico" ou "royaliste", sendo apenas um simples significado para ética de cidadania. Mas não tenho demasiadas esperanças de que esta explicação trave, em absoluto, a saída à liça da nossa rapaziada das coroas).

A esquerda não é muito useira neste tipo de iniciativas, temerosa, como sempre está, de que elas possam ser confundidas com algum tipo de moralismo autoritário e até fascizante. Por essa razão, logo se viram setores dessa mesma esquerda, mesmo alguns que apoiam o governo, a achar a ideia puramente reacionária. E, mesmo da direita, que, em princípio, deveria ser mais aberta a este tipo de iniciativas, vieram muitas objeções, quando a lógica apontaria para que essa fosse parte da sua agenda natural. Porquê?  Porque ambos os campos críticos consideram ser difícil consensualizar princípios que possam ser assumidos como incontestáveis - como se as decisões governamentais tivessem de passar por uma espécie de referendo unanimista, antes de serem postas em prática. E temem que a classe docente não esteja disponível para implementar uma tal iniciativa E, porque não é possível todos estarem de acordo, então, para alguns, o melhor é persistir no status quo, belo nome latino para nada fazer. É sempre assim...

É muito triste que, nos dias de hoje, a relativização dos princípios não permita que a sociedade acorde num conjunto de regras básicas de comportamento, desde a civilidade à ética social mais elementar, que seja possível manter alheias às lutas político-ideológicas. Mas talvez as coisas tenham de ser mesmo desta forma. Talvez, de facto, seja pouco consensual ensinar aos jovens que a competição não significa a prevalência lei do mais forte, que a igualdade de oportunidades é o contrário da legitimação da "cunha", que não "vale tudo" na vida do dia-a-dia, que é natural que não façamos aos outros aquilo que não gostamos que nos façam a nós. Mas será que os "paizinhos" recomendam isto? E se eles o não fazem e casa, poderão ser os professores  fazê-lo? 

Nesta "guerra", só me resta desejar muito boa sorte ao novo ministro francês. O qual dá mostras de querer seguir os princípios do  saudável igualitarismo laico de Jules Ferry*, mas que, nas últimas horas, já foi acusado de repetir o marechal Pétain - não o herói da 1ª grande guerra, mas o colaboracionista-mor durante a 2ª grande guerra. Não deve ser nada fácil ser ministro da Educação.

* É claro que era Jules Ferry e não Luc Ferry. Lapsos de quem se distrai muito com a atualidade. A propósito: Luc Ferry mostrou-se de acordo com estas ideias do ministro da Educação, de quem foi antecessor.  

segunda-feira, setembro 03, 2012

O intruso

As reuniões semanais de secretários de Estado são exercícios de análise dos projetos legislativos, antes deles serem submetidos ao Conselho de ministros. Podem ser reuniões muito aborrecidas, quando as temáticas são extremamente técnicas e desinteressantes. Mas é um trabalho importante de "desbaste" da produção legislativa, onde o representante de cada Ministério procura avaliar da compatibilidade do projecto com os interesses sectoriais da sua área. Grande parte dessa legislação, desde que mereça acordo a nível dos secretários de Estado, só "sobe" aos ministros para simples "luz verde", sem debate nem leitura. Quando, os secretários de Estado não conseguem chegar a um acordo, e se o Ministério proponente não retirar o dilploma, os ministros, em Conselho, são chamados a "trancher".

Recordo-me bem que, logo nos primeiros meses de governo, tive uma "pega" homérica com um colega de um determinado ministério, por via das competências a que aquele departamento se arrogava, em matéria das instruções diretas a dar à nossa representação junto da União Europeia, em Bruxelas, as quais, na minha opinião, colocavam em causa a natural preeminência do MNE nesse domínio. O assunto não mereceu consenso ao nosso nível, pelo que teve de subir a Conselho de ministros, onde, com alguma dificuldade, o chefe do governo conseguiu arbitrar uma solução. Satisfatória para a posição que eu tinha sustentado, diga-se.

Esse era, e continua a ser, um tempo a que cada governo sempre se dedica com zeloso fervor inicial - o período de produção das "Leis orgânicas" dos ministérios. Através delas, alguns departamentos procuram ganhar faixas de competências que, no passado, pertenciam a outros. No que importava ao MNE, isso era feito através da inclusão de hábeis, e às vezes ambíguas, alíneas nas lista das tarefas que que cada ministério atribuía aos seus "gabinetes de relações internacionais" ou dos "assuntos europeus". Por essa razão, cabia-me passar "a pente fino" todas as propostas de Leis orgânicas de todos os departamentos do governo. Aqui está uma matéria em que a história é sempre a mesma, qualquer que seja a coloração política dos executivos...

Naquelas infindáveis reuniões dos secretários de Estado, numa sala austera da rua Gomes Teixeira, havia por vezes alguns momentos divertidos. A grande figura desses instantes era o secretário de Estado da Justiça, José Matos Fernandes, que era conhecido por fazer um minucioso escrutínio à produção legislativa, quer do ponto de vista substantivo, quer no tocante à correção linguística, uma tarefa a que eu e o Guilherme de Oliveira Martins muitas vezes nos associávamos, com sádico prazer, para desespero de alguns colegas. É que, de certos departamentos técnicos, chegavam, por vezes, projetos de legislação num português abaixo de qualquer classificação. Matos Fernandes, que era um pouco mais velho que todos nós, fazia então observações com uma imensa graça, dando verdadeiras lições de Direito, às vezes ilustradas com histórias divertidas. Confesso que essas suas intervenções fazem parte do pouco de que tenho memória positiva dessas longas horas, nos dias em que "ia a conselho", com as pastas a chegarem às nossas casas, muitas vezes, bem tarde na noite da véspera, obrigando a leitura de diplomas até de madrugada. Não sei se as coisas ainda hoje assim se passam.

Um dia, a poucos meses da minha programa saída do governo, para regressar à "carreira", já quase no termo dos quase cinco anos e meio em que exerci aquelas funções, olhei para o outro lado da mesa e deparei com alguém que não conhecia. Os governos têm umas escassas dezenas de pessoas e, naturalmente, todos se conhecem uns aos outros, melhor ou pior. Aquela cara, porém, não me dizia rigorosamente nada. É claro que tinha havido uma recente remodelação e era natural que fosse um novo secretário de Estado. Mas - c'os diabos! -, embora eu não tivesse estado na posse, tinha visto a fotografia dos novos secretários de Estado e eu ia jurar que aquela pessoa não entrara no governo. 

O homem estava silencioso e olhava em volta, como se observasse um ambiente que lhe era estranho. Tomava algumas notas, mas não pedia a palavra. Ao meu lado esquerdo, estava o Luis Parreirão, a quem perguntei se sabia de quem se tratava. Disse que não fazia a mínima ideia e que também achara estranha a personagem. Ele também não tinha estado presente na tomada de posse. E o mesmo acontecia com o colega que estava à esquerda do Luis Parreirão. Todos nos tínhamos "baldado" da cerimónia em Belém. Pela posição na mesa, tentámos perceber a que ministério pertenceria. Mas, por uma qualquer razão, não chegámos a nenhuma conclusão.

"Será um jornalista?", lancei, baixo, para o Luís Parreirão, que arregalou os olhos com a ideia. "Às tantas!..." Sabíamos que já tinha havido falsos "deputados" do "Tal & Qual" no plenário da Assembleia da República e podia dar-se o caso de se tratar de um "golpe" similiar, desta vez na reunião de secretários de Estado. Seria preciso ter muita lata, mas tudo é possível.

Eu estava cada vez mais intrigado. À minha direita sentava-se o Guilherme de Oliveira Martins, que dirigia a reunião, como ministro da Presidência. Discretamente, perguntei-lhe se tinha alguma ideia de quem seria o fabiano sentado do outro lado da mesa, que nenhum de nós identificava. O Guilherme sabe sempre tudo! E, com a maior das calmas, disse-me o nome do homem, explicando tratar-se de um novo recruta, num determinado ministério. E, com um sorriso, acrescentou, já crítico: "se você tivesse ido à tomada de posse dos novos membros do governo, tinha-o conhecido..." É que o Guilherme tinha também tomado posse, como ministro da Presidência. E não nos tinha visto por lá...

domingo, setembro 02, 2012

Rochefort

Passaram 45 anos. As ruas de Rochefort parecem-se pouco às do filme de Jacques Démy, onde é difícil encontrar uma loja de "frites", como a que madame Ivone por ali mantinha. Estou certo que as "demoiselles de Rochefort" com que nos cruzámos só por um grande acaso conhecerão essa tentativa francesa de emular os musicais americanos, para o que não faltaram mesmo George Chakiris e Gene Kelly. O filme, que há uns meses revi, faz parte de quantos não resistiram ao tempo: é chatote, primário e de uma simplicidade quase amadora, embora pretencioso. Salvam-se as caras larocas, claro.

Já devia ter aprendido, de uma vez por todas, a abandonar este meu perigoso gosto de rever filmes (e alguns livros) que me marcaram a memória longínqua. Saio muitas vezes desiludido do exercício. 

Emmanuel Nunes (1941-2012)

Desde há vários dias que estávamos alertados. Hoje, surgiu a notícia da morte, num hospital onde estava internado, em Paris, cidade onde vivia, do compositor português Emmanuel Nunes, aos 71 anos de idade.

Emmanuel Nunes foi a maior figura da música de vanguarda em Portugal, tendo uma carreira académica de grande relevo, durante a qual esteve associado a grandes figuras da música contemporânea universal. Galardoado pelos governos português e francês, foi-lhe também atribuído o "prémio Pessoa" e o prémio de composição da UNESCO.

É reconhecido como a mais importante personalidade musical portuguesa nas últimas décadas, com expressão no âmbito internacional.

sábado, setembro 01, 2012

"Le serment des cinq lords"

A grande vantagem de se andar por "outra" França é ter a oportunidade de ler uma imprensa regional de boa qualidade, que compense a grande desilusão que hoje é, com exceção do "le Monde", a imprensa nacional francesa, basicamente reduzida às duas caricaturas políticas, respetivamente de direita e esquerda, que nos oferecem o "Le Figaro" e o "Libération". Depois do fim do "La Tribune", resta-nos seriedade conservadora do "Les Échos" que, em matéria de revistas semanais, se prolonga na revista "Challenges". Nestas, o "Le Point" e o "L'Express" são hoje, na direita, uma sombra daquilo que já foram e da importância que já tiveram. À esquerda, o "Nouvel Observateur" tem ainda algum rigor, com o "Marianne" a surgir quase como um panfleto, agora algo "déboussolé" com a vitória da esquerda.

A imprensa regional francesa, com mais de meia centena de títulos, consegue, em alguns casos, compatibilizar sínteses nacionais e internacionais interessantes com uma cobertura local mobilizadora, sem cair no sensacionalismo do "crime & cia". A minha experiência da sua leitura é escassa, pontual e pouco representativa, mas devo dizer que, vindo de um país onde essa realidade quase não existe ao nível de jornais diários, aprecio bastante o "Sud ouest", as "Dernières nouvelles d'Alsace", a "Voix du Nord" ou o clássico "Dauphiné liberé" (que, contariamente ao "Le Parisien", soube manter a orgulhosa menção de "liberé", atribuído depois do fim da ocupação alemã).

Mas tudo isto, que é "como as cerejas", vem a propósito do facto de eu andar a ler, nos últimos três dias, o também excelente "Ouest France", que cobre a Bretanha e zonas um pouco mais a sul. E o que é que fui descobrir no jornal? A publicação diária de uma nova "aventura" de Blake e Mortimer, "Le serment des cinq lords", na versão de Yves Sente e André Julliard. Pode não ter a grandeza do "traço" de Edgar P. Jacobs, mas não deixa de ser uma aproximação bem interessante. Em novembro, sai o álbum a público. Desde ontem, a Amazon já tem a minha inscrição. Que saudades eu tenho de Olrik! Bandidos deste quilate já não há mais!  

sexta-feira, agosto 31, 2012

O léxico da crise

Há uns anos, quando vivi em Londres, deparei um dia com uma expressão na imprensa que me pareceu não corresponder àquilo para que a sua leitura linear apontaria: "industrial action". Vim a perceber que se tratava de uma designação geralmente usada para greves, mesmo que o processo não fosse desencadeado na área industrial.

O mesmo fenómeno voltou a acontecer comigo aqui em França. Um dia, deparei no jornal com a expressão "plan social". Não percebi imediatamente o que isso queria dizer, porque a expressão não era de leitura unívoca. Mas, pelo contexto, rapidamente entendi que isso queria significar, numa linguagem corrente, uma situação de despedimento coletivo numa determinada empresa.

O que levará os países mais ricos a esconderem, por detrás destes eufemismos, as realidades a que nós chamamos pelos nomes óbvios?

quinta-feira, agosto 30, 2012

Leituras

Não primava pela cultura, a mulher de um diplomata que o acaso protocolar colocou ao lado daquele conhecido escritor, num jantar oficial. Para o romancista, já de si pouco dado a este tipo de eventos, toda a conversa tinha sido penosa, dado que todas as referências da senhora se situavam nos antípodas dos seus interesses.

Conhecendo embora o seu nome, ela nunca lera nenhuma das suas obras, cujos títulos teve a honestidade de dizer que não conhecia. As suas leituras mais avançadas situavam-se no género "light" das sagas urbanas, com sexo, carros, restaurantes e viagens, feitas de "casos" cruzados, em linguagem coloquial modernaça. Se ela fosse portuguesa, nós já sabíamos alguns títulos...

O escritor, porém, cuidara em ser muito complacente, quando a senhora, com grande admiração, lhe referira algumas das "obras" do género que lera. É que havia alguns desses "colegas" que eram publicados pela sua editora...

Já no fim da sobremesa, a senhora, que continuava deserta de qualquer conversa substantiva, inquiriu, sentindo-se quase na obrigação de mostrar uma simpatia curiosa:

- E agora, o que é que anda a escrever? Diga-me lá...

- Nos últimos meses, fiz uma pausa nos meus romances, revelou o escritor. Estou a escrever uma autobiografia.

- Ah! mas que interessante! E trata de quê?

quarta-feira, agosto 29, 2012

Blogue

Há dias, alguém me perguntava a razão pela qual este blogue "teimava" em publicar um post diário, desde a sua "inauguração", em 4 de fevereiro de 2009. A única resposta que encontro é a de que mantenho uma espécie de "aposta" comigo mesmo, sobre a capacidade de respeitar uma certa auto-disciplina.

Ou, quem sabe?, ainda será a memória dos tempos de infância em que, em minha casa, havia uma pequena caixa de cartão que tinha por fora (sem ofensa e com todo o respeito pelos leitores do blogue) a expressão: "um tostão por dia para os pobres da freguesia"...

terça-feira, agosto 28, 2012

Cimeiras e cúpulas

Foi ontem anunciado o adiamento da cimeira que estava prevista entre Portugal e o Brasil. Aposto que, no Brasil, os jornais falaram em "cúpula". 

Entre o português de Portugal e o do Brasil não há apenas diferenças na ortografia e na sintaxe. Há, pelo meio (os brasileiros dirão "em meio") de um vocabulário comum muito extenso, muitas palavras que são diversas. Alguns vocábulos brasileiros têm origem no português antigo, que se perdeu em Portugal e que permaneceu naquele país, em especial no Norte. Outros termos derivam da influência das línguas locais, como o tupi-guarani, ou de palavras oriundas de outras migrações, como a italiana, que também muito contribuiu para a abertura das vogais na fonética brasileira. Outras ainda, têm a ver com realidades locais e com uma evolução lexical que procurou, muito mais do que em Portugal, verter para a escrita o produto da oralidade popular. 

Estas diferenças, que não existem com a mesma intensidade noutras grandes línguas internacionais, não devem ser dramatizadas, mas devem ser lidas como fruto de uma diversidade que não há desvantagem em continuar a ser cultivada, desde que não fragilize o muito que a língua tem de comum, nomeadamente na sua expressão no mundo internacional.

Mas toda esta "conversa" vem a propósito das cimeiras ou cúpulas entre os dois países, que nunca têm uma data certa para a sua realização, que têm lugar quando é considerado oportuno por ambos e quando há suficiente matéria, em termos de interesses bilaterais, que justifiquem a ocasião. O mesmo se passa com exercícios idênticos que Portugal tem com a França, a Espanha ou Marrocos. 

Em 2006, teve lugar no Porto uma dessas cimeiras. Na noite que a antecedeu, fui testemunha de uma curiosa cena. Num certo momento, os dois diplomatas, um de cada país, que tinham a seu cargo a preparação do texto das conclusões, pareceram-me algo preocupados. O que é que se passava?  Muito simplesmente, cada país tinha contribuído com textos para essas conclusões e, ao juntarem-se esses mesmos textos num documento comum, ele ficava uma verdadeira "manta de retalhos", com expressões portuguesas e brasileiras, com uma espécie de ortografia e vocabulário "a meio do Atlântico". A imprensa, que era o destinatário principal dessas conclusões, iria, com certeza, ironizar com essas diferenças. E seria ridículo produzir dois documentos com diferentes ortografias, sintaxes e vocábulos.

Foi nessa altura que eu, e creio que o Lauro Moreira, o embaixador brasileiro que viria a ser o representante do Brasil na CPLP, nos voluntariámos para ajudar. Por alguns minutos, dedicámo-nos ao exercício de procurar sinónimos e expressões que, não apenas fossem comuns a ambos os países, mas que, igualmente, não apresentassem diferenças ortográficas. O nosso esforço foi bem sucedido e, nos poucos casos em que não fomos capazes de contornar as diferenças existentes, optámos por colocar as fórmulas portuguesa e brasileira, separadas por uma barra. 

Tudo se resolve, entre Portugal e o Brasil.

O valor dos Bonds

Todas as manhãs, de há uns anos para cá, um dos meus gestos de rotina, é olhar a evolução do valor dos Bonds (dívida pública) portugueses no mercado internacional, verificando o "spread" face aos que são emitidos por Berlim. Começo sempre a leitura do "Financial Times" por aí. Os Bonds são um bom indicador da forma como os mercados olham para a economia portuguesa, o que é importante, em especial agora, nestes tempos de "troika".

Ontem, porém, o valor relativo de outros Bonds chamou a minha atenção. Foi Roger Moore, o ator que protagonizou mais filmes de James Bond, que apareceu citado na imprensa como tendo dito que Daniel Craig, o último ator a interpretar a personagem, era o melhor James Bond de sempre.

Roger Moore é um senhor respeitável, que protagonizou alguns desses filmes com um misto de humor e charme machista, que sempre saía das cenas mais violentas com a poupa intocada, com aquele sorriso de marca, que, aliás, conserva na velhice, como pude comprovar há meses, quando o cruzei num evento por aqui. Como ator, desempenhava um Bond divertido, ao mesmo nível, comparadas as épocas, com que já fizera para a televisão as séries Ivanhoe ou O Santo. Mas, sejamos honestos, foi sempre um ator "13 valores", para usar a classificação que o meu pai costumava dar às prestações "assim-assim". Sempre pressenti que, no seu íntimo, vivia com um fantasma que se chama Sean Connery - o "verdadeiro" Bond. Isso mesmo fica confirmado nestas declarações de Moore que, enfim, estão ao nível daquilo a que sempre nos habituou como ator: "13 valores". 

segunda-feira, agosto 27, 2012

Férias

Têm sido divertido notar as reações de alguns amigos, agora regressados ao trabalho, quando lhes revelo que... agora, vou eu de férias!

sábado, agosto 25, 2012

O cunhado

Claro que não era uma ordem, até porque tinha vindo de Lisboa por via indireta, cordial e amigável. Mas o recado segundo o qual aquele ministro português "gostaria muito" se a embaixada em Londres pudesse arranjar dois lugares, destinados a um seu cunhado e a um professor deste, para uma final da Taça de Inglaterra em Wembley, configurava aquele género de pressão a que é difícil dizer que não. O problema é que os bilhetes para o jogo estavam esgotados, há muito. Eu conseguira comprar um, para mim, mas já há largos meses.

Na embaixada, descobriu-se alguém que tinha um amigo na federação britânica. Essa pessoa, por especial favor, conseguiu dois acessos, depois de ter explicado que havia um ministro por detrás do pedido. A resposta da federação foi, aliás, melhor do que se poderia supor: atendendo a que era um pedido "oficial" de um membro do governo português (não sei bem o que disseram à federação), ofereciam dois convites, gratuitos, para uma zona especial, tipo camarote, onde ficavam os convidados da federação. Porque era uma área do estádio alheia às claques, relativamente "neutral", a federação apenas pedia alguma parcimónia na exibição de bandeiras ou símbolos dos dois clubes em liça. Esses ficavam para as duas imensas claques, uma londrina, do Chelsea, outra do Sheffield Wednesday. 

Era na cidade de Sheffield que o cunhado do ministro estudava. Estava assim explicado que quisesse fazer um gesto e trazer o professor para ver o seu clube. E, com certeza, para mostrar o que era a importância de ser cunhado de um ministro, capaz de mover mundos e fundos para arranjar duas entradas, ainda por cima de borla, para uma "Cup final". Ao cunhado do ministro, lembro-me que alguém transmitiu a indicação da necessidade de serem respeitadas as limitações coreográficas assinaladas pela federação, tendo ficado combinado deixar os dois convites num determinado local de Londres.

No dia do jogo, lá fui para Wembley. Como o meu bilhete era relativamente central, fora das claques, podia avistar, com facilidade, os camarotes. E foi então que lá os vi, no meio de um largo grupo de pessoas que não ostentavam nem bandeiras nem cachecóis: aquele que me pareceu ser o professor e um miúdo, jovem adolescente, ambos vestidos, da cabeça aos pés, de evidentes fãs do Sheffield Wednesday, a destoarem vivamente, pela cor e pela agitação que fui observando, dos responsáveis federativos e seus convidados. Imagino que alguém da federação deva ter estranhado bastante aquele golpe de "entrismo" lusitano.

O cunhado do ministro telefonou, dias depois, a agradecer, dizendo que tinha ficado "adoentado" e que, por essa razão, tinha dado o seu bilhete ao filho do professor. Pois...

Porque a sorte protege os audazes mas não necessariamente os espertalhaços, o Sheffield Wednesday perdeu contra o Chelsea e os dois "convidados" terão ficado com uma cara similiar à dos seus correlegionários da foto (mas não me lembro se algum deles usava o elegante capacete da "farda").

Passou-se isso numa tarde de sábado dos anos 90, um dia em que eu percebi melhor por que razão a palavra cunhado pode ter a ver alguma coisa com a palavra "cunha". Ontem, ao assistir, pela televisão, à terceira (e merecida) vitória consecutiva do Chelsea na edição deste ano da "league" inglesa, lembrei-me deste episódio. E que, daquela vez, até fiquei satisfeito pelo facto do Chelsea ter ganhado, coisa que só me voltaria a acontecer nos tempos de Mourinho, Scolari e Vilas Boas. Porquê? Porque, em Londres, eu "sou" do Arsenal, claro!

sexta-feira, agosto 24, 2012

A "chance" de Poulidor

E continuamos no ciclismo. A decisão de Lance Armstrong, ontem anunciada, de renunciar à sua defesa perante as acusações de dopagem que lhe são feitas, deve resultar na sua desqualificação como vencedor de sete "Tours de France".

Julgo que a imagem da popular prova ciclística francesa, bem como a do ciclismo em geral, vão sofrer fortemente, em matéria de credibilidade, particularmente se somarmos este escândalo aos tantos outros que mancham a competição e tornam cada vez mais duvidosas (e, pelos vistos, precárias) as vitórias a que vamos assistindo. Devo dizer que, como ativo adepto - de sofá e televisão - do mundo do ciclismo, entristece-me ver esta mítica modalidade, que tanto mobilizou a minha atenção desde a juventude, entrar "pelas ruas da amargura". E começa a ser ridículo - mas compreensível - que os resultados ciclísticos acabem por ser ditados nos laboratórios (como alguns do futebol o são "na secretaria")

Um amigo, ontem, ao telefone, comentou: "Não és tu que és um fã do Poulidor?". 

Para o leitor menos avisado, diga-se que Raymond Poulidor foi um grande ciclista francês, vencedor de várias provas no país e no estrangeiro, mas que nunca conquistou o "Tour de France", nem nele sequer vestiu alguma vez a "camisola amarela", embora tenha ganho várias etapas. Mas, nesse mesmo "Tour", foi três vezes segundo classificado e cinco vezes terceiro. É hoje um ídolo para várias gerações francesas e é uma figura por quem, desde sempre, nutro uma imensa simpatia, nesta minha incontrolável tendência para gostar dos gloriosos e dignos "losers".

Perguntei ao meu amigo por que diabo me vinha falar do Poulidor. "É que, por este andar, ainda vão acabar por desclassificar o Anquetil e o Merckx, nalguma "revisão de provas", pelo que o Poulidor pode ainda ter uma "chance" de ganhar uma Volta à França ...". 

Desporto

Segundo o "Der Spiegel" desta semana, a Alemanha vai ter um novo representante diplomático em Paris, uma senhora, conhecida pelo seu espírito desportivo, porque vai todas as manhãs de bicicleta para o trabalho.

Neste aspeto, peço meças à minha nova colega: eu vou a pé, todos os dias, de casa até ao emprego.

E espero que não me venham dizer que o facto do escritório da embaixada ser no andar superior àquele em que se situa a residência fragiliza o argumento.

quinta-feira, agosto 23, 2012

Goa

Goa foi um tema que sempre me fascinou, menos pela inegável importância histórica da nossa presença na costa indiana e muito mais pela natureza, que sempre vi como muito ambígua, da relação de Portugal com aquela terra e aquela gente. Há uns anos, essa curiosidade levou-me mesmo a passar por lá uns dias. E, devo dizer com franqueza, saí mais confundido do que estava quando lá cheguei.

No final de 2011, passou exatamente meio século desde que a União Indiana invadiu as últimas possessões que Portugal mantinha na costa do Malabar: Goa, Damão e Diu. Dois enclaves, Dradrá e Nagar Haveli, já haviam sido absorvidos pelo governo de Nova Delhi, em 1954. Uma curta batalha militar veio encerrar uma mais longa batalha jurídico-diplomática, com que o governo ditatorial português pretendia contrariar o processo descolonizador. A perda do Estado da Índia representou um trauma muito importante num país que, nesse ano, já havia assistido às trágicas consequências da sublevação em Angola. O colonialismo português entrava no seu declínio e, com ele, o próprio regime.

Mas, à época, diga-se em abono da verdade, nem só os dirigentes do Estado Novo se recusavam a aceitar o fim do império: grande parte da opinião pública portuguesa, mesmo dentre quantos se opunham a Salazar, mantinha uma atitude favorável (ou, pelo menos, não desfavorável) à manutenção dessa parcela do "ultramar português". Mesmo no seio das forças organizadas da Oposição, essa atitude dominava, convém dizê-lo. Recordo-me bem da emoção provocada em Vila Real, em fins de 1961, aquando da "queda" do Estado da Índia, pela invasão das tropas do "Pandita Nehru".

(Nunca me saiu da cabeça a ideia que criei de que a reiterada utilização adjetivada que a propaganda do regime fazia da palavra "Pandita" - designação elogiosa indiana que era atribuída a Nehru e que, em rigor, significa homem sábio e educado - tinha a ver com a sua similitude sonora com "bandido", tal como, anos mais tarde, aconteceu na América com as expressões "Saddam" e "Satan". Os cartazes com palavras de ordem que diziam "Abaixo o Pandita" e coisas similares assim parece provarem).

Tenho na memória a visão do meu professor de História, dr. Carlos Sanches, não sei bem em que qualidade, a discursar na varanda do Governo Civil de Vila Real, para umas centenas de pessoas que, com patrióticos cartazes, manifestavam o seu pesar pelos acontecimentos. Eu estava ali com o meu pai, um eterno anti-salazarista, mas que estava solidário com a defesa do Estado da Índia.

Na altura, a censura aos media não deixou revelar as dissenções havidas entre o governador-geral Vassalo e Silva e o executivo de Lisboa, com a "heroicidade" de Salazar a mandar, da comodidade de S. Bento, o célebre e gongórico telegrama, redigido para a História e para o "livro branco": "Não haverá nem vencedores nem vencidos, só heróis e mártires". Lembro-me da emoção com que então se ouvia falar do afundamento do aviso Afonso de Albuquerque, bem como da "defesa heróica" levada a cabo pelas forças militares portuguesas em Goa. Só muito mais tarde vieram a conhecer-se as condições miseráveis em que estavam as nossas tropas no terreno e no total irrealismo que representaria uma luta até ao último homem. A vilificação de Vassalo e Silva (a ironia estadonovista nas conversas sugeria a sua "cobardia", ao tratá-lo como "bacilo salvo") foi a escapatória fácil encontrada pela ditadura para justificar a derrota militar, a qual, como disse, era uma outra face da inevitável derrota política da teimosia na manutenção do sonho imperial, de que Índia "portuguesa" era a primeira peça do dominó a cair.

Como atrás disse, há uns anos, passei uns dias em Goa. A Índia era a zona da fixação colonial portuguesa que me criava (e ainda cria) maiores interrogações. Sabia do modo ofendido como os habitantes de Goa, Damão e Diu tinham entendido a aplicação ao território do Ato Colonial, logo no início do Estado Novo. Li, mais tarde, textos escritos por goeses divididos entre a fidelidade a um Portugal que os tratara menos bem e a atração por uma União Indiana que lhes abria caminho a uma ligação a um grande Estado descolonizado, então "farol" para muitos povos. E percebera, também, a desilusão que muitos goeses haviam acabado por sentir, ao verem a sua identidade violentada por uma integração algo traumática, desrespeitadora da sua sensibilidade cultural e até religiosa. Não sei o suficiente sobre o assunto para poder ter uma opinião segura, mas recomendo muito que, quem possa, vá a Goa e por lá tente entender aquela gente que ficou "a meio da ponte"...

Nessa viagem, entre outras surpresas, tive uma experiência curiosa. Como acontece com muitos turistas portugueses, procurei visitar algumas das antigas casas senhoriais do tempo da Índia "portuguesa", hoje maioritariamente transformadas numa espécie de museus, as mais das vezes tristes, que espelham uma decadência serena e digna. E onde, em geral, se fala de Portugal sem acrimónia, mas também sem especial nostalgia, como falamos de longínquos membros desaparecidos da família, com defeitos e virtudes. Mais do que de Portugal, do que alguns goeses parece terem saudades é da sociedade goesa do passado, o que são coisas muito diferentes.

A certo ponto da minha estada, ao aproximarmo-nos de uma dessas casas, fui informado pelo motorista que ela não era visitável, salvo com diligências que eu não tinha tempo de empreender. O mesmo motorista chamou-me, entranto, a atenção para uma senhora que estava a sair da casa, dizendo saber que era ela a proprietária. Pedi para parar o carro e dirigi-me à senhora, que deveria mais de 80 anos. Fi-lo em inglês. A senhora olhou para mim e, num português impecável, respondeu-me: "Mas por que é que está a falar-me em inglês? Eu falo português. Eu fui deputada à Assembleia Nacional!". Chamava-se Lurdes Figueiredo e, logo recordei, fizera parte de um grupo de deputados, de um género a que os brasileiros chamam "biónicos", que haviam sido designados pelo Estado Novo para representar o Estado da Índia, no areópago de S. Bento, ao tempo em que o general França Borges era uma espécie de governador-geral no exílio... em Lisboa. Creio que duraram até ao 25 de abril, se não me engano.

Fiquei sempre com muita pena de não ter tido a oportunidade de falar longamente com aquela senhora, para tentar perceber um pouco mais desse tempo estranho, de um Portugal em transição, em trágico final de império. 

Tão estranho que o motorista que me transportava, um hindu que não falava uma palavra de português e que havia nascido já bem depois do fim da Índia dita portuguesa, me pediu para lhe mandar, de Lisboa, autocolantes com o nosso escudo ou a nossa bandeira, para si e para oferecer aos amigos, que achavam muita graça usar nos automóveis. As bizarras malhas que o império tece...  

O francês

Vasco Graça Moura publicou ontem no "Diário de Notícias" um interessante artigo em que dá conta do declínio de importância da língua francesa em Portugal, sublinhando a sua contribuição para a nossa cultura e para a nossa abertura ao mundo. 

E, a propósito, lembrou um curioso soneto do Abade de Jazente (sec XVIII):
 
"Portugal, que era rústico algum dia,
Incivil, trapalhão, mal amanhado,
Está graças à França tão mudado,
Que o mesmo já não é do que soía.
A língua, o traje, o trapo, a grossaria
Dos antigos costumes tem deixado:
É todo doce, é todo concertado;
E parece outro sua Senhoria".

Leia o artigo aqui.

quarta-feira, agosto 22, 2012

Ar verdadeiramente condicionado


Paris vive dias abafados, num verão quente raro, com temperaturas a aproximarem-se dos 40 graus. A embaixada e a residência do embaixador não têm ar condicionado, porque o prédio é antigo e tem de ser preservado. Nos escritórios, sobrevive-se num ambiente de penumbra, que quase obriga a acender as luzes. Sonha-se com ar condicionado, mesmo que fosse o das patuscas histórias de "espionagem" da FNAC no "verão quente", contadas por quem nos quer convencer de que tudo "foi assim", quando, na altura, pensava "assado". Nessa falta de ar, não se estranhará, por isso, que me tenha vindo à memória o episódio que conto neste post.

A doutrina divide-se, desde há muitos anos, sobre se foi a perfídia dos companheiros de viagem ou as condições do acaso que fizeram com que o meu colega Paulo Castilho (esse mesmo, o escritor, também diplomata) e eu fôssemos parar àquele sinistro hotel nos Barbados. Estávamos a dar então os nossos primeiros passos nas instituições europeias, em 1986, e competia-nos defender as cores nacionais numa reunião multilateral, em Bridgetown, dedicada a questões de comércio e desenvolvimento. 

Parte da delegação chegara dias mais cedo. Nós arribávamos de Londres, na véspera da reunião plenária, juntamente com o chefe da delegação. Para este, estava destinado um belo quarto, num bungalow sobre a praia. O Paulo Castilho e eu fomos informados de que só fora possível reservar aposentos num outro hotel, "um pouco fora da cidade". Conhecendo do que a casa gasta, fiquei de pé atrás. Mas lá jantámos, bem dispostos, em Bridgetown, distraindo uma colega que tinha perdido a mala e discutindo quotas de açúcar, antes de rumarmos ao tal hotel.

No táxi, começámos a preocupar-nos. O tempo passava e os caminhos eram cada vez mais estreitos. Depois de aí uma boa meia hora viagem, chegámos ao destino. Era um hotel medíocre, na soleira de ser uma espelunca. Olhámos um para o outro, na certeza de que esse facto não iria atenuar as invejas que tínhamos deixado para trás, em Lisboa, ao termos tido o privilégio de ser designados para uma reunião nas Caraíbas. Haveria que passar ali três noites. E, em especial, tínhamos de madrugar e encontrar transportes para estar a tempo nas reuniões. Eu estava furioso, diria mesmo, nominalmente furioso com as pessoas que tinha como responsáveis daquela "partida", que nem por um segundo desligámos de um conflito de titularidade sobre os assuntos tratados na reunião, que então se vivia dentro do MNE.

Na receção do hotel, perguntei se os quartos tinham ar condicionado, temendo o pior. A resposta foi críptica: "Sim, mas tem um pormenor que explicaremos quando chegar ao quarto". E lá fomos. Sem elevador, claro. O quarto estava ao nível das baixas expetativas que já levávamos. Mas tinha ar condicionado. O pormenor? Bom, o pormenor é que, para que o ar condicionado funcionasse era necessário, de duas em duas horas, meter uma moeda. Coisa simples, está bem de ver!, para quem pretendia dormir, depois de uma imensa jornada. Foram dias, melhor, noites horrorosas, com olheiras que nem deu para atenuar com umas horas de praia, coisa que os nossos colegas alojados em Bridgetown tinham assegurado, quando quisessem. 

No regresso, "vingámo-nos" à nossa maneira! Eu e o Paulo Castilho viémos por Nova Iorque, onde passámos uns curtos dias de férias. Vi que ele aproveitava para tomar algumas notas. Só uns anos depois percebi porquê, ao reconhecer, desses dias, alguns cenários no seu livro de estreia, "Fora de Horas".

(E, passado que entretanto foi o tempo, quero declarar que já iniciei um processo de autoconvicção sobre a "bondade" intrínseca de quem nos reservou os quartos no hotel caribenho. Um dia, perguntarei ao Paulo Castilho se já se convenceu...)

Em tempo: um leitor atento, poeticamente a banhos em zonas da reconquista, teve a gentileza de mandar, para usufruto dos leitores deste blogue, este curioso texto intitulado "L'air conditionné est-il de droite?", magna questão que deve provocar suores frios a quem a coloca.

San Francisco

Só hoje dei conta de que morreu Scott Mackenzie. Dele, apenas nos ficou (o que não é pouco) o seu "San Francisco":

all across the nation
such a strange vibration
people in motion
there's a whole generation
with a new explanation
people in motion

terça-feira, agosto 21, 2012

Sorte

- Pensando melhor, não vou mandar esse tipo para lá.

A reação do secretário-geral surpreendeu o amigo, embaixador há muito no estrangeiro, que o visitava no seu gabinete de Lisboa. No andamento da conversa, esta tinha acabo por concentrar-se na possível colocação de um determinado funcionário, com experiência e já com alguns anos de carreira, num posto consular de elevada dificuldade. Era uma zona com tensões de guerra, com uma comunidade portuguesa significativa. A surpresa do embaixador era tanto maior quanto o seu amigo secretário-geral havia acabado de fazer comentários basicamente positivos sobre o funcionário, o qual, não sendo uma "águia", era aquilo a que os anglo-saxónicos chamam "a safe pair of hands". E é de gente assim que a "carreira" precisa!

- Mas não vais mandar o homem, porquê? Ainda agora afirmaste que ele era capaz!

- Decidi não o mandar por causa de uma coisa que tu disseste...

- Eu?! Mas eu mal o conheço! Só te disse que era um tipo de quem sempre ouvi dizer que não tinha tido sorte na carreira, em todos os postos onde estivera. Até acho que merece uma oportunidade para brilhar, num posto difícil, com alguma visibilidade.

- É por isso mesmo! Se é um tipo que nunca tem sorte, não me arrisco a mandá-lo para um sítio difícil.

E assim foi, acabou por ser escolhido outro funcionário para ocupar o posto, como me contou, um dia, o embaixador visitante.

Olhando hoje para o que foi o resto da carreira do colega preterido, não posso deixar de dar razão à presciência daquele secretário-geral.

Asilo

Por um daqueles mistérios que as relações internacionais encerram, Cuba mantinha em Lisboa uma representação diplomática no tempo da (nossa) ditadura, dedicada à promoção comercial. Nenhum outro país do mundo comunista o fazia, com exceção da Jugoslávia. Era num (julgo que 2º) andar perto da Estefânia, que, além de outros ocupantes, tinha uma loja de artigos elétricos no rés-do-chão. Recordo-me bem de por lá ter passado, no final dos anos 60, a procurar recolher alguma "literatura" política (no que eram de um parco proselitismo, registe-se).

Fugido do hospital Curry Cabral, onde estava internado sob prisão, Manuel Serra, um dos protagonistas do chamado "golpe da Sé"*, um frustrado movimento insurrecional contra o salazarismo ocorrido em 1959, que antes havia sido sujeito a bárbaras torturas da polícia política, obtivera um dia asilo nessa representação cubana. A PIDE montou tocaia permanente ao local e os seus agentes passaram a revezar-se, no passeio do prédio, vigiando a porta, para impedir uma fuga de Serra. Este assomava, com regularidade, à varanda, com um ar provocatório, fumando charuto, com uma cabeleira longa e uma barba que há muito tinha deixado crescer, o que lhe dava um ar de guerrilheiro da Sierra Maestra, aliás bem adequado ao sítio de acolhimento. A provocação ia mais longe: Serra cuidava em expelir, com maestria e pontaria, algumas secreções bucais na direção dos "pides", acertando por vezes em alguns deles. E fazia esta "graça" com irritante regularidade... 

Um dia de 1960, a cena repetiu-se e um "pide", mais distraído, recebeu um desses "brindes" do barbudo galhofeiro da varanda, na ocasião vestido com uma vistosa camisa encarnada (Serra preferiria dizer vermelha, pela certa). Mal o "pide", furioso, acabava de se limpar, saiu da porta ao lado do estabelecimento comercial um padre**, de sotaina e cabeção, que, simpaticamente, o saudou com um cumprimento de cabeça. Esse sacerdote pálido, de cabelo curto e empastado, todo de negro vestido, caminhou lentamente para o jardim Constantino, desaparecendo nesse final de manhã de Lisboa.

O que o "pide" não sabia é que o "padre" era, nem mais nem menos, Manuel Serra, o qual, em poucos segundos havia cortado as barbas e o cabelo, mudado de roupa e descido as escadas. Para se escapulir, contara com o contraste entre um aprumado "sacerdote" e a imagem desgrenhada e colorida do revolucionário que permanecia na memória visual recente do polícia.

Serra conseguiu fugir para o Brasil mas, tempos depois, voltou a Portugal para integrar a direção do chamado "golpe de Beja", uma nova (e também fracassada) tentativa de derrube do regime. E voltou a ser preso, por mais sete anos, depois de fortemente torturado. Morreu há pouco mais de dois anos, como então registei aqui.

A propósito: não creio que a polícia londrina caia no truque do "padre", se Julien Assenge o vier a tentar.


* Agradeço a Helena Oneto a lembrança de úteis ligações, que permitem um melhor esclarecimento sobre o "golpe da Sé" e o "golpe de Beja".

** A indicação de que Manuel Serra ia vestido de padre foi-me dada, há muitos anos, por um amigo que me dizia que conhecia bem o caso. Verifico, contudo, que, segundo a maioria das versões, esse é o traje que terá sido utilizado na fuga do Curry Cabral e não é plausível que o mesmo disfarce tenha sido usado duas vezes.

segunda-feira, agosto 20, 2012

Bloguítica

Há cerca de uma década, descobri um blogue que fazia uma utilíssima recensão do que era publicado em vários outros. Isso abriu-me a porta ao conhecimento escrito das mais diversas e mais ativas figuras da então nascente blogosfera portuguesa. O "dono" desse blogue que fazia um verdadeiro serviço público, Paulo Gorjão, ter-se-á cansado, a certa altura, do modelo que criara e enveredou pela frequência de novos espaços coletivos, fórmula que, como se sabe, tem hoje imensos cultores e um grande êxito.

Há dias, dei-me conta de que Paulo Gorjão, que tem uma especial atenção às coisas internacionais mas que também "mete a colherada", com regularidade, na política caseira, regressou ao seu blogue original, embora o respetivo arquivo tenha lamentavelmente "esquecido" as muitas coisas que, no passado, nele editou.

Saúde-se aqui a reaparição do Bloguítica.  

Bruxas

Quase 40º de calor não me impediram de comprar ontem, num "bouquiniste" à beira do Sena, um velho "Livre de poche" com "As Bruxas de Salem", que há minutos acabei de reler. 

Ao meu lado, um cidadão olhou de soslaio a minha aquisição dessa bela peça teatral, a qual demonstra, a quem o não souber, que Arthur Miller é bem mais do que o marido de Marylin Monroe, de quem muito se fala por estes dias. O homem do cais tinha ar de eslavo. Será que não há uma edição russa da obra? Bem falta fazia por lá...

sábado, agosto 18, 2012

Diálogo

O diretor-geral ficou siderado! O telefone interno tocara e, do outro lado da linha, ouviu a frase insolente:

- Ó minha besta! Li um papel teu que é uma boa porcaria! Espanta-te depois que o ministro te dê uma embaixada num sítio sinistro!

Reagiu, com um berro:

- Que diabo quer você? Sabe com quem está a falar? Daqui é ... - e disse um nome que, nesses anos 70, fazia tremer meio ministério.

Do outro lado da linha, o interlocutor terá feito uma leve pausa. Após o que interrogou:

- E você? Tem ideia de quem eu sou?

- Não, mas sei que é um imenso cretino, pela certa! - respondeu, irritado, o diretor-geral.

- Ainda bem que não sabe quem eu sou... - disse o equivocado correspondente, numa voz prudentemente anasalada para a ocasião. E desligou, nesse tempo dos velhos telefones que não identificavam a origem das chamadas. A verdade é que o tal diretor-geral, nas vezes em que o encontrou, nunca lhe falou no assunto...

sexta-feira, agosto 17, 2012

Sinai

Muito se tem falado do deserto do Sinai, por estes dias. Zona de alto risco em matéria de segurança, atravessá-lo passou a ser uma aventura insensata e, ao que a imprensa reporta, já quase impossível para viaturas civis. Mas não era assim, até há pouco tempo. A história que aqui conto, tem já uns bons anos.

O assassinato do primeiro-ministro israelita, Itzak Rabin, havia interrompido subitamente a visita oficial que o então presidente português, Mário Soares, fazia a Gaza, que se sucedia a uma estada em Israel. Nessa manhã de 6 de novembro de 1995, saíramos da Faixa de Gaza para o Egito, pela "pesada" fronteira de Rafah, onde Israel mantinha então um controlo, politicamente muito sensível para os palestinianos. Um avião posto à disposição pelo governo egípcio iria buscar-nos à cidade de El-Arish, umas dezenas de quilómetros adiante, onde era suposto almoçarmos, num hotel de praia sobre o Mediterrânico. Mário Soares, insistiu em tomar um banho e alguns o acompanhámos. Ainda hoje guardo umas belas fotos do Rui Ochoa, com Mário Soares, Alfredo Duarte Costa e eu, vestidos com uns longos calções emprestados.

À época, era nosso embaixador no Cairo, Eduardo Nunes de Carvalho, uma simpática figura da nossa "carreira", onde é crismado pelos amigos com o "nickname" de "Iá", pessoa por quem tenho uma grande estima. É um homem de sorriso permanente, de uma agudeza fina de espírito, muito culto e educado, uma das boas "cabeças" que serviu a nossa diplomacia. Tinha, porém, como todo o ministério sempre soube, uma relação algo desligada com as coisas e, em especial, com o tempo, com distrações e atrasos que se tornaram lendários. Nessa manhã, tinha vindo ter conosco, de carro, do Cairo, depois de uma jornada de várias horas, através do Sinai. E chegou a tempo do almoço, depois do nosso banho. 

Na nossa viagem de avião para a capital egípcia, o embaixador acompanhou-nos, naturalmente. O seu carro, com o motorista, regressaria pelo mesmo caminho, atravessando o deserto do Sinai. Chegámos ao Cairo a meio da tarde. Mário Soares, a senhora e o ajudante de campo foram para uma "guest house", posta à sua disposição pelo presidente egípcio. O resto da delegação, de que faziam parte deputados e algumas figuras da vida pública portuguesa, foi instalar-se num hotel. Depois de acomodar o presidente, o embaixador juntou-se-nos e por ali foi ficando, à conversa.

A certo ponto, vi que Nunes de Carvalho era chamado a um telefone, na esplanada onde estávamos. Era Mário Soares. Estaria "farto" do isolamento da "guest house" e queria juntar-se-nos, para jantar. Sugeria ir ter conosco ao hotel e que, ainda antes do jantar, todo o grupo português fosse conhecer a residência oficial, situada umas centenas de metros adiante, um andar bem simpático, com uma varanda sobre o Nilo, na ilha de Zamalek.

Notei que o embaixador começou a titubear na conversa, resistindo à ideia, dizendo que já não havia muito tempo, explicando que tinha a sua mulher fora do Cairo, para além de outros pretextos de ocasião, que me pareceram pouco convincentes. Ora a sua casa era a residência oficial do Estado e nada mais natural seria que acolher, ainda que para uma simples bebida antes do jantar, o chefe do Estado e os seus convidados. A minha estranheza era tanto maior quanto Nunes de Carvalho era um "homem com mundo", que gostava de receber e recebia bem, como eu próprio tivera oportunidade de testemunhar noutros lugares.

A conversa entre o embaixador e o presidente, com o último a fazer aquilo que eu presumia ser uma contínua pressão para a aceitação da ideia que tivera, foi-se prolongando, com Nunes de Carvalho, entre risadas nervosas e frases incompletas, tentando dissuadir Mário Soares. Até que, finalmente, o ouvi retorquir: "Ó senhor presidente! É que temos um problema, que nos impede, em absoluto, de ir lá a casa". Fiquei curioso. E, depois de mais uma gargalhada, sempre muito mais de nervos do que de graça, gaguejando de embaraço, esclareceu: "É que eu - desculpe ter de dizer-lhe! - deixei as chaves de casa no meu carro, que está a atravessar o deserto do Sinai, e que só chega daqui a umas horas..."

A verdade é que o embaixador, não sonhando com a hipótese da sua residência ter de ser "mobilizada" na ocasião, e na ausência da sua família, havia dispensado o pessoal. Sendo já tarde e, para mais, estando sem motorista, num tempo em que pouca gente tinha telemóvel, seria impossível andar à procura, pelo dédalo do Cairo, das segundas chaves da casa. E lá jantámos nós, com o nosso embaixador como convidado, no antigo Gezirah Palace, hoje um Marriott, construído para a inauguração do canal do Suez, em 1869, um evento que, à época, foi testemunhado localmente por um viajante português que muita graça achava aos episódios da diplomacia que serviu - José Maria Eça de Queiroz.

Retrato

Numa série de retratos de vários países, desenhados em escrita através da obra de autores nacionais, o "Le Monde" de hoje, sob o título "Le Portugal ne rêve plus" (sem link), debruça-se, numa página inteira, sobre a obra de Francisco José Viegas, recortando passagens do anti-herói dos seus livros policiais. 

Sem a menor surpresa, pelo texto perpassa um olhar melancólico sobre um país que alguma França não deixa de ver projetado num fundo de fado e tons sombrios. Tenho a sensação de que, para as "idées reçues" de muitos, Portugal, depois do tempo dos "bidonvilles" e das varinas do SNI, seguido do sobressalto político festivo de 74, regressou à velha caricatura da pátria da eterna nostalgia, desde sempre encalhada num passado que lhe tolhe o presente. É nesse país imaginário, que tem o sol por alegria e a tristeza por destino, que, para um certa França intelectual, encaixa hoje bem a estranheza interrogativa que Pessoa lança sobre essa gente de ambição contida e rumo incerto. Que somos (somos?) nós.

quinta-feira, agosto 16, 2012

Robert Bréchon (1920-2012)

Quando cheguei a Paris, em 2009, alguém me disse que Robert Bréchon era "um radical pessoano". Na altura, apenas conhecia de nome esse lusófilo que um dia escreveu que "é através de Pessoa que Lisboa entra verdadeiramente na literatura universal".

Portugal deve imenso àqueles que, no estrangeiro, se apaixonaram pela sua cultura e que na respetiva promoção ocuparam grande parte da sua vida. Bréchon, que há dias nos deixou, nasceu para a língua portuguesa no Brasil, quando aí trabalhou pela cultura francesa. Depois, quando viveu em Lisboa, onde fez um trabalho notável à frente do Instituto francês, soube abrir-se às correntes intelectuais portuguesas, de diversa orientação. Foi por Lisboa que "descobriu" Pessoa, tendo mais tarde, com Eduardo Prado Coelho, sido responsável pela edição, na Christian Bourgois, das "Oeuvres de Fernando Pessoa". Tornou-se um dos grandes especialistas internacionais na obra do poeta, sobre a qual publicou vários trabalhos.

Mas muito mais lhe ficamos a dever, numa dedicação que merece a nossa homenagem e o nosso reconhecimento. 

Ciganos

A questão do tratamento dado aos ciganos em França está na ordem do dia. Hoje como ontem. O assunto já foi aqui abordado neste texto, escrito precisamente há dois anos, pelo que não tenho mais a dizer. A não ser contar agora uma pequena história.

Lembro-me que era um fim de semana, aí por 1997. Eu estava parado, a guiar o meu carro, no semáforo da rua Barata Salgueiro com a avenida da Liberdade. Aproximou-se uma mulher cigana, de saias longas, com uma criança desgrenhada ao colo, de mão estendida. Abri o vidro para lhe dar alguma coisa e ouvi da sua boca uma expressão que, no início não entendi, mas que ela repetiu: "Bósnia-Herzegovina".

Eu era responsável pelos Assuntos europeus, no governo da altura. Mas - devo confessar, com toda a honestidade e sem esconder esta fragilidade - estava muito longe de supor que, naquela época, as migrações ciganas do centro da Europa tivessem já chegado às ruas de Lisboa. O encontro com aquela pobre mulher, saída de tão longe para tentar atenuar a sua pobreza em Portugal, foi, para mim, uma imensa surpresa, que nunca mais me saiu da cabeça. Desde logo, aprendi que estar no governo nem sempre é sinónimo de estar atento a todas as coisas.  

Eça sempre

Passam hoje precisamente 112 anos sobre a data em que, aqui em Paris, na avenue de Roule, faleceu o cônsul-geral de Portugal, José Maria Eça de Queiroz.

BOAS FESTAS!

  A todos quantos por aqui passam deixo os meus votos de Festas Felizes.  Que a vida lhes sorria e seja, tanto quanto possível, aquilo que i...