Por um daqueles mistérios que as relações internacionais encerram, Cuba mantinha em Lisboa uma representação diplomática no tempo da (nossa) ditadura, dedicada à promoção comercial. Nenhum outro país do mundo comunista o fazia, com exceção da Jugoslávia. Era num (julgo que 2º) andar perto da Estefânia, que, além de outros ocupantes, tinha uma loja de artigos elétricos no rés-do-chão. Recordo-me bem de por lá ter passado, no final dos anos 60, a procurar recolher alguma "literatura" política (no que eram de um parco proselitismo, registe-se).
Fugido do hospital Curry Cabral, onde estava internado sob prisão, Manuel Serra, um dos protagonistas do chamado "golpe da Sé"*, um frustrado movimento insurrecional contra o salazarismo ocorrido em 1959, que antes havia sido sujeito a bárbaras torturas da polícia política, obtivera um dia asilo nessa representação cubana. A PIDE montou tocaia permanente ao local e os seus agentes passaram a revezar-se, no passeio do prédio, vigiando a porta, para impedir uma fuga de Serra. Este assomava, com regularidade, à varanda, com um ar provocatório, fumando charuto, com uma cabeleira longa e uma barba que há muito tinha deixado crescer, o que lhe dava um ar de guerrilheiro da Sierra Maestra, aliás bem adequado ao sítio de acolhimento. A provocação ia mais longe: Serra cuidava em expelir, com maestria e pontaria, algumas secreções bucais na direção dos "pides", acertando por vezes em alguns deles. E fazia esta "graça" com irritante regularidade...
Um dia de 1960, a cena repetiu-se e um "pide", mais distraído, recebeu um desses "brindes" do barbudo galhofeiro da varanda, na ocasião vestido com uma vistosa camisa encarnada (Serra preferiria dizer vermelha, pela certa). Mal o "pide", furioso, acabava de se limpar, saiu da porta ao lado do estabelecimento comercial um padre**, de sotaina e cabeção, que, simpaticamente, o saudou com um cumprimento de cabeça. Esse sacerdote pálido, de cabelo curto e empastado, todo de negro vestido, caminhou lentamente para o jardim Constantino, desaparecendo nesse final de manhã de Lisboa.
O que o "pide" não sabia é que o "padre" era, nem mais nem menos, Manuel Serra, o qual, em poucos segundos havia cortado as barbas e o cabelo, mudado de roupa e descido as escadas. Para se escapulir, contara com o contraste entre um aprumado "sacerdote" e a imagem desgrenhada e colorida do revolucionário que permanecia na memória visual recente do polícia.
Serra conseguiu fugir para o Brasil mas, tempos depois, voltou a Portugal para integrar a direção do chamado "golpe de Beja", uma nova (e também fracassada) tentativa de derrube do regime. E voltou a ser preso, por mais sete anos, depois de fortemente torturado. Morreu há pouco mais de dois anos, como então registei aqui.
Serra conseguiu fugir para o Brasil mas, tempos depois, voltou a Portugal para integrar a direção do chamado "golpe de Beja", uma nova (e também fracassada) tentativa de derrube do regime. E voltou a ser preso, por mais sete anos, depois de fortemente torturado. Morreu há pouco mais de dois anos, como então registei aqui.
A propósito: não creio que a polícia londrina caia no truque do "padre", se Julien Assenge o vier a tentar.
* Agradeço a Helena Oneto a lembrança de úteis ligações, que permitem um melhor esclarecimento sobre o "golpe da Sé" e o "golpe de Beja".
** A indicação de que Manuel Serra ia vestido de padre foi-me dada, há muitos anos, por um amigo que me dizia que conhecia bem o caso. Verifico, contudo, que, segundo a maioria das versões, esse é o traje que terá sido utilizado na fuga do Curry Cabral e não é plausível que o mesmo disfarce tenha sido usado duas vezes.
* Agradeço a Helena Oneto a lembrança de úteis ligações, que permitem um melhor esclarecimento sobre o "golpe da Sé" e o "golpe de Beja".
** A indicação de que Manuel Serra ia vestido de padre foi-me dada, há muitos anos, por um amigo que me dizia que conhecia bem o caso. Verifico, contudo, que, segundo a maioria das versões, esse é o traje que terá sido utilizado na fuga do Curry Cabral e não é plausível que o mesmo disfarce tenha sido usado duas vezes.
6 comentários:
Nunca estive na representação diplomática de Cuba, mas durante o segundo semestre de 1969, devido à minha militância na CDE, estive várias vezes na residência do Encarregado de Negócios, num prédio da Avenida António Augusto de Aguiar.
Eram serões informais, no decorrer dos quais se falava (muito) de política - eu, então na casa dos vinte anos, ouvia mais do que falava - se bebiam umas Cubas Livres, entre outras bebidas, e se comiam uns petiscos.
O reverso da medalha eram os longos filmes panfletários a que assistíamos. Acho que fiquei expert na colheita da cana do açúcar.
O golpe de Beja lembra-me o Sérgio Sabido Ferreira, cirurgião que não temeu em operar um ferido, mesmo debaixo da metralhadora que lhe estava apontada.
Nestas revoluções só se fala nos revolucionários e muito se esquece quem os ajudou.
Já não estão vivos Francisco Veloso e Lígia Monteiro que poderiam dar boas contribuições nesta matéria, em especial no denominado "golpe de Beja"!
Bem interessante este relato.
Mas inicialmente só li o título (fui ver como estava a decorrer o guisado de coelho)e fui a cogitar que episódio e que asilo/lar de terceira idade iria o Senhor mencionar...
De facto nem sempre o título prediz o conteúdo do desenvolvimento do texto.
O Portugês e as suas ambiguidades.
boa historia a do sacerdote que minutos antes cuspiu da janela vestido de vermelho.
numa vivenda na pedro alvares cabral que ainda existe, ao lado do joão de deus, funcionou nos anos 50 e ainda 60 a embaixada de cuba.
portugal manteve uma embaixada em havana até 73 tendo então sido fechada (mantendo se creio as instalações, mas sem arquivos que foram retirados, e o local guardado por alguem mas sem funções). o encarregado de negócios em havana (de apelido machado) foi mandado seguir para a bolivia, la paz.
Porque se manteve a embaixada durante salazar e só se fechou com caetano no final do regime? parece que algo ligado ao papel dos cubanos como conselheiros militares da guerrilha dos movimentos de libertação nas colonias.
na alvares cabral tambem se ia discretamente à embaixada de cuba pedir literatura revolucionária.
Não me fales de asilos emEmbaixadas!
Caro ARD: um destes dias, falarei do colete de um embaixador que a CNN popularizou e que, dizem-me, que, em modelos falsificados, fazem hoje a moda na Féra di Praça, lá por Bissau
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