Goa foi um tema que sempre me fascinou, menos pela inegável importância histórica da nossa presença na costa indiana e muito mais pela natureza, que sempre vi como muito ambígua, da relação de Portugal com aquela terra e aquela gente. Há uns anos, essa curiosidade levou-me mesmo a passar por lá uns dias. E, devo dizer com franqueza, saí mais confundido do que estava quando lá cheguei.
No final de 2011, passou exatamente meio século desde que a União
Indiana invadiu as últimas possessões que Portugal mantinha na costa do Malabar: Goa, Damão e Diu. Dois enclaves, Dradrá e Nagar Haveli, já
haviam sido absorvidos pelo governo de Nova Delhi, em 1954. Uma curta
batalha militar veio encerrar uma mais longa batalha
jurídico-diplomática, com que o governo ditatorial português pretendia
contrariar o processo descolonizador. A perda do Estado da Índia
representou um trauma muito importante num país que, nesse ano, já havia
assistido às trágicas consequências da sublevação em Angola. O
colonialismo português entrava no seu declínio e, com ele, o próprio regime.
Mas, à
época, diga-se em abono da verdade, nem só os dirigentes do Estado Novo
se recusavam a aceitar o fim do império: grande parte da opinião pública
portuguesa, mesmo dentre quantos se opunham a Salazar, mantinha uma
atitude favorável (ou, pelo menos, não desfavorável) à manutenção dessa parcela do "ultramar português". Mesmo no seio das forças organizadas da Oposição, essa atitude dominava, convém dizê-lo. Recordo-me bem da emoção
provocada em Vila Real, em fins de 1961, aquando da "queda" do Estado da Índia, pela invasão das tropas do "Pandita Nehru".
(Nunca me saiu da cabeça a ideia que criei de que a reiterada utilização adjetivada que a propaganda do regime fazia da palavra "Pandita" - designação elogiosa indiana que era atribuída a Nehru e que, em rigor, significa homem sábio e educado - tinha a ver com a sua similitude sonora com "bandido", tal como, anos mais tarde, aconteceu na América com as expressões "Saddam" e "Satan". Os cartazes com palavras de ordem que diziam "Abaixo o Pandita" e coisas similares assim parece provarem).
Tenho
na memória a visão do meu professor de História, dr. Carlos Sanches, não sei bem
em que qualidade, a discursar na varanda do Governo Civil de Vila Real, para umas
centenas de pessoas que, com patrióticos cartazes, manifestavam o seu pesar pelos acontecimentos.
Eu estava ali com o meu pai, um eterno anti-salazarista, mas que estava
solidário com a defesa do Estado da Índia.
Na altura, a
censura aos media não deixou revelar as dissenções havidas entre o governador-geral
Vassalo e Silva e o executivo de Lisboa, com a "heroicidade" de Salazar a
mandar, da comodidade de S. Bento, o célebre e gongórico telegrama,
redigido para a História e para o "livro branco": "Não haverá nem vencedores nem vencidos, só
heróis e mártires". Lembro-me da emoção com que então se ouvia falar
do afundamento do aviso Afonso de Albuquerque, bem como da "defesa
heróica" levada a cabo pelas forças militares portuguesas em Goa. Só
muito mais tarde vieram a conhecer-se as condições miseráveis em que
estavam as nossas tropas no terreno e no total irrealismo que
representaria uma luta até ao último homem. A vilificação de
Vassalo e Silva (a ironia estadonovista nas conversas sugeria a sua "cobardia", ao tratá-lo como "bacilo salvo") foi a escapatória fácil encontrada pela ditadura para
justificar a derrota militar, a qual, como disse, era uma outra face da inevitável derrota política da teimosia na manutenção do sonho imperial, de que Índia "portuguesa" era a primeira peça do dominó a cair.
Como atrás disse, há uns anos, passei uns
dias em Goa. A Índia era a zona da fixação colonial portuguesa que me
criava (e ainda cria) maiores interrogações. Sabia do modo
ofendido como os habitantes de Goa, Damão e Diu tinham entendido a
aplicação ao território do Ato Colonial, logo no início do Estado Novo. Li, mais tarde, textos escritos por goeses divididos entre a fidelidade a um
Portugal que os tratara menos bem e a atração por uma União Indiana que
lhes abria caminho a uma ligação a um grande Estado descolonizado, então "farol" para muitos povos. E percebera, também, a desilusão que
muitos goeses haviam acabado por sentir, ao verem a sua identidade
violentada por uma integração algo traumática, desrespeitadora da sua sensibilidade cultural e até religiosa. Não
sei o suficiente sobre o assunto para poder ter uma opinião segura, mas
recomendo muito que, quem possa, vá a Goa e por lá tente entender aquela
gente que ficou "a meio da ponte"...
Nessa viagem,
entre outras surpresas, tive uma experiência curiosa. Como acontece com
muitos turistas portugueses, procurei visitar algumas das antigas casas
senhoriais do tempo da Índia "portuguesa", hoje maioritariamente
transformadas numa espécie de museus, as mais das vezes tristes, que espelham uma decadência serena e digna. E onde, em geral, se fala de Portugal sem acrimónia, mas também sem especial nostalgia, como falamos de longínquos membros desaparecidos da família, com defeitos e virtudes. Mais do que de Portugal, do que alguns goeses parece terem saudades é da sociedade goesa do passado, o que são coisas muito diferentes.
A certo ponto
da minha estada, ao aproximarmo-nos de uma dessas casas, fui informado pelo
motorista que ela não era visitável, salvo com diligências que eu não
tinha tempo de empreender. O mesmo motorista chamou-me, entranto, a atenção para
uma senhora que estava a sair da casa, dizendo saber que era ela a
proprietária. Pedi para parar o carro e dirigi-me à senhora, que deveria mais de 80 anos. Fi-lo em inglês. A senhora olhou para mim e, num português
impecável, respondeu-me: "Mas por que é que está a falar-me em inglês? Eu falo
português. Eu fui deputada à Assembleia Nacional!". Chamava-se Lurdes Figueiredo e, logo recordei, fizera parte de um grupo de deputados, de um género a que os brasileiros chamam "biónicos", que haviam sido designados pelo Estado Novo para representar o Estado da Índia, no areópago de S. Bento, ao tempo em que o general França Borges era uma espécie de governador-geral no exílio... em Lisboa. Creio que duraram até ao 25 de abril, se não me engano.
Fiquei sempre com muita pena de não ter tido a oportunidade de falar longamente com aquela senhora, para tentar perceber um pouco mais desse tempo estranho, de um Portugal em transição, em trágico final de império.
Tão estranho que o motorista que me transportava, um hindu que não falava uma palavra de português e que havia nascido já bem depois do fim da Índia dita portuguesa, me pediu para lhe mandar, de Lisboa, autocolantes com o nosso escudo ou a nossa bandeira, para si e para oferecer aos amigos, que achavam muita graça usar nos automóveis. As bizarras malhas que o império tece...
9 comentários:
Provavelmente sabendo-o, o Embaixador colocou aqui um 'post' complicado. Tema divisivo, ainda 50 anos depois, emotivo, e totalmente surreal nalguns contornos.
Na minha mente anti-colonial, confesso, não consigo compartimentalizar, de um lado a 'Índia Portuguesa', do outro as restantes colónias. Nesse sentido, e com todo o respeito pelos caídos, prefiro uma invasão em 36 horas, com 15/20 vítimas, do que uma guerra de 13 anos, com dezenas de milhares de mortes de ambos os lados.
Podíamos falar longamente de 500 anos de história, mas nada disso descarta o facto de que Goa tem de ser é dos goeses. E é-o, um dos Estados com maior crescimento na Índia, um pólo de enorme atração turística, um sítio falado e querido. Para além do facto de que é o único local na Índia onde Portugal possui um Consulado-Geral, um Centro Camões, Fundações, e uma legislação, única no Mundo, onde são passíveis de adquirirem nacionalidade portuguesas os goeses nascidos até dezembro de 1961 E os seus descendentes, o que quer dizer TODOS. Para alem da grande, bem-sucedida, bem integrada e activa comunidade goesa em Portugal.
Não temos por isso grandes motivos para lamentar o presente. Temos aliás apenas um, o de não termos feito o que deveríamos.
E isso era Salazar ter se sentado com Nehru e falado do futuro do território (estou a assumir que isso teria sido possível, o que não era). Se falamos de 'Índia' portuguesa, estamos à partida a assumir que ela é, pelo menos, Índia...
Uma história engraçada: em 1948 o primeiro Alto-Comissário indiano em Londres, Krishna Menon (mais tarde, ministro da defesa em dezembro de '61), abeirou-se do nosso Embaixador, o Duque de Palmela, e disse que tinha instruções para estabelecer relações diplomáticas. Conta a lenda que teria acrescentado, “...para as podermos cortar mais tarde”... Se non è vero..
Tivemos assim em Deli o Embaixador Vasco Garin até 1955, vivendo os primeiros anos da União Indiana, a morte de Gandhi e, sobretudo, a acessão dos Estados principescos à União e as negociações com a França para a entrega de Pondicherry. Daí Nehru ter esperado, achando que Salazar poderia seguir o mesmo caminho. Mas sempre que se falava com Garin a resposta é a mesma, “a Índia Portuguesa não é negociável”...
As autoridades de Deli até nos disponibilizavam um terreno para a construção de uma Embaixada.
Caso tivesse havido negociações, teríamos perdido Goa à mesma – os ventos que corriam eram esses – mas todos teriam saído melhor da fotografia: os interesses dos goeses teriam sido garantidos, a premissa de Nehru era essa, e as relações luso-indianas seriam hoje muuuuuito diferentes.
Temos Sés, Santos Franciscos de Xavier, igrejas e costumes, mas o Embaixador se lá for e ficar num dos 30 resorts que há no Estado – e como eu sei que gosta de uma boa mesa – em nenhum encontrará um vinho português, um azeite, seja o que for. Era nisso que deveríamos insistir, para manter o passado e a nossa herança vivos. Levar a Goa, não o Portugal de 1961 e das assembleias nacionais, mas o Portugal do século XXI, que apesar das más línguas é um grande país e tem muito mais do que pensamos para oferecer.
Isto é escrito um pouco à pressa, e esquecia-me: o terreno que a Índia nos oferecia antes de '55 é hoje ocupado pela Embaixada de França...
Penso que esses territórios que já foram administrados por Portugal continuam muito queridos no coração dos portugueses.
Assim também li algures que em Goa as pessoas ganhavam pelo menos o dobro do que era pago no resto da India, pelo que a seguir à independencia, houve uma grande deslocação de pessoas de outros pontos da India para esse território em busca de melhor condições, o que também teria contribuido para alguma perda de identidade dos goeses,
claro que não sei se é verdade.
parabéns pelo assunto do post!
Caro Anónimo das 10.53: pois eu, na minha (arreigada) "mente anti-colonial", tenho-me entretido, com prazer, a olhar as diferentes faces da colonização portuguesa, tentando perceber o porquê das imensas diferenças entre os modelos criados. Olhar não é absolver, como ter um saudável orgulho na fantástica aventura das viagens portuguesas não significa aceitar acriticamente os aspetos mais sinistros do colonialismo - particularmente a cegueira de quem acordou tarde para a História.
E não seria tão perentório quanto às virtualidades da nossa presente situação em Goa, mas adiante...
É verdade um ponto que nota: a União Indiana quis estabelecer relações com Portugal, porque estava convencida (não sei bem por quem) que Salazar ia aceitar a integração nela do Estado da Índia. Leia, com (alguma, não muita) vantagem a "História de Goa", de Pedro Avelar, recentemente publicada, que faz referência a isso.
Muito interessantes post e comentários.
A Índia que eu conheci e me assustou - nela assisti a um acto de barbarie da polícia sobre um desgraçado que se suspeitava roubara algo - é, hoje, um país que surpreende. Mas em relação ao qual, sei lá bem porquê, continuo com mixed feelings. Mas sou defensora acérrima da presença dos nossos produtos lá. Que vão o vinho, o azeite e tudo o mais que lá possamos colocar. Não é na Europa que vamos encontrar mercados alternativos. É na India, em Moçambique, em Angola e Brasil. Países para quem, afinal, não somos assim tão estranhos...
Srª Drª Helena SC e custa-me entender porque não investimos na farinha de trigo, de milho, centeio e no nosso maravilhoso pão, nessas geografias que lembrou.
No Brasil não fomos(somos?!)padeiros?
Maria Helena
Senhor Embaixador,
O meu tio que viveu na India, de 1954 até Março de 1957, disse:
"Estava em Infantaria 1 quando se deu o caso da Índia, com a invasão de Dadra e Nagar Aveli*. O comandante ofereceu o Regimento e eu considerava-me o ultimo dos homens se não fosse um dos voluntários a marchar. Isso determinou a minha vida cuja experiência mais impressionante se passou naquele país. Fui, com um mínimo de preparação, cair numa situação colonial, de que nem sequer fazia ideia. Pela primeira vez, tive a sensação do que é um povo oprimido e do que é um povo opressor. E tive-a da maneira mais cruel, ao ver o pavor que a tropa causava aos goeses e, principalmente, às goesas.
Tinha já uma grande bagagem de leitura proporcionada por uma tertúlia que se reunia numa pequena leitaria defronte do Jardim-Cinema. Rapazes mais ou menos ligados ao Pedro Nunes que andavam nas Faculdades e debatiam problems, trocavam livros, conversavam. Adquiriamos assim uma preparação política teorica com alguma importância mas foi a Índia que me chamou a atenção para coisas muito decisivas no meu futuro. Vivi lá dois anos e meio que constituiram, efectivamente, o início da minha consciencialização política.
Eu sabia das desigualdades, das opressões, das prepotências que existiam em Portugal mas não as sentia de facto. Na Índia vi, pela primeira vez, povos a oprimirem outros povos. A sociedade indiana estava completamente estratificada por classes em que uns eram escravos de outros. Sobre isto, o paternalismo português a proteger os mais fortes contra os mais fracos. Raras vezes tera havido no Mundo maiores diferenças entre ricos e pobres, como acontecia na Índia. Isso chocou-me profundamente".
Extrato de uma série de entrevistas, recolhidas por Martinho Simões, sob o título "Um revolucionário confessa-se" -Memórias de Fernando Oneto- publicadas no "Diário de Notícias a 10 de Fevereiro de 1975
(*)http://areamilitar.net.april.arvixe.com/Analise/analise.aspx?NrMateria=52&p=2
Fizemos duas viagens de barco para Macau: uma no “India” com a minha mãe e outra no “Timor” com o meu pai. Das duas vezes fizemos escala em Goa e em Timor. Pouco lembro da viagem no “Timor” a não ser a travessia do canal de Suez, que nessa época era muito estreito, e da adopção do “Ritz”, o setter irlandês mais lindo do mundo que nasceu algures no oceano Indico. Da viagem no “India”, tenho muitas boas recordações, péssimas para minha mãe que viajava sozinha com 4filhos impossiveis de aturar, e que sonhava com a chegada a Goa para ver-se livre das quatro pestes, “entregando-nos” aos cuidados do Tio durante 10 dias. O tenente Oneto la estava à nossa espera radiante de ver os sobrinhos e a cunhada.
Lembro-me da cor vermelhão da terra, (o mesmo da casa da foto que ilustra este post)e das cores dos saris. Depois de uma primeira noite caotica no quartel, o tio levou-nos ao "India" e disse: “tenho muita pena mas por questões de segurança das minhas tropas, não posso guardar os teus filhos no quartel”. Nesses 10 dias, o tio levou-nos à praia, a passear e a jantar muitas vezes numa casa muito bonita onde moravam umas senhoras amigas, vestidas de saris lindos e que falavam português.
Helena Maria:)
Obrigado pela sugestão de leitura. Por acaso comprei esse livro há uns dias atrás. Está agora na fila de espera...
Boa tarde. A chamada "santa inquisição" foi uma coisa abjecta. Mais direi: sem nome. Em proporção com aqules tempos, pode-se dizer que houve um genocídio. Alguém sabe o que foi Orlem Ghor? Não? Então investiguem! Se o tempo pudesse recuar, gostava que a sr.ª Helena Sacadura Cabral e outros saudosistas fossem parar àquela diabóolica casa. A propósito, havia cirurgiões especialiados em manter vivos, com suturas sucessivas,os corpos até a morte dos desgraçados hereges!!!! Amen
Helena Oneto, o pavor que a tropa provocava nos goeses? E nas goesas? O meu pai partiu de cá para Diu com 20 anos para cumprir o serviço militar. Casou-me com a minha mãe em Goa e eu nasci uns meses antes da invasão. O meu pai pertenceu àquele grupo de militares que, depois da invasão, ficaram meses presos num campo de concentração em Pondá. Mais: ouvi goeses, genuínos, a lembrarem-me que a União Indiana pensou em fuzilar aqueles militares. Que não foram lá muito bem tratados. A minha mãe, goesa, chegou a contar-me que durante meses levou comida ao meu pai e aos camaradas dele porque estavam subnutridos.
E, voltando à questão do "pavor", pelas histórias que o meu pai contava, nunca me apercebi de qualquer "pavor". E nas duas vezes em que fui a Goa (uma das quais passei lá oito meses) nunca, mas nunca, ouvi qualquer referência desgraçada aos militares portugueses. Muito menos de goesas.
Posso adiantar-lhe ainda que ouvi inteletuais (alguns independentistas) dizerem aos quatro ventos que Portugal nunca deveria ter reconhecido a integração de Goa na União Indiana. Porque isso retirou ao território a possibilidade de chegar à independência.
Sabe, Helena, uma coisa é criticar o anterior regime pela cegueira que o impediu de perceber que Portugal poderia ter criado uma CPLP logo nos anos 60, dando independência aos territórios ultramarinos. Estou de acordo com isso. Até porque também vivi em Moçambique, onde percebi ainda melhor esse erro... Outra coisa é ouvir histórias mal contadas sobre os militares portugueses que iam para Goa. Houve um ou outro que fizeram disparates? Houve. Mas não se pode culpar a instituição militar por isso. Afinal um energúmeno existe na tropa como em qualquer outro grupo da sociedade
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